No fim da década de 1960, surgiu nos Estados Unidos, um movimento de mulheres que começavam a questionar os padrões de beleza impostos pela sociedade e que exaltavam a magreza. Na década de 1990, a mobilização ganhou o nome com que é conhecida até hoje (body positive ou positividade corporal, em português), após a terapeuta e escritora Connie Sobczak lançar o site The Body Positive.

A partir da plataforma, foi fundada uma organização sem fins lucrativos que atua até hoje, com o “objetivo final de acabar com as consequências prejudiciais da imagem corporal negativa”. Em meados de 2010, a acessibilização da internet ajudou na propagação da filosofia, que conquistou cada vez mais adeptos ao redor do mundo.

Manuela Barbosa, de 31 anos, acha o movimento incrível, pois acredita que o fundamental é nos sentirmos bem independentemente do formato de nossos corpos. A moradora da zona oeste do Rio de Janeiro (RJ) produz conteúdos para a internet há cinco anos e hoje compartilha sua rotina de reeducação alimentar com seus seguidores.

Manu Barbosa: “Eu sei que o meu corpo vai mudar com o emagrecimento, mas que as marcas vão continuar. Amá-las vai ser fundamental para mim nessa jornada”.

©Arquivo pessoal

Ela iniciou esse processo porque, por conta de seu peso, não estava conseguindo realizar atividades básicas do seu dia a dia. “Eu tenho alguns problemas respiratórios, como bronquite, rinite, crise alérgica. Também estava me cansando muito rápido e eu moro no quarto andar, então eu passava o dia inteiro em casa para não ter que descer para o térreo”, conta.

Quando iniciou seus treinos na academia, queria inspirar pessoas a ter uma vida mais saudável, assim como ela se inspirava em outras influenciadoras. E alerta: “no meu perfil eu falo sobre emagrecimento para quem quer emagrecer. Jamais como forma de atrelar o emagrecimento à beleza”.

Manu conta que sua relação com o próprio corpo melhorou muito. Antigamente ela se privava de usar vestidos, por exemplo, porque tinha vergonha de suas coxas, não usava camisetas que não tivessem manga por insegurança com os seus braços.

Foi um processo muito difícil e eu comecei aos poucos, olhando para mim e vendo que esse é o único corpo que eu tenho, então eu não preciso ter raiva dele.

Para atingir esse objetivo, explica, é importante se inspirar em pessoas com realidades parecidas com a sua. “Eu não sigo blogueiras de emagrecimento ou fitness, por exemplo, porque aquelas pessoas estão fora do meu padrão. Não tem como eu me basear numa bodybuilder porque ela trabalha com o corpo. Aquilo pode me gerar diversos gatilhos”, pontua.

Seu objetivo atual é sair dos graus de obesidade, mas, independentemente disso, se amar. Porém, para Manu, ainda existe certo conflito entre a aceitação do corpo e o emagrecimento, mas ela acredita que são coisas que devem andar juntas.

“Um exemplo: eu aceito o meu corpo, as minhas marcas e quando eu emagrecer essas coisas ainda vão ficar, as estrias, a flacidez, a celulite. Me aceitar dessa forma está sendo essencial para mim porque eu sei que o meu corpo vai mudar com o emagrecimento, mas que as marcas vão continuar e amá-las vai ser fundamental para mim nessa jornada de emagrecimento”.

Amar o próprio corpo garante o fim das violências contra ele?

Agnes Arruda: “Somos ensinadas a odiar o próprio corpo, independente de qual seja. No caso do meu, é um corpo gordo, então eu não podia gostar do que eu era desde criança”.

©Arquivo pessoal

Agnes Arruda é jornalista, professora visitante na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autora do livro “O peso e a mídia: as faces da gordofobia” (Alameda, 2021). “Eu costumo me apresentar assim: ‘Oi, meu nome é Agnes e eu sou uma mulher gorda’. Não que ninguém veja que eu sou uma mulher gorda e eu precise falar isso, mas é porque esse marcador de identidade, atravessa todos os outros”, explica.

Ela conta que sempre foi estimulada a negar e apagar essa característica do seu corpo e que, quando se apropriou dela, as coisas mudaram em sua vida. “Eu comecei a me olhar com carinho e cuidado e, consequentemente, a amar outras características que existem em mim”.

Isso, porém, não é algo simples, mas um exercício diário de autoafirmação. “Somos ensinadas a odiar o próprio corpo, independente de qual seja. No caso do meu, é um corpo gordo, então eu não podia gostar do que eu era desde criança”.

Não podemos olhar ou tocar o nosso corpo, temos que cobrir ou transformar. Temos que cortar um pedaço dele ou destruir por dentro.

Agnes também explica que a gordofobia é um preconceito que vai além da pressão estética e ocasiona, inclusive, a privação de direitos básicos. Identificamos o corpo gordo por meio da visão e das referências midiáticas que temos. Por isso, ela pontua a gravidade da invisibilização e estereotipização de pessoas gordas na mídia e na sociedade.

De acordo com pesquisa da Organização Mundial da Saúde divulgada em 2020, mais de 60% da população mundial adulta têm o IMC (Índice de Massa Corporal) acima de 30, pessoas que a organização categoriza como obesas. Além da problemática desse índice, Agnes questiona: onde está essa população ao nosso redor?

“As pessoas gordas não são nem estimuladas a saírem de casa. Não têm roupa que sirva, não passam na catraca de ônibus, não cabem na cadeira do metrô, do cinema ou do bar. Também não são contratadas nas empresas, no mercado de trabalho”.

A partir dessa privação de direitos e da vida em sociedade, é feita uma pressão correcional: se não se adequarem ao padrão, pessoas gordas vão continuar tendo seus direitos violados a cada esquina.

Em relação ao movimento Body Positive, Agnes alerta que é um discurso que precisa de atenção.

Temos que ter cuidado, porque o discurso do ‘ame-se’ não garante o fim das violências.

“Eu vejo como uma porta de entrada para outras discussões elementares a respeito do preconceito. Por exemplo, eu posso falar ‘a sua pele preta é linda’, mas o racismo continua sendo estrutural no Brasil”.

Para a professora, disfarçado como um discurso sobre positividade corporal acontece a responsabilização individual de um fenômeno que é coletivo e que deve ser combatido socialmente. “Ela coloca a pessoa que é vítima do preconceito, como a responsável por lidar com isso. A gente precisa olhar para essa questão pelo ponto de vista macro, social e traduzir em políticas públicas”, aponta.

Gorda na Lei

Rayane Souza: “temos uma massa do movimento Body Positive que se acomoda nesse discurso de autoestima e se sente muito confortável ali, sem se permitir olhar para a problemática maior”.

©Arquivo pessoal

Em 2019, a advogada Rayane Souza criou o projeto Gorda na Lei para auxiliar juridicamente pessoas vítimas de gordofobia. O movimento Body Positive a auxiliou muito em seu processo de autoconhecimento e autoaceitação, mas ela percebeu que não era suficiente falar sobre autoestima sem falar sobre gordofobia.

“Eu também enxergava uma lacuna em relação à discussão jurídica do tema. Então percebi uma oportunidade para criar esse projeto e levar a informação jurídica acessível para esse grupo de pessoas”, recorda.

Rayane então convidou Mariana Vieira de Oliveira, também advogada, para participar do projeto. Hoje, são sócias. “Ela é uma mulher magra e o projeto me traz essa responsabilidade de dizer para a sociedade que a gordofobia é uma luta de todas as pessoas. Então é muito importante ter uma pessoa magra no papel de aliada nesse momento, que leva a pauta para grupos e ambientes nos quais eu não sou muitas vezes ouvida”, conta.

A advogada explica que a relação entre a gordofobia e o movimento Body Positive é muito complexa. Ela acredita que antes de debater direitos e políticas públicas, precisamos passar pelo processo de nos reconhecer, amar, se aceitar e se curar. A partir disso é possível nos empoderarmos para discutir o direito que nos pertence.

“Eu acredito que os dois vão estar ligados sempre. Mas, infelizmente, hoje no Brasil vemos um movimento que se comercializou e se banalizou muito. Então temos uma massa do movimento Body Positive que se acomoda nesse discurso de autoestima e se sente muito confortável ali, sem se permitir olhar para a problemática maior”.

Para ela, isso enfraquece muito o ativismo gordo, porque se essas duas pautas se alinhassem por um único objetivo – garantir direitos e tornar a vida dessas pessoas mais digna – a potência seria muito maior. “O movimento Body Positive se acomodou nesse discurso de autoestima, porque começou a vender muito. Esse discurso é muito mais agradável do que um discurso ativista.

O entendimento de que falar de autoestima é político tem que partir das pessoas que estão nesse movimento.

Um argumento que cercea muito o ativismo contra a gordofobia é o de que estaria “romantizando a obesidade”. Rayane aponta que, além de fantasioso, esse discurso demonstra sinais de insanidade, a maior arma dos preconceituosos.

“Sem essa arma eles não têm nada. Se utilizam desse argumento, muitas vezes de forma sutil, para esconder o quanto se sentem afrontados em ver pessoas gordas – que naturalmente consideram como fracassadas, feias e doentes – serem bem sucedidas, felizes, com trabalho, família, autoestima e saúde”.

Hoje, ainda não temos uma lei federal que tipifique a gordofobia como crime, mas a advogada acredita que estamos caminhando para um futuro em que as mulheres gordas terão seus direitos específicos. Ela pontua que uma das coisas que o Gorda na Lei tem abordado bastante é a questão da violência doméstica contra essas mulheres.

A gordofobia se manifesta muito nas relações conjugais, com a mulher naturalmente oprimida pela pela pressão estética, pela necessidade de estar sempre com o corpo idealizado.

Um exemplo citado pela especialista é a mãe que acabou de ter filho que é pressionada pelo parceiro a perder peso logo. Rayane aponta, ainda, que essa é uma violência muito mais comum entre casais heterossexuais e que pode ser denunciada. “Isso se torna uma violência psicológica, doméstica, e não está fora da Lei Maria da Penha”, alerta.