Covid-19: professoras da periferia explicam por que a educação está em risco
Professoras, mães e estudantes explicam como a pandemia causada pela Covid-19 está afetando suas vidas e o direito à educação.
Por Jéssica Moreira
05|05|2020
Alterado em 05|05|2020
Salas esvaziadas, medos e incertezas. Era segunda-feira de 16 de março quando as professoras de História Joice Aziza, 40, e Janaína dos Santos*, 46, receberam as primeiras notícias sobre como a pandemia causada pela Covid-19 afetaria suas vidas e de seus alunos.
Separadas por 54, 2 quilômetros — a primeira em Caieiras, ao norte da Grande São Paulo, e a segunda em Itapecerica da Serra, ao sul da Grande São Paulo — as duas estão unidas por um mesmo desafio: garantir o direito à educação aos meninos e meninas que estão nas franjas da maior cidade do Brasil, São Paulo (SP), a mais afetada pela Covid-19.
O estado possui 32 mil casos de pessoas infectadas e 2.654 mortes. São 1.683 óbitos só na capital, sendo a letalidade da doença mais evidente nas regiões periféricas, como Brasilândia (100 mortes), Capela do Socorro (65), Sapopemba (72) e Cidade Tiradentes (62). Os dados são do Ministério da Saúde e Secretaria Municipal de Saúde de SP.
São em territórios como esses que atuam e moram educadoras das redes públicas de ensino como Joice e Janaína. Onde vivem estudantes que sonham em ingressar na universidade, como Maria Eduarda, 17; e mães como Erika Barbosa, 30, que agora se vira entre os estudos, os serviços de casa e cuidados com as crianças.
É nas vozes de todas elas que Nós, mulheres da periferia explicamos por que o direito constitucional à educação está sendo sendo colocado, mais uma vez, à deriva.
Onde o Google Classroom não chega
Janaína tem, ao todo, 259 alunos, do 7º ao 9º ano, da rede municipal de ensino da capital paulista. As meninas e meninos têm entre 11 e 15 anos e vivem na região do Valo Velho, no extremo sul da capital.
Desde o dia 23 de abril, é pela Sala Online do Google (Google Classroom) e por grupos de WhastApp que eles trocam atividades e expressam seus sentimentos diante das dificuldades em realizar as atividades de maneira remota.
‘Professora, como é que eu vou fazer lição com meu filho se eu só tenho um celular e eu tenho quatro crianças?
Os desafios não são poucos e passam, principalmente, pelo acesso à internet. A maioria não possui computador em casa e, muitas vezes, dividem o aparelho com os demais membros da família.
‘Professora, como é que eu vou fazer lição com meu filho se eu só tenho um celular e eu tenho quatro crianças? Meu celular não é um celular tão potente, então, não posso baixar lição assim para todo mundo’, foi uma das primeiras mensagens que Janaína recebeu de uma mãe com três filhos na escola.
Muitas das famílias têm acesso à internet apenas por pacotes móveis de celular. Dependendo do vídeo ou do site que a professora pede para acessar, o pacote acaba. Essa realidade não é só dos alunos de Janaína, mas também de boa parte do Brasil.
Ferramentas de Tecnologia são desafios para estudantes e educadoras
©EBC
Segundo o Comitê Gestor da Internet no Brasil, em 2018, o telefone celular era o único meio de acesso à Internet, sobretudo nas classes C (61%), e D/E (85%). Segundo dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), 55% dos acessos móveis do país são pré-pagos. Essas informações são da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que produziu o Guia Covid-19: Educação a Distância, para auxiliar o poder público, as professoras e professores e famílias neste momento de crise.
Entre a população cuja renda familiar é inferior a 1 salário mínimo, 78% das pessoas com acesso à internet usam exclusivamente o celular.
(Fonte: PNAD Contínua TIC)
Por mais que Janaína tente, é impossível criar uma rotina. Ela começa sempre às 8h, mas, diante dos percalços de acesso dos estudantes, acaba ficando disponível durante todo o dia, dividindo-se entre os afazeres domésticos, cuidado com a filha e também prestando auxílio emocional a alguns jovens.
“Em momentos diferentes, duas alunas disseram o seguinte: ‘eu só vou poder fazer sua lição à noite, quando a minha mãe chega do trabalho, porque eu vou fazer a lição no celular da minha mãe’”, conta.
A realidade se repete também em Caieiras. Moradora de uma das regiões mais periféricas do município, Joice ligou um alerta vermelho quando soube que as atividades da rede estadual de ensino seriam realizadas de maneira remota, por meio de uma plataforma chamada Centro de Mídia de São Paulo (CMSP).
“Eu fico pensando como é que essas pessoas vão fazer essas atividades? Tem pessoas que não têm celular. Há casas que não têm mesas. Há famílias que não são letradas. Então, como vão auxiliar?”, questiona-se.
Sua preocupação não é à toa. Segundo a legislação do Conselho Nacional de Educação (CNE), para que a Educação à Distância aconteça, é imprescindível a orientação de pais, mães ou responsáveis.
Quando o CEP determina o direito ou não à educação
Para quem não tem acesso à rede virtual, é possível buscar o material na unidade escolar. Na rede municipal, estão sendo entregues também os livros chamados “Trilhas da Aprendizagem”, enviados nas residências dos estudantes ou na escola.
Para a professora Janaína, isso também pode ser encarado como um problema, já que os Correios não chegam a todas as casas e a busca dos materiais na escola também pode colocar as famílias e funcionários em situação risco por contaminação do vírus.
“O Governo diz que o povo da periferia não está cumprindo o isolamento social. Mas como é possível, quando o próprio governo fala ‘vai buscar a apostila na escola, o caderno na escola?’, reflete Janaína.
Educação a distância: uma saída ou um atenuante de exclusão?
Em 14 de abril, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, disse em entrevista à Jovem Pan que “o objetivo do Enem é selecionar as pessoas mais qualificadas e inteligentes”. A fala tem causado revolta em alunos e professores. Diversos deles responderam à postagem do Ministério da Educação no Facebook sobre a permanência do calendário do ENEM 2020.
Para eles, a realização do exame pode atenuar ainda mais as desigualdades do país. “Vocês acham mesmo que um aluno morador de favela tem o mesmo acesso a materiais escolares que um aluno da da zona sul?”, diz um estudante nos comentários de postagem do Ministério de Educação. “É absurdo e desumano ainda manter a data do Enem. Famílias dilaceradas com suas perdas pela Covid-19, milhares de jovens que não têm acesso a internet e Wi-fi e vocês agindo como se nada tivesse acontecendo”, comenta outra aluna.
Professora Joice Aziza em atividade sobre questão racial junto aos estudantes
©Arquivo pessoal
“Nós temos alunos do ensino médio que vão fazer ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), pois o governo não o adiou. E, pelo que vejo, não vai adiar. E o não adiamento do ENEM é um processo de seleção, um processo de seleção do qual vai entrar somente a elite”, explica Joice, que entende o processo de exclusão, mas se vê no desafio de oferecer o mínimo de ensino aos que irão prestar o exame.
Para Iracema Nascimento, professora da Universidade de São Paulo, a maioria das secretarias estão propondo formas de se manter algum atendimento educacional, estando mais preocupadas em contabilizar os 200 dias letivos e as 800h obrigatórias, do que com a qualidade da educação oferecida e da interação possível dentro desses meios remotos e, ainda menos, com o princípio constitucional da igualdade de acesso.
“A gente não pode falar que elas desconhecem a realidade, pois a gestão pública realiza levantamentos estatísticos sobre condições sociais de vida da população. Eles sabem onde estão as maiores dificuldades. Só que boa parte dos gestores de plantão não fazem política pública pensando nesses grupos sociais. Pensam primeiro, ou exclusivamente, em quem pode acessar. É sempre um pensamento meritocrático e excludente. Quem não pode, se vira”, explica.
O Brasil possui quase 48 milhões de estudantes (47.874.246), nas redes pública e privada, com 88,8% matriculados na área urbana e 11,2% na rural. Desse total, 81% dos alunos da educação básica estão na rede pública. Na área rural, as escolas públicas são responsáveis por 83% das matrículas ofertadas. (Fonte: Censo da Educação Básica de 2019)
O sonho do acesso à universidade
Maria Eduarda dos Santos tem 17 anos, mora no Jardim Brasil, zona norte de SP, e está no último ano do Ensino Médio em uma escola estadual. Estudante de escola pública durante toda a vida, o Enem é visto como o caminho possível para realizar o sonho de cursar Direito ou Fisioterapia, duas profissões que abrilhantam seus olhos.
“A pandemia afetou em tudo. Eu não tenho mais o cronograma que eu tinha antes para conseguir alcançar os meus sonhos. O que pode me prejudicar muito no Enem. Sem a escola, eu estou meio perdida nos meus estudos. Muitos nem ligam se estão indo na escola ou não. Mas, tanto eu quanto uma amiga queremos fazer o Enem e ficamos muito perdidas nos estudos”.
Para Iracema, a manutenção do Enem é uma política de escolha mais acentuada ainda de quem pode e quem não pode acessar a universidade, indo na contramão de vários outros países que têm decidido por suspender seus exames de acesso ao ensino superior.
“A manutenção do Enem vai beneficiar mais ainda quem é da escola privada, pois seus estudantes, de modo geral, não enfrentam dificuldades de acesso às plataformas virtuais. As famílias desses estudantes reclamam que não têm tempo para acompanhar seus filhos nas lições, mas com certeza manter o Enem nessas condições é acirrar ainda mais as desigualdades. Tenho certeza de que veremos uma queda nas taxas de inscrição de estudantes de escolas públicas no ENEM desse ano”, prevê.
E as mães, moradoras das periferias na quarentena?
Não são só os estudantes que estão se sentindo perdidas. As famílias também tiveram suas rotinas completamente transformadas diante da pandemia.
A estudante de Bibliteconomia Érica Barbosa, 30, moradora de Perus, região noroeste de São Paulo, sempre levou a sério o ditado africano que diz que é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança. Mas, desde que a quarentena começou, no entanto, esse espaço se reduziu ao quintal da casa, onde ela se divide com o companheiro, Almir Moreira, na educação dos filhos Miguel, 9, Flora, 6 e Serena, 6 meses.
Em média, as mulheres dedicavam 18,1 horas por semana, com cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos, sendo que entre as mulheres negras, essa média sobe para 18,6 horas semanais.
(Fonte: Estudo Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil/Pnad 2018)
Recém-saída do puerpério (período de pós-parto), Érika sente que a pandemia mudou completamente sua vida, principalmente porque as crianças estão em casa durante 24 horas.
“O pai pode estar em casa, mas é sempre a mãe que eles querem, que eles solicitam o dia inteiro. O tempo que estavam na escola era o tempo que eu podia me dedicar a fazer as minhas atividades, meus trabalhos e cuidar mais da Serena e da minha cabeça”, conta.
Ela tem se dividido entre as aulas da faculdade, amamentação da caçula, serviços domésticos e auxílio principalmente do mais velho, que já estava no Ensino Fundamental.
“Tem dias que preciso descansar e tem dia que não estou com criatividade para fazer nada ou simplesmente não quero fazer nada com eles, porque nós não somos robôs. Tem dias que não estou com paciência e eles entendem. Tem dias que eu queria aquelas três horinhas do dia para ficar sozinha, porque nem no banheiro sozinha eu vou”.
Possíveis alternativas em tempos de crise
Quando se tem uma relação de confiança no trabalho do professor ou professora e da equipe no geral, muitas soluções podem ser criadas no campo da educação. Mas, antes, é importante entender que esses novos processos não surgirão como num passe de mágica de transformar o que era presencial em virtual.
Iracema Nascimento acredita que, mais do que seguir o que já estava previsto, agora é importante que as escolas públicas tenham tempo e condições para reorganizar seus projetos pedagógicos e utilizar a própria pandemia como tema em seus currículos, ajudando os estudantes a aprenderem com o assunto do momento.
“Por que que isso não pode ser um conteúdo curricular? Isso pode ser um objeto de discussão e em qualquer área do conhecimento. Você pode partir do coronavírus, da pandemia e tratar da questão do isolamento social em geografia, língua portuguesa, em língua estrangeira, em artes, em educação física, biologia, química, em história e, assim por diante, inclusive se detendo aos aspectos sociais e políticos”, destaca.
A professora integra um grupo de educadores da educação básica e da USP que se juntou para escrever uma carta aberta em resposta à Instrução Normativa n. 15, da Secretaria Municipal de Educação, divulgada em 9 de abril, mostrando por que um pacote homogêneo de ensino remoto não é capaz de alcançar grupos em determinados territórios da cidade.
Crianças combatendo a Fake News
Adaptar o currículo e aproveitar os desafios impostos como uma oportunidade. É isso que fez a professora de Educação Física de uma escola municipal da zona sul, Cláudia, que inaugurou o projeto Imprensa Jovem em 2020 e o adaptou durante a quarentena.
https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=121440976156633&id=109371767363554
Quando iniciaram o projeto, logo em seguida iniciou-se a quarentena, fazendo com que os encontros, desde então, fossem realizados por meio de um grupo de WhatApp, com alunos de 4º e 5º anos, de 9 a 11 anos, no Imprensa Kids e alunos do 6º ao 9º ano, no Imprensa Jovem.
Eles entrevistam profissionais da saúde, familiares e pessoas que estão na linha de frente dos trabalhos essenciais. “Nós, mesmo em reuniões por WhatsApp, trabalhamos sobre o coronavírus. Então, quais são os meios de contaminação, o que é verdade, o que é mentira, como verificar as notícias, averiguar a vericidade das informações antes de repassar as mensagens”, conta a orientadora.
*O nome foi modificado para preservar a fonte.