Brumadinho: “espero que a vida comece a valer mais do que o lucro”

Joelisia Feitosa fala sobre os desafios que a população de Brumadinho e arredores enfrenta, mesmo após 2 anos do rompimento da barragem do Córrego do Feijão.

Por Redação

23|03|2021

Alterado em 23|03|2021

Meu nome é Joelisia Feitosa. Tenho 56 anos, sou aposentada pelo estado de Minas Gerais. Sou ribeirinha, atingida pelo rompimento da Barragem de Brumadinho (MG),  militante do Movimento pelos Atingidos por Barragens (MAB).

No dia 25 de janeiro de 2019, no momento que aconteceu o crime da Vale, com o rompimento da barragem B-1, no Córrego do Feijão, em Brumadinho, eu estava em Belo Horizonte, no trabalho.

Naquela época, eu ainda não era aposentada. Fiquei muito assustada e a primeira preocupação que me veio foi com a segurança da minha família, pois a minha filha mora bem às margens do Rio Paraopeba (que banha a região). O Rio Paraopeba é o quintal dela.

Eu e minha mãe também moramos bem próximas, mas a uma distância mais segura. Imediatamente larguei o trabalho, fui pra minha casa para ver de perto. Estava preocupada com a chegada do rejeito.

Demorou quase dois dias para a lama chegar por aqui, mas, naquele momento, a gente não sabia, e até pedi a minha filha para desocupar a casa. No final, ela não saiu porque ficou aguardando as notícias. E a gente ficou sabendo que, talvez, a lama não chegasse ou, se chegasse, chegaria num volume menor. Foi o que aconteceu, chegando lentamente e não houve necessidade de sair.

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Rio Paraopeba (MG)

©Nilmar Laje


‘A lama levou as pessoas, plantações e animais’

As notícias iam chegando pra gente pelas redes sociais, pela TV. A gente buscava desesperadamente por notícias. Pra precavermos nossa segurança, nossa saúde. Para entender o quê, por que e como isso tinha acontecido.

À medida que as notícias chegavam, a nossa noção de perda aumentava. Quando a gente viu as tantas pessoas mortas, aquele resgate muito difícil.

Tamanho era o sofrimento e o daquilo tudo, daquela lama que levou as pessoas e levou as plantações, os animais. A gente foi acompanhando aquilo tudo pela TV e a gente foi ficando cada dia mais angustiada.

Logo que a lama chegou por aqui, a cor do rio mudou, o cheiro do rio mudou. Olhávamos de longe, porque tinha medo. Mas percebemos a devastação da fauna, dos peixes, da flora e, quando os dias foram passando, a morte das plantações.

Um levantamento da Fundação SOS Mata Atlântica realizado alguns dias depois do rompimento, mostra que pelo menos 305 dos quase 550 quilômetros do Rio Paraopeba foram contaminados por rejeitos. Foram 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos, que não apenas poluíram o rio, mas também toda uma comunidade que vivia à base da agricultura e pesca. A Federação dos Trabalhadores da Agricultura de Minas Gerais (Fetaemg) estima que entre 350 e 400 produtores rurais foram impactados.

Um pesadelo que, infelizmente, foi se transformando em realidade. A ficha foi caindo que aquilo era uma triste realidade. Não dá para acreditar que aquelas 272 pessoas morreram de forma tão trágica, sem nenhuma chance de sobrevivência.

Não dava pra acreditar na proporção do sofrimento das famílias, dos amigos, do difícil resgate, que inclusive até hoje não terminou (ainda há 11 pessoas desaparecidas). E saber depois que a perda do rio seria permanente, foi muito doloroso pra todos nós, ainda é.

‘Dói muito a perda de um rio’

Eu particularmente não tive coragem de chegar próximo ao rio. Dói muito a perda de um rio. O rio é um ente que sobrevive, que leva a vida de muitas pessoas, que leva a sobrevivência de muitas vidas: da vida animal, das plantas, do ar, isso reflete na vida como um todo.

Ficamos muito amedrontados sem saber o que fazer. Sem saber o que a lama traria como impacto. Com o passar do tempo, fomos tendo ainda mais incertezas, e isso segue até hoje. 

As nossas vidas foram modificadas pra pior e vai piorando e ficando cada dia mais difícil. Nós viemos de Contagem (MG); há 20 vinte anos optamos por morar aqui em Juatuba, às margens do Paraopeba, atraídos por uma vida saudável, distante da poluição, com alimentação farta, com a possibilidade de termos a nossa própria plantação, nossa horta, nossas galinhas, frutas, tirar o peixe do rio, trazendo uma comida farta e saudável.

É o que realmente a gente tinha até o crime da Vale. Depois do envenenamento do Rio, a Vale acabou com a nossa vida, com o nosso futuro, com nossos sonhos e investimentos. É o nosso sonho que foi desmoronado.

As pessoas vinham pra dividir conosco a alegria que era esse nosso paraíso, às margens do Paraopeba, onde nós fazíamos nossos encontros, cheios de comida, de peixe, de alegria, de reunião, casa cheia e mesa farta.

‘O custo da vida é alto e com a pandemia subiu mais’

Hoje nós vivemos dias de muitas dificuldades, dias e dias de luta. O custo de vida é alto e, após a pandemia, subiu mais. Não podemos mais consumir as plantas, a horta ou criar os animais. Não podemos nem chegar próximo ao rio.

A água de beber precisa ser comprada. A água que chega nas nossas torneiras, fornecida pela Copasa, é uma água suja, mal cheirosa e escura, muitas vezes. Nós somos atacados por diarreia, dores estomacais, alergias, incômodos diversos. Em função disso, nós somos obrigados a ter uma despesa a mais, que é a aquisição da água mineral.

Depois do rompimento, minha filha engravidou e tem um bebê que hoje está com dez meses. Ao contrário dos outros filhos, esse tem diversos problemas. Ele tem uma mancha na pele, problemas constante nos rins e infecção da urina. Temos medo que seja em função da contaminação por metais pesados dada à proximidade que eles moram do rio.

As pessoas sentem na pele, na mente e no corpo a falta d’água, de comida e de trabalho.

Muitas pessoas aqui da comunidade apresentam  esses problemas de pele, como coceiras e alergia. Muita gente que tinha câncer teve a doença agravada. Há muitos com depressão e diversas tentativas de suicídio. As pessoas não têm expectativa, não conseguem mais se planejar, sonhar ou resolver seus problemas diários.

Esta é uma cidade onde o emprego já era difícil, já era escasso. A situação foi se agravando com o crime da Vale e piorou muito com a pandemia. As pessoas sentem na pele, na mente e no corpo a falta d’água, de comida e de trabalho.

Para complicar, os acordos feitos com a Vale não são cumpridos. A empresa se comprometeu a pagar as indenizações emergenciais ao povo ribeirinho que vive na faixa de um quilômetro das margens do rio, mas, infelizmente, a Vale fez o que quis.

Pagou como ela quis, o valor que quis. Muita gente não conseguiu receber até hoje, porque a empresa simplesmente recusou, alegando que os documentos não eram suficientes. E agora, a gente vive sob o risco e a expectativa de que não haja continuidade do auxílio emergencial. Temos muito medo que esse emergencial não tenha continuidade, o que vai trazer uma situação de grande fome, desespero e miséria para o povo da bacia do Paraopeba.

A Vale não fornece água mineral, nem dentro do acordo que fez. A da manutenção da água potável garante a manutenção dos animais e das plantações.  A empresa não quer pagar e não permite nem que o povo se vire e sobreviva. Não dá pra ter plantação, nem animais, porque não tem água. Nós estamos fadados à morte e à fome. A Vale quer que a gente morra sem comida, sem água e sem dignidade.

Nós reconhecemos que realmente houve perdas. Do estado [de Minas Gerais], do município, mas é inconcebível que não se tenha centralidade e atenção na questão dos atingidos, o que deve ser prioridade.

Não se pode fechar os olhos às milhares de pessoas que ficaram vulneráveis, sem trabalho, sem condição de renda. Ignorar isso é um risco muito grande de trazer a fome, o desespero e a miséria pra essas pessoas.

Por aqui, seguimos lutando para que haja um acordo que contemple os atingidos, e para que, no final do processo, nós tenhamos as nossas reparações integrais e também as medidas emergenciais que já foram apresentadas pelas assessorias técnicas independentes sejam imediatamente implementadas, como as alternativas de trabalho, de renda, a questão da água e de saúde.

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População de 27 mineiras foram impactadas

©Nívea Magno/Mídia Ninja

‘União e solidariedade entre atingidos’

Por aqui a gente vem se virando desde que aconteceu o rompimento. A comunidade se une, um ajuda o outro com comida, com remédio. Mas a gente não sabe como será a partir de agora. 

Já existiam pessoas sem receber o emergencial, porque a Vale não pagou. Tem também um grande número de pessoas que foram bloqueadas e já estão passando dificuldades porque estão sem receber há meses. A situação econômica, financeira e de sobrevivência dessas pessoas está sob risco.

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio negou no dia 24 de fevereiro o pedido para que fosse revisto o acordo indenizatório pelo rompimento. O pedido de revisão do acordo foi feito ao STF em 10 de fevereiro por representantes dos moradores das 27 cidades mineiras devastadas pela lama liberada no rompimento da barragem. Os atingidos se sentem prejudicados pelo acordo, uma vez que, dos R$ 37,6 bilhões acordados, apenas R$ 9,17 bilhões se destinam ao auxílio mensal pago às famílias atingidas, aponta matéria do Brasil de Fato.

Mesmo passados dois anos, ainda não houve justa reparação à comunidade atingida. Havia uma ação no valor de R$54 bilhões, sendo R$26 bi para os danos sofridos pelo Estado e R$28 bi aos danos morais e sociais da comunidade.

A Vale se aproveita dessa grande vulnerabilidade, mandando os advogados aqui, nas portas das pessoas que estão em desespero, propondo acordos individuais, com valores irrisórios e que, mesmo assim, não são cumpridos.

As comissões de atingidos, os Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), e as assessorias técnicas independentes têm feito um esforço para levar as informações que temos à população atingida. 

Sabemos que é um desafio manter o povo confiante, principalmente na justiça. Nós tínhamos a promessa que aqui seria diferente de Mariana, porque em Mariana as pessoas ainda estão numa situação muito mais difícil. Nós entendemos que aqui nós tivemos mais conquistas, mas é óbvio que nada próximo de termos os nossos direitos, de termos uma vida digna, de termos o que nós precisamos pra ter uma vida minimamente saudável, digna, que a Vale nos tirou.

Nós seguimos fortalecendo uns aos outros, pois não há outro caminho. Hoje nós temos um outro grande desafio, que é ter que fazer uma luta virtual por causa do agravamento da pandemia, que nos impede de ir pra rua.

A gente não sabe se vai poder ficar aqui, se vale a pena continuar aqui. Mas seguimos com luta, com esperança e fé que haverá justiça, e nós ainda teremos dias menos dolorosos, porque a vida realmente nunca mais será a mesma. Nós sabemos que eu, particularmente, não estarei viva pra ver o meu rio vivo novamente.

Aqui, há muita dificuldade de acesso, porque tem muita gente com restrições tecnológicas, mas a gente segue organizado. Só com muita organização, estratégia, inteligência e fé. Após dois anos do crime, o que nos move é a luta, a esperança pela por punição exemplar e, principalmente, para que a vida comece a valer mais do que o lucro.