No camarote da vacina privada, pretas e faveladas não entram
A socióloga Valeria Correia e as conselheira de saúde Ortência Souza e Raquel Plut Fernandes discutem os impactos da nova diretriz que dá maior flexibilidade para que o setor empresarial compre vacinas contra Covid-19.
Por Bianca Pedrina
13|04|2021
Alterado em 13|04|2021
Não faltaram palavras para os possíveis “privilégios” que algumas pessoas poderão ter com a aprovação da compra de imunizantes contra a Covid-19 pelo setor privado.
Apelidado de “camarote da vacina”, o projeto de Lei 948.2021 foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 6 de abril, com 317 votos favoráveis, 120 contrários e duas abstenções, e segue, agora, para o Senado, sem previsão de votação.
Especialistas da área da saúde sinalizam que essa nova diretriz poderá aprofundar o abismo social já existente no país, agravado pela pandemia. Apontam para uma possível divisão entre os que poderão pagar e os que não, já que a lei pode ampliar desigualdades e afetar os mais pobres, que dependem majoritariamente do SUS (Sistema Único de Saúde). Cerca de 71,5% da população depende do serviço, de acordo com dados constam da Pesquisa Nacional de Saúde, divulgada hoje pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
A medida aprovada pela Câmara alterou a Lei 14.125, publicada em março, que já previa a compra de vacinas. Agora, com as novas regras, existe maior flexibilidade para que o setor empresarial compre o imunizante, com algumas contrapartidas.
Pelas normas aprovadas em março, até que todo o grupo prioritário seja vacinado por meio do Plano Nacional de Imunização, todas as doses compradas por empresas teriam que ser doadas ao SUS. Após esse segmento ser imunizado, as empresas poderiam ficar com 50% do imunizante e seguir doando os outros 50%.
Com a mudança, os imunizantes comprados pelos empresários podem ser usados de imediato, sem aguardar a vacinação dos grupos prioritários.
Entre os pontos polêmicos do projeto está a autorização para que empresas possam comprar vacinas aprovadas por órgãos reguladores internacionais, mesmo que não tenham sido regulamentadas pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
A Lei também prevê o abatimento no Imposto de Renda de empresas que comprarem a vacina. Com isso, o custo das doses adquiridas pelo setor será absorvido pelos cofres públicos.
As empresas poderão adquirir o imunizante para seus executivos, diretores, funcionários e seus familiares, sem diretrizes estabelecidas de como será feita a fiscalização desta ação.
Valéria Costa Correia, 59, doutora em Serviço Social pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), integra a Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde. Crédito: Arquivo pessoal.
Valéria Costa Correia, 59, doutora em Serviço Social pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), integra a Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde, afirma que “a medida não protege a população da periferia, os desempregados, os que estão no setor informal e até as pequenas empresas”.
Segundo a assistente social, as pessoas majoritariamente impactadas pela crise sanitária, e que são atravessadas por questões raciais, sociais e de gênero não serão beneficiadas com essa nova Lei.
A pesquisadora se refere aos 14 milhões de desempregados, somados aos 34 milhões de pessoas em trabalhos informais, de acordo com o IBGE.
Crédito: Joel Rodrigues/ Agência Brasília.
Acesso universal à saúde
Ela explica que a medida provocará uma quebra no acesso igualitário à saúde. “Do ponto de vista ético e humano é uma perversidade essa aceitação. Vai prejudicar o abastecimento; uma vacina a mais para o setor privado será uma a menos para a rede pública”, reforça, completando que essa medida também fere “o princípio constitucional do SUS que é o acesso universal e igualitário à saúde“.
Valéria entende que as pessoas só querem ser vacinadas, mas existem outros contextos quando é proposta a privatização de algo que deveria ser garantido para todos e todas.
Sobre as intenções por trás dessa aquisição dos empresários, ela enxerga como apenas privilégios para alguns.
“Os empresários vão proteger a si mesmo, vão proteger a sua família, os seus, o andar de cima, com a justificativa de vacinar os seus funcionários. É o camarote da vacina”.
Atraso no calendário de vacinação
Outro ponto de atenção para a medida é o fato de que o calendário de vacinação no país está lento, com apenas 4,4% da população imunizada com as duas doses, de acordo com dados coletados pelo Monitora Covid-19, da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).
Essa situação poderia ser diferente, defende Valéria, se o governo tivesse tomado as devidas medidas para a compra de vacinas no ano passado. “Existe o negacionismo da própria imunização, porque em maio do ano passado, existiu uma coalizão viabilizada pela OMS [Organização Mundial da Saúde] para que os países do mundo inteiro já garantissem doses de vacinas que estavam em estágio de aprovação. Neste processo, o país poderia pedir até o número total de vacinas pra cobrir 50% da sua população. O Brasil pediu apenas 10%, que era o mínimo, e aderiu apenas em outubro”, explica.
Além disso, existe uma disputa mundial para a aquisição das vacinas que, em sua avaliação, no Brasil, esse atraso foi agravado.
Segundo levantamento feito pela Oxfam Committe for Famine Relief (Comitê de Oxford para Alívio da Fome), divulgado em setembro de 2020, os países ricos, que possuem apenas 13% da população mundial, compraram 51% das doses das vacinas ainda em desenvolvimento. A projeção é que dezenas de países, sobretudo os mais pobres, poderão ficar sem a vacina até 2022.
“Processo de imunização deve ser coletivo, não individualizado”
Outra preocupação apontada por Valéria é a quebra no processo de imunização que deveria ser coletivo e não individualizado. “Tem que ter uma direção única em determinado ritmo e coordenado pelo SUS, por meio do Programa Nacional de Imunização.”
Valéria deu o exemplo da fila dos transplantes de órgãos no país, que é feito pela rede pública. “As pessoas não podem furar fila, e é nacional, se você permitir que o setor privado interfira, fura a fila quem pode pagar”, argumenta.
A pressão social, inclusive entre empresários e classes mais abastadas, para que o governo dê celeridade ao calendário de vacinação é outro ponto que poderá ser afrouxado, com a possível compra do imunizante.
Mesmo com parte minoritária sendo beneficiada pela Lei, podendo ser vacinada pelas vias pagas, Valéria avalia que o problema não será resolvido, porque só se controla a pandemia quando pelo menos 60% da população estiver imunizada. “Os empresários não estão pensando no trabalhador e sim em continuar movimentando a economia que favorece a eles. É um trabalhador em função do lucro dele”, avalia.
“Desde quando o empresário se preocupa com o trabalhador?”
Ortência Souza Rojo, 62, conselheira do Fórum de Saúde do Campo Limpo. Crédito: arquivo pessoal.
A conselheira de Saúde do Campo Limpo, zona sul da cidade de São Paulo, Ortência Souza Rojo, 62, assim como Valéria, não enxerga boa finalidade nesta Lei. “Desde quando o empresário, um homem rico, se preocupa com o trabalhador? Podemos ver com os salários de fome que eles pagam”, elenca.
“A intenção que eles têm é com eles mesmos, é com o dinheiro deles. A classe está dividida, a classe empresária que tem o dinheiro e a classe operária que faz a máquina fazer o dinheiro”, aponta. “Eu não acredito em boa finalidade, porque os empresários só pensam em dinheiro ou fazem com que a população trabalhe mais, se escravize mais”, alerta.
A conselheira, que é uma mulher negra, reconhece que para quem mora na periferia as coisas não chegam como para os ricos de pele branca. Mesmo com o calendário atual, em sua avaliação, está sendo menos eficaz para idosos da periferia.
Segundo levantamento feito pela Folha de São Paulo, a população com 70 anos ou mais nos distritos periféricos foram menos vacinadas em comparação com bairros nobres.
Nos distritos com IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) baixo, nesta faixa etária, 58% dos idosos foram vacinados. Em contrapartida, nos 10 distritos com menor mortalidade, dos quais 8 têm IDH muito alto, 75% receberam o imunizante.
Para Ortência, as energias devem ser empregadas em saúde pública e não em privilegiar o setor privado. “Isso vai colocar o muro entre os que podem pagar e os que não podem vão continuar morrendo, se infectando e passando para outras pessoas. É mais uma discriminação contra nós, mulheres negras”.
Ortência avalia que a medida é um passo à frente para o desmonte do SUS. “Para acabar com o sistema que está à serviço da população mais pobre, periférica. Não é tudo que a pessoa precisa, mas é o que tem, é o que salva”.
Raquel Plut Fernandes, 68, conselheira do Fórum de Saúde do Campo Limpo. Crédito: arquivo pessoal.
A também conselheira do Fórum de Saúde do Campo Limpo, Raquel Plut Fernandes, 68, compactua da mesma opinião. “Essa política é pra matar pobre, tem raça, tem classe. É a política genocida de Bolsonaro de espalhar o vírus”, avalia.
“A única solução é pressão em cima do Bolsonaro, e não querer se salvar sozinho. Até porque, não se salva,”, pontua.
A quebra de patentes
A assistente social Valéria defende que, para viabilizar a imunização a todas as pessoas, é preciso a quebra de patentes da vacina. Esse processo garante o direito de propriedade intelectual, uso e exploração comercial exclusiva. A finalidade seria permitir que os países possam ampliar a produção e garantir atendimento à população.
“O Brasil não participou da reunião mundial que tratou sobre o tema, com posicionamento do governo Bolsonaro contrário a quebra de patentes. A gente vai contra a maré, isso não condiz com todos os princípios de humanidade. E é um absurdo o Governo ter se posicionamento contrário à quebra das patentes, é uma denúncia que a gente faz, tem feito, é preciso quebrar as patentes das vacinas, de uma forma geral”, conclui.
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