Centro-Oeste: sem acesso ao aborto legal, corpo da mulher vira território do abandono

O direito à interrupção da gestação é atravessado por quilômetros de estrada, julgamentos morais e uma rede pública despreparada

Por Redação

23|10|2025

Alterado em 27|10|2025

Com mais de 1,6 milhão quilômetros de extensão e população feminina superior a 8 milhões, o Centro-Oeste tem 30 serviços de aborto legal cadastrados, mas apenas 8 deles tiveram atendimento confirmado pelas respectivas secretarias estaduais ou pelo próprio serviço. As grandes distâncias somadas à escassez de oferta formam uma barreira adicional para quem precisa interromper uma gestação dentro dos critérios permitidos em lei.

Pessoas que engravidaram em decorrência de estupro, que gestam fetos anencéfalos ou correm risco de morte devido à gravidez, precisam enfrentar longas viagens para chegar a um hospital que realiza aborto legal. O caminho pode durar dias, custar caro e aprofundar o sofrimento de quem já está em situação de vulnerabilidade; jornadas exaustivas que podem influenciar na desistência do atendimento.

>> Esta reportagem faz parte do projeto Aborto e Democracia, da Artigo 19 e AzMina, que investiga as barreiras de acesso aos direitos reprodutivos em cada região do país. A série de cinco reportagens (uma por semana) se soma ao novo Mapa do Aborto Legal, atualizado pela Artigo 19, como ferramenta para garantir o aborto legal no Brasil. As matérias foram produzidas em parceria com os veículos feministas: Paraíba Feminina, Portal Catarinas e Nós, Mulheres da Periferia.

Patrícia Ferreira, assistente social do Hospital Universitário Maria Aparecida Pedrossian (Humap), em Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, observa que mulheres adultas do interior geralmente chegam ao serviço de aborto legal da unidade usando ônibus e outros meios de transporte próprios. Já quando são crianças e adolescentes há geralmente uma comoção maior dos órgãos de proteção, o que facilita o acesso ao transporte por meio da secretaria de saúde municipal.

Para quem mora nas regiões ribeirinhas do Pantanal, no Mato Grosso do Sul, e precisa ir até o Humap, em Campo Grande, a viagem dura no mínimo 12 horas, sem contar o tempo de espera entre os meios de transporte. O primeiro passo é ir até Corumbá, um trajeto que pode levar mais de seis horas de barco. A isso, somam-se cerca de seis horas de viagem por estrada para percorrer os 430 quilômetros de Corumbá até Campo Grande.

No Mato Grosso, nove serviços estão listados no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), o que não dispensa a necessidade de grandes deslocamentos. A partir de Colniza (MT), um dos municípios mais isolados do Brasil — na fronteira com Rondônia e Amazonas —, são 1.050 quilômetros por rodovia até Cáceres, onde fica o serviço cadastrado mais próximo. Uma viagem de 15 horas de carro ou 28 horas de ônibus.

O estado mais populoso da região, com 7,2 milhões de habitantes (IBGE), Goiás só realiza aborto legal na capital, Goiânia, e em uma outra cidade próxima, Senador Canedo. Quem mora em São Miguel do Araguaia tem que percorrer uma distância de 540 quilômetros até o Hospital Estadual da Mulher Jurandir Freire – HEMU, em Goiânia.

Para quem sai de Campos Belos, o serviço de aborto legal mais próximo é o Hospital Materno Infantil de Brasília Dr. Antônio Lisboa (Hmib), no Distrito Federal, a cerca de 410 quilômetros. A distância do município até Goiânia é 200 quilômetros maior (610 km).

Via crucis vai além da distância

No Centro-Oeste e nas demais regiões do país, a distância a percorrer para chegar ao serviço de aborto legal é apenas uma das dificuldades enfrentadas. Desinformação de servidores de diferentes instâncias públicas, objeção de equipes de saúde, fundamentalismo religioso e o estigma que ainda cerca o aborto são alguns dos obstáculos cotidianos.

Mesmo gerando a comoção que facilita o deslocamento até os hospitais, crianças e adolescentes muitas vezes esbarram na desinformação nos serviços públicos. Uma conselheira tutelar do Mato Grosso do Sul, que não quis se identificar, conta que há alguns anos, uma menina deu entrada em uma UPA gritando com fortes dores na barriga. Durante a consulta foi verificado que a criança, de apenas 12 anos, estava grávida.

O caso chegou ao conselho tutelar por meio da denúncia de familiares, quando constataram que a menina sofria abusos sexuais há muito tempo. O estupro de vulnerável, como o Código Penal tipifica qualquer relação com menores de 14 anos, ocorria com o consentimento da mãe, que acreditava que a criança não podia engravidar.

A conselheira afirmou que a gravidez já estava em estágio avançado, cerca de cinco meses, e atribuiu a isso a negação do aborto legal, embora a legislação não estabeleça limite de tempo gestacional para a realização do procedimento. Logo, essa menina foi desencaminhada do serviço por um órgão que deveria facilitar o acesso a ele, e teve que levar a gestação até o final.

Tempo de gestação

A assistente social Patrícia Ferreira reconhece que o Humap já limitou o acesso por conta do tempo de gestação, devido a um entendimento inicialmente equivocado da nota técnica lançada pelo Ministério da Saúde em 2022, durante o governo de Jair Bolsonaro. Atualmente, após orientação da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), o atendimento é feito independente do número de semanas de gestação.

O obstetra Ricardo Gomes, médico responsável pelo serviço de aborto legal na capital do Mato Grosso do Sul, explica que, acima de 22 semanas, a recomendação da Febrasgo é fazer a indução do óbito fetal dentro do útero e depois fazer o aborto. No entanto, ele afirma que esse procedimento de assistolia fetal não é oferecido em Campo Grande desde 2023, por falta de profissionais especializados. Nestes casos é necessário encaminhar a paciente para outro estado.

Mesmo quando o aborto legal não requer assistolia, e é feito via curetagem e aspiração uterina (procedimentos mais comuns no Brasil), o Humap tem restrições estruturais e de equipe para atender à demanda. Ricardo conta que o procedimento é realizado uma vez por semana, com duas vagas neste dia. Com isso, já chegaram a ter uma fila de espera de um mês e meio.

Quando Ricardo entra de férias a situação piora, pois o serviço é suspenso até o seu retorno, pois os outros médicos da unidade alegam objeção de consciência para não realizar o aborto legal.

Entre 2023 e 2024, o Ministério da Saúde registrou 88 abortos legais em Mato Grosso do Sul. Em Goiás, onde ocorreram 985 internações no período em decorrência de aborto — espontâneo ou provocado, com ou sem especificação legal —, os dados do MS apontam 145 procedimentos.

Em Mato Grosso, apenas 43 mulheres tiveram acesso ao aborto legal no período, segundo o Ministério. No Distrito Federal, que tem apenas um serviço cadastrado, a pasta aponta que 297 procedimentos foram realizados, revelando grande variação dentro da mesma região do país.

Falta de acolhimento e preconceito

Estela Márcia Scandola, professora, pesquisadora e doutora em Serviço Social, ressalta o desconhecimento do próprio corpo entre os fatores que impedem o acesso ao aborto legal. As meninas são vítimas de um sistema que não oferece informações confiáveis nem espaços de acolhimento adequados. Quando passam por uma situação de abuso sexual, muitas demoram a entender o que está acontecendo, que está gestando.

A professora diz que, ao buscar ajuda, essas meninas se deparam com duas instâncias decisivas: a família e a escola. “A possibilidade grande é a condenação dessa menina — não por estar grávida, mas por ter feito sexo, independentemente de ter sido um estupro.”

Ao longo de sua atuação como assistente social, Estela conta que acompanhou diversos casos marcados por negligência e violações dentro da rede pública. Em Mato Grosso do Sul, ela lembra de situações em que crianças e adolescentes do interior, mesmo com o direito ao aborto legal, foram desviadas do atendimento por profissionais despreparados ou mal-intencionados.

Em uma das situações, uma conselheira tutelar saiu da paralisia institucional e acompanhou de perto uma adolescente até a realização do procedimento. No entanto, o sigilo foi rompido por outra conselheira, que ligou para uma rádio comandada por um conhecido dela, da igreja, e relatou o caso. A exposição trouxe consequências graves. A adolescente precisou deixar a cidade, e a conselheira que a acompanhou sofreu represálias dentro da própria rede.

Uma rede de proteção bem estruturada é crucial para assegurar o acesso ao aborto legal com acolhimento, orientação, atendimento clínico e acompanhamento pós-abortamento de forma eficaz e respeitosa. Mas Adriano Ferreira Vargas, presidente da Associação de Conselheiros Tutelares do Mato Grosso do Sul, admite que a formação é muito precária e o poder público raramente oferece capacitações.

Revitimização afasta dos serviços

Para as pessoas adultas, estar nos municípios onde o aborto legal é oferecido não garante um acesso fácil e simples ao procedimento. Em Campo Grande, as vítimas de violência sexual ainda peregrinam por diversos serviços, como delegacias, UPAs e Instituto Médico Legal, tendo que contar sua história repetidamente.

“É uma revitimização dessa mulher que precisa contar essa história várias vezes, para diversas pessoas, para se descobrir o que fazer com ela. Mas é uma realidade, principalmente no interior do estado, em que esses marcadores são mais presentes”, comenta Taís Soares Ferretti, defensora pública do Mato Grosso do Sul. Ela atua no atendimento às mulheres vítimas de violência de gênero na Casa da Mulher Brasileira de Campo Grande.

Esse fluxo, no entanto, não deveria ocorrer dessa forma, conforme orientação do Ministério da Saúde e a legislação vigente. A Norma Técnica de Atenção Humanizada às Pessoas em Situação de Violência Sexual e a Lei do Minuto Seguinte estabelecem que a vítima deve ser acolhida por equipes multidisciplinares em um serviço de referência, garantindo que relate sua história apenas uma vez, de forma humanizada e sem burocracia.

Segundo Taís, na Casa da Mulher Brasileira existem diversos órgãos de atendimento a mulheres vítimas de violência. Para evitar que a vítima tenha que passar pelo processo de revitimização dentro desse espaço, a defensoria procura, através do Nudem (Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher), dar encaminhamentos qualificados.

Religiosos e profissionais reforçam estigma

As pessoas que realizam aborto legal também acabam expostas a constrangimentos por parte de grupos religiosos que atuam dentro de ambientes hospitalares. O Humap, que integra a Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), recebe ONGs e grupos religiosos que cantam nos corredores e pedem licença para orar nos leitos dos pacientes.

Em um caso recente, relatado por um profissional do Humap-UFMS, uma paciente que aguardava o procedimento de aborto legal ouviu os louvores e saiu do quarto. No corredor, ela foi abordada por uma mulher e acabou revelando o motivo de sua internação. Essa interação quase levou a paciente a desistir do procedimento.

A equipe do hospital orienta as pacientes a evitar sair, pois “todos sabem que o leito X é onde internamos os casos de violência sexual”, o que gera uma “rotulação do quarto”.

Em alguns casos, a estigmatização é alimentada pela própria equipe de saúde. Uma funcionária que atende no Mato Grosso do Sul conta que já presenciou desassistência proposital a paciente que já havia expulsado o feto. A mulher teve um sangramento e passou por uma internação mais longa do que o necessário porque alguns profissionais argumentaram objeção de consciência.

A objeção de consciência é um direito previsto na Resolução CFM Nº 2.232/2019, que permite que profissionais de saúde se recusem a realizar um procedimento com base em suas convicções pessoais, mas não é absoluto. O médico não pode negar atendimento quando a paciente estiver em situação de urgência ou emergência; quando não houver outro médico disponível para substituí-lo; ou quando a recusa colocar a saúde ou a vida da paciente em risco imediato.

Sendo assim, a objeção de consciência não pode ser usada como justificativa para negar etapas essenciais do atendimento, como exames, prescrições ou continuidade do cuidado iniciado. “Ele (o médico) pode se negar a iniciar o procedimento, mas a partir do momento em que foi iniciado, não pode interromper”, explica Ricardo Gomes, citando diretrizes da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).

Um cerco simbólico de leis e projetos

Como se não bastassem as diversas barreiras já existentes, deputados estaduais e vereadores do Centro-Oeste têm apresentado projetos que reforçam estigmas e criam constrangimentos institucionais para quem precisa do aborto legal.

Em Mato Grosso, o avanço de pautas conservadoras ocorre de maneira articulada, com atuação forte da Frente Parlamentar Estadual “Pró-Vida” na Assembleia Legislativa. Esse tipo de frente cria uma ambiência de vigilância que interfere no comportamento de gestores, profissionais de saúde e educação.

Em janeiro de 2024, a Assembleia Legislativa do Estado de Goiás instituiu a Lei Estadual nº 22.537/2024, que cria a “Campanha de Conscientização Contra o Aborto para as Mulheres”. A lei prevê que o Estado promova ações como a realização de ultrassonografias com batimentos cardíacos do feto, a criação de um “Dia Estadual contra o Aborto” e estimule a iniciativa privada e ONGs a prestar assistência a mulheres grávidas que manifestem o desejo de abortar.

A Lei, no entanto, não específica quais tipos de entidades podem prestar esse atendimento. Isso abre brechas para instituições religiosas e movimentos conservadores tentarem persuadir pessoas que já estão fragilizadas a desistirem de acessar o aborto legal.

Enquanto isso, as propostas nacionais que poderiam contribuir para mudança deste cenário, como a PL 2520/2024, que busca garantir a disponibilidade de profissionais qualificados para a realização de abortos legais, seguem sem apoio ou visibilidade no Centro-Oeste. O projeto de lei determina que, nas unidades públicas de saúde em que houver apenas um médico e este se recusar a realizar o procedimento, a unidade deverá solicitar imediatamente outro profissional.

Texto por Maria Gabriela Dias e Jane Fernandes – Revista AzMina