Como o machismo influencia diagnósticos de saúde mental das mulheres

Quando ser mulher vira motivo de adoecimento: o peso dos estigmas nos diagnósticos

10|06|2025

- Alterado em 10|06|2025

Por Jo Melo

Não é segredo que vivemos em uma sociedade conservadora, especialmente quando se trata de mulheres. Antes de nós, nossas mães, avós, tias e antepassadas sofreram inúmeros silenciamentos não apenas sobre seus corpos, mas também sobre suas vozes. Hoje, o tema desta coluna, é sobre o diagnóstico errado em mulheres, principalmente aqueles relacionados ao humor e à personalidade e o machismo por trás disso. Sexualidade, prazer, expressão de sentimentos, tudo isso era considerado “anormal” para as mulheres que vieram antes de nós. Qualquer ação que não fosse a de servir ao marido e à família era frequentemente associada a uma doença que se tornou comum: a histeria.

O que se seguiu foram tratamentos invasivos, muitas vezes sem base científica, que refletiam o pavor masculino da mulher que não se enquadrava na esposa ideal. Procedimentos como a histerectomia (remoção do útero) eram realizados sob a crença de que o útero era a fonte de todo o “mal”. Banhos frios, repouso extremo e até a “cura” da vibração pélvica (que levava ao orgasmo feminino, ironicamente usado como um “tratamento”) mostram até onde a medicina da época foi para controlar o corpo e a mente das mulheres. Mais do que “tratamento”, era uma verdadeira violência médica mascarada, um castigo social e físico imposto àquelas que desafiavam o status quo.

Hoje em dia não é diferente. Parece que, para as mulheres, a medicina está mais disposta a “encaixar” um CID (Código Internacional de Doenças) para seus comportamentos e emoções.  O que levanta uma questão importante: será que as particularidades da experiência feminina estão sendo vistas como patologias, e não como respostas legítimas a um mundo muitas vezes opressor?

O TPB (Transtorno de Personalidade Borderline), por exemplo, é predominantemente associado às mulheres. Enquanto os acessos de raiva nos homens são frequentemente aceitos como parte da masculinidade (ou até mesmo justificados por “estresse” ou “pressão”), nas mulheres, esses mesmos comportamentos são patologizados, transformados em um rótulo de doença. A mesma coisa com a sexualidade aflorada. Enquanto que, para eles, “pegar todas” é uma questão de honra, de poder e até mesmo de masculinidade, para as mulheres, é interpretado como julgamento e vulgaridade. 
Para exemplificar essa questão, segundo o Manual MSD (Merck Sharp & Dohme referência médica publicada pela empresa farmacêutica americana Merck & Co.), cerca de 75% dos pacientes diagnosticados com TPB (Transtorno de Personalidade Borderline) são mulheres. Isso porque, segundo o mesmo manual, algumas características do borderline são: 

Instabilidade persistente nos relacionamentos, na autoimagem e nas emoções (isto é, desequilíbrio emocional), bem como acentuada impulsividade

Sentimentos persistentes de vazio

Raiva inadequadamente intensa ou problemas para controlar a raiva

Impulsividade em duas ou mais  áreas que podem prejudicá-los (como sexo inseguro, compulsão alimentar, dirigir de forma imprudente)

Relacionamentos intensos e instáveis que oscilam entre idealização e desvalorização do outro

Essas características são, com frequência, atribuída às mulheres, o que nos leva a questionar: 

1

Será que esses diagnósticos carregam um viés social e machista?

2

Por que a sexualidade feminina é frequentemente medicalizada, vista como algo a ser controlado ou “tratado” se foge do esperado?

3

Por que mulheres que usam decotes ou roupas curtas são rotuladas de forma tão diferente, enquanto a liberdade sexual masculina raramente é questionada?

4

Por que a instabilidade nos relacionamentos é vista como doença? Quem está causando esse sofrimento?

Talvez esse olhar seletivo esteja nos roubando o direito à autonomia sobre nossos próprios corpos e desejos.

Diagnósticos errados e suas consequências

Eu — assim como outras mulheres que conheço — recebi um diagnóstico equivocado de transtorno bipolar. E não se tratava de uma comorbidade, o que seria possível, mas de uma interpretação reducionista e enviesada de nossas emoções e comportamentos. Nossas vivências foram encaixadas à força em diagnósticos marcados por estigmas que reforçam o que se espera de uma “mulher ideal” na sociedade. Por conta disso, passei por inúmeros tratamentos que me fizeram muito mal. Medicamentos que não surtiam efeito algum, mas que me levaram repetidas vezes ao hospital. Esses erros médicos, atravessados pelo machismo, têm consequências cotidianas, profundas e silenciosas. Diante disso, mulheres que recebem diagnósticos errados de TAB (Transtorno Afetivo Bipolar), Borderline e outros, passam por inúmeros sofrimentos que, muitas vezes, não são ouvidos, mas mascarados. Na verdade, muitas dessas mulheres podem ser autistas ou não ter nenhum tipo de transtorno. O sofrimento é real, mas o diagnóstico,  muitas vezes é errado, e isso adoece ainda mais.

A forma como o autismo se manifesta em meninas e mulheres, muitas vezes de maneira mais “sutil” ou internalizada (como o masking — a tentativa de se adequar socialmente), pode levar a queixas de ansiedade, depressão, ou dificuldades de regulação emocional facilmente confundidas com os critérios dos diagnósticos mais recorrentes para mulheres. 

Por isso, é fundamental questionar, ter senso crítico e buscar o autoconhecimento. É importante sempre buscar segundas opiniões e lembrar que nem tudo é o que parece. A sexualidade é um direito das mulheres, e nossa expressão não deve ser contida por rótulos.  Isso não significa que nenhuma mulher deva receber o diagnóstico de Transtorno Bipolar ou de Borderline. A questão é: por que tantos diagnósticos errados, feitos sem um olhar aprofundado, sem considerar raça, classe, gênero ou contexto social?

Que fique claro: não sou contra diagnósticos — eles são ferramentas essenciais para o autoconhecimento e o acesso ao cuidado adequado. Eu mesma consegui compreender melhor quem sou depois de receber o laudo de autismo, após anos com o diagnóstico equivocado de transtorno bipolar. Mas precisamos questionar.

Diante disso tudo, é fundamental que os profissionais de saúde considerem os fatores sociais, culturais, étnicos-raciais e de gênero, vendo a pessoa para além dos manuais de diagnóstico. A saúde mental não pode ser dissociada da realidade em que vivemos. 

Espero que essa reflexão nos ajude a promover uma visão ampla e crítica sobre os diagnósticos e a importância de questionar sempre. Lembre-se: ninguém conhece seu corpo e mente melhor do que você mesma. Confie na sua intuição e lute pelo seu direito de ser quem você é! Este texto é como uma reflexão sobre o quanto ainda nossos corpos ficam à mercê do Estado. Pense sobre isso. 

Jo Melo É mãe, jornalista, escritora e fundadora da revista Mães que Escrevem. Especialista em Comunicação/Marketing e Jornalismo Digital, é também mestranda em Estudos Linguísticos pela UNIFESP. Diagnosticada como autista na idade adulta, possui hiperfoco em escrita e linguagens. É Imortal pela Academia Mundial de Letras e autora premiada na Suíça, com os livros Os Cinco Sentidos e Hipérboles. — @jomelo.escritora

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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