Foto do bairro Itatinga, em São Sebastião, mostra enxurrada de lama

Chuvas em São Sebastião (SP): ‘eu só queria salvar os meus filhos’

Conversamos com Zuleide Pereira, moradora de Itatinga, bairro de São Sebastião (SP) atingido pelos deslizamentos de terra recentes, e com Ana Gabriela, do Coletivo Caiçara, que atua na região desde 2018.

Por Amanda Stabile

24|02|2023

Alterado em 02|03|2023

A cozinheira Zuleide Pereira Alves, de 38 anos, tinha dado à luz há apenas sete dias quando viu o morro em que morava, no bairro de Itatinga, em São Sebastião (SP), desmoronar durante as chuvas. “Tinha muita lama arrastando carro, moto, cano de água… Essas coisas que desceram o morro ficaram estacionadas na porta da minha casa, tampando a minha passagem”, lembra. 

Ela então conseguiu sair por um vão e correr para a casa da sogra de sua irmã. “Acordei todos que estavam lá e voltei para minha residência”, conta. Depois que os donos dos carros conseguiram tirar os veículos da frente da casa, uma segunda onda de lama desceu o morro.

“Antes disso tudo acontecer, a Defesa Civil tinha subido até as casas e dado meia volta. Eles nem desceram da viatura para saber como ficava o morro lá em cima”, denuncia.

Assim como a família de Zuleide, diversas outras moradoras do litoral norte de São Paulo viram suas casas, seus pertences e suas conquistas serem soterradas durante o último fim de semana. Até agora, 54 pessoas foram encontradas mortas por causa da tragédia. 

Com a ajuda do marido e da madrinha e do padrinho de sua filha, Zuleide pegou suas crianças e evacuou a casa. Voltaram então para a casa da sogra de sua irmã e ficaram monitorando o desastre. 

“Desceu muita lama e pedra grande. No meio das enchentes tinha até botijão de gás vazando. Vimos descer geladeira, fogão, ventilador e as casas desmoronando morro abaixo”, conta.

“Foi a hora do desespero, a sensação era de que a gente ia morrer soterrada”.

Em meio ao desespero, eles ainda conseguiram salvar duas famílias e acordar aquelas que estavam dormindo. “Toda vez que aquele morro cedia, eu pegava minha neném de sete dias e só queria salvar os meus filhos”, lembra.

Tudo isso aconteceu de madrugada, por volta das duas horas da manhã. Quando o dia amanheceu, Zuleide tentou  pedir ajuda, mas não teve sucesso imediato. “Ligávamos nos números de resgate e estavam todos ocupados. Quando me atendiam perguntavam se tinha vítimas. Graças a Deus não teve”.

Desde domingo (19), a família está alojada em uma escola. Mas até o momento não tem informações sobre o que poderão fazer após o abrigo temporário. Para arrecadar dinheiro para reerguer suas vidas, Zuleide criou uma vaquinha online. Contribua aqui!

A ajuda tem chegado a quem precisa?

A casa de Ana Gabriela Araújo, em São Sebastião, não foi atingida pelos deslizamentos de terra nem pelas enchentes. Apesar disso, a ativista tem atuado para ajudar aqueles atingidos pelo evento climático mais extremo da história recente na região.

Além de professora e doutora em Ciências do Sistema Terrestre, Ana é integrante do Coletivo Caiçara, formado em 2018 por 18 famílias caiçaras da cidade para lutar pelos direitos à cultura e ao território. Desde 2020, o agora movimento social é composto por cerca de 50 famílias, entre pescadores, artesãos e agricultores, dos municípios de  São Sebastião, Ilhabela e Caraguatatuba.

“De imediato fomos até a casa de famílias caiçaras para confirmar a situação, pois não tínhamos comunicação. Também fizemos arrecadação e entrega de insumos urgentes e necessários e apoiamos os centros de desabrigados”, conta. O coletivo, inclusive, participou da retirada de lama do bairro do Itatinga, onde Zuleide morava com sua família. 

“Nós ainda mobilizamos embarcações de nossos integrantes para logística de transporte de passageiros e materiais. E estamos somando na produção de marmitas para os trabalhadores e voluntários”.

Mas a ativista pontua que a atuação do grupo para evitar desastres como esse começou bem antes do último final de semana. “Desde 2019 estávamos trabalhando com ações preventivas de redução de vulnerabilidade a esses desastres hidrológicos, só que não houve um suporte da gestão pública”, aponta.

Na última quinta-feira (23), o coletivo esteve em dois locais da cidade extremamente afetados pelos deslizamentos: Boiçucanga e Barra do Sahy. Na leitura de Ana, infelizmente não tem chegado muitas ajudas e doações àqueles que mais precisam.

“O problema na gestão da crise é logístico. Não tem uma coordenação, um comando ou uma lógica organizativa. Tudo acontece de forma confusa, caótica e desesperada”, alerta.

Para ela, isso gera uma situação de insegurança para a população. “Ouvimos relatos de saqueamentos, de pessoas que se aproveitam de quando encosta uma caminhonete para carregar as coisas. Não estamos tendo segurança na informação de que as coisas estão chegando na mão de quem está precisando”.

O Coletivo Caiçara também acompanha e fortalece campanhas para a Aldeia do Rio Silveiras, localizada na divisa entre os municípios de São Sebastião e Bertioga. O território Guarani, que tem cinco aldeias e é habitado por mais de 500 pessoas, foi inundado após as chuvas. 

Segundo alerta divulgado pela Articulação dos Povos Indígenas da Região Sudeste (ArpinSudeste) em conjunto com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), as aldeias da  Terra Indígena Ribeirão Silveira estão aceitando apoio via pix pelo CPF do cacique Adolfo Timotio: 133.346.368-52. O cacique reside na aldeia indígena Guarani Rio Silveiras.

“Eles perderam muitos móveis e alimentos e estão alojados nas casas mais altas. Nós constatamos que não há uma logística da cidade direcionada à aldeia. Nada está indo diretamente para lá, eles estão atendendo primeiro as áreas urbanas do município”, aponta Ana.

Após a constatação, o movimento começou a divulgar e potencializar as campanhas autônomas de doação para as aldeias.

“Esse é um ponto de preocupação, considerando que essa é historicamente uma população invisibilizada que nessa situação fica ainda mais vulnerável”, alerta.

Uma negligência histórica

A ativista aponta que o desastre é fruto de uma negligência histórica, incluindo a questão do racismo ambiental, da especulação imobiliária e da segregação urbana. Além disso, ela alerta que apesar dos verões chuvosos terem sido previstos, não houve a elaboração de um plano municipal de prevenção.

“É sempre usada a lógica de remediar o prejuízo e culpar a chuva. E, nesse sentido, são feitas escolhas. Se escolhe priorizar a lógica do capital, baseado no turismo de massa”, explica Ana.

“A prefeitura ignorou o alerta dado pelo CEMADEM [Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais] e pagou o risco com a vida dessas pessoas”.

“Além disso, com tudo que está por vir não há nenhuma política consolidada que pense no pós-desastre. Então a gente tá sofrendo desde o evento em si, mas a recuperação ainda vai ser muito lenta e danosa”, conclui a ativista.

Como ajudar as famílias no litoral norte de São Paulo?

O Fundo Social de São Paulo está recebendo doações presenciais, das 8h às 17h, em seu depósito, localizado na Avenida Marechal Mário Guedes, 301, no Jaguaré. Para a doação de quantias em dinheiro, é possível fazer o pix para a compra de cestas básicas utilizando a chave CNPJ/MF nº 44.111.698-0001/98; e para a compra de cobertores, a chave-pix é doacoesfussp@sp.gov.br.

Diversas organizações da sociedade civil também estão arrecadando recursos para a reconstrução do território e a ajuda às famílias. Para doar para o Coletivo Caiçara, é só contribuir com qualquer valor via pix: coletivocaicarass@gmail.com.

Confira demais pontos de arrecadação presencial.