Como o debate de uma lei gaúcha pode afetar religiões afro-brasileiras
"Se fosse sobre animais, seria proibido vender carne de bicho em bandejinha no mercado, se fosse sobre o direito dos animais, o agronegócio não faria o que faz, o sofrimento que acontece com os bichos. No candomblé, os bichos são respeitados", disse a jornalista Bianca Santana.
Por Jéssica Moreira
17|08|2018
Alterado em 17|08|2018
Por Jéssica Moreira e Semayat Oliveira
O vão do Masp, na Av. Paulista (SP), vibrava com com as batidas sincronizadas dos tambores em roda, enquanto centenas de pessoas entoavam seus cânticos vestidas de branco, muitas com suas guias. A cena aconteceu no dia 8 de agosto, quando pessoas adeptas de religiões de matriz africana saíram em marcha pela principal avenida da capital paulista para exigir liberdade de culto.
Cerca de 5 mil pessoas foram às ruas em defesa da liberdade religiosa e contra o Recurso Extraordinário (RE) 494601, que foi ao Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) no último dia 9.
A RE é do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MP/RS), que contraria um acórdão do Tribunal de Justiça do Estado, que entendeu como constitucional uma lei estadual que autoriza o sacrifício de animais destinados à alimentação nos cultos das religiões africanas. Ou, seja, que entende que a prática é legal, tanto que já é uma lei no estado gaúcho, a 12.131/2004.
A mobilização, que também aconteceu em outros estados, teve a intenção de defender o estado laico e evidenciar o risco de casos como esse aumentarem, causando a criminalização da religião.
No STF
O julgamento foi interrompido a pedido do ministro Alexandre de Moraes, por solicitação de vistas do processo. Ainda não há previsão para a retomada do julgamento.
Durante a sessão do STF, o ministro e relator do caso, Marco Auréllio, se posicionou afirmando ser constitucional, mas questionou o fato da lei explicitar o termo “religiões de matriz africana”. Em seu entendimento, a especificação fere o princípio da isonomia e protegeria excessivamente uma crença.
Além disso, ele também afirmou que “o sacrifício de animais é aceitável, se afastados os maus-tratos no abate e a carne for direcionada ao consumo humano”.
Portanto, ele votou pelo parcial provimento ao recurso extraordinário, entendendo constitucional a prática de sacrifícios religiosos, não restritos às religiões afro-brasileiras. Na prática, o relator afirmou a constitucionalidade do sacrifício de animais em ritos religiosos de qualquer natureza, vedada a prática de maus-tratos no ritual e condicionado o abate ao consumo da carne.
Em texto publicado no site Justificando no último dia 14 de agosto, Ana Laura Silva Vilela, doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília, onde pesquisa o papel das lideranças religiosas femininas na construção dos direitos das comunidades tradicionais de terreiro, salientou que essa condicionante pode se tornar um problema.
“Ainda que o sacrifício animal finde na partilha do alimento pela comunidade, depara-se com diversos riscos. O primeiro diz respeito ao controle que tal condição poderá ensejar no futuro. Na manifestação da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, o Procurador desta Casa afirmou que a exceção do sacrifício religioso como desrespeito ao meio ambiente pela lei estadual discutida, já seria uma resposta legislativa a perseguições institucionais que os terreiros sofriam à época da sanção da Lei. Se a Suprema Corte decidir a constitucionalidade do sacrifício de animais por meio de uma condição, pode abrir espaço para ações arbitrárias de controle sobre as manifestações afro-religiosas”, escreveu.
O ministro Edson Fachin foi contrário a posição de Marco Auréllio em diferentes estâncias. Ele votou contra o recurso e ressaltou que a lei estadual é plenamente constitucional. Além disso, defendeu a pertinência do termo “cultos de matriz africana” na lei gaúcha. Para ele, a menção específica não traz inconstitucionalidade, uma vez que a utilização de animais é de fato intrínseca a esses cultos.
Também reforçou que deve ser destinada uma proteção legal ainda mais forte a essa religião por ser objeto de estigmatização e preconceito estrutural da sociedade.
Além disso, Fachin citou a Instrução Normativa nº 3/2000, do Ministério da Agricultura, relativo ao abate humanitário, na qual também se faculta o sacrifício para fins religiosos, o que, segundo o ministro, revela não ser plausível sustentar que a prática de rituais com animais implique prática cruel.
O representante do Ministério Público gaúcho disse considerar uma “esquizofrenia legal” o fato de uma lei resguarda o sacrifício animal de religiões afro-brasileiras. Já o advogado do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal chegou a relacionar o tratamento dos animais na religião com a ideia de maus-tratos a “gatos pretos nas sextas-feiras treze” ou a violações que acontecem em outros países, como a mutilação genital.
O advogado de defesa das religiões Afro-brasileiras, Hédio Silva, fez uma argumentação que destaca o caso como fruto do racismo institucional no Brasil. Um exemplo seria o fato da discussão ter sido encaminhada ao Supremo Tribunal Federal, ele fez uma comparação entre a relevância que é dada ao alto número de mortes de jovens negros no Brasil e a morte de “galinhas da macumba”.
“É impressionante que haja estatísticas no Brasil que comprovam que jovens negros são chacinados como animais. Mas não há comoção na sociedade brasileira, não vejo instituições jurídicas ingressarem com medida judicial para evitar a chacina de jovens negros, mortos como cães na periferia. Mas a galinha da macumba, parece que a vida da galinha da macumba vale mais do que a vida de milhares de jovens negros”
Mulheres na marcha
Veja o vídeo abaixo para saber mais sobre a manifestação.
Segundo uma pesquisada realizada pela Secretaria Municipal de Promoção da Igualdade Racial de SP de 2016, 60,6% das pessoas que seguem as religiões de matriz africana são brancos, enquanto os pretos são 13,1% e os pardos, 25,5%. O levantamento mostra que a maioria é de mulheres (56,36%), enquanto os homens chegam a 43,63%.
Durante a marcha em favor do estado laico, no dia 8 de agosto, o Nós, mulheres da periferia esteve presente e conversou com algumas mulheres para entender a importância das religiões de matriz africana para a construção e continuidade da história e ancestralidade do povo negro no Brasil.
Para Bianca Santana, professora universitária, as religiões de matriz africana deveriam ser consideradas patrimônio cultural da humanidade, uma vez que o culto aos orixás e celebrações trazem o modo como negros comungam entre si. “Essa é uma defesa que precisa ser feita não só pelas pessoas que praticam a religião de matriz africana, mas por todas as pessoas, porque é nosso direito humano de existir. Até nossa religiosidade tem que ser questionada?”, pontua.
Bianca relembra, ainda, que o questionamento do STF sobre a prática no Rio Grande do Sul abre mais um espaço para o racismo institucional presente no Brasil, uma vez que o uso dos animais não chega nem próximo da crueldade presente nos processos utilizados pelo agronegócio no país.
“Se fosse sobre animais, seria proibido vender carne de bicho em bandejinha no mercado, se fosse sobre o direito dos animais, o agronegócio não faria o que faz, o sofrimento que acontece com os bichos. No candomblé, os bichos são respeitados porque eles são alimento e nutrição para o povo. Não é sobre os animais, é sobre racismo. É sobre racismo religioso”, reforça Bianca.
Para a historiadora Cidinha Silva, esta é uma medida absurda e vem acompanhada do pacote de perda de direitos que o Brasil vem vivenciando nos últimos anos. “Os setores negros e periféricos já vivenciam isso há muito tempo, não é novidade, a novidade é pra pessoas que estavam de fora se dando ao luxo de não ver essas coisas acontecendo, que são seculares”.
Marina Rara, jornalista e produtora, pertencente a um terreiro na Brasilândia, zona norte de SP, também estava em marcha no dia 8. Para ela, essa é mais uma forma que a sociedade com mentalidade ainda escravista tem encontrado de silenciar a voz da população negra e sua história.
Em sua opinião, recursos como esse validam as violências que os terreiros sempre sofreram e ainda sofrem.
“Pessoas são violentadas, terreiros são destruídos. Esse recurso legitima a violência. Quando negam nossos direitos de ter nossa religião e nossos rituais, de comer nossa comida ou o nosso preparo, isso não é um registro desse modo escravista que a sociedade tem de dizer que não temos o direito de ter religião”.
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