Autismo e racismo estrutural: a invisibilidade das pessoas racializadas no espectro
Atualmente, estima-se que haja cerca de 6 milhões de pessoas com TEA no Brasil
14|02|2025
- Alterado em 19|02|2025
Por Jo Melo
Ser autista em um mundo como o nosso é complicado, principalmente se você for uma pessoa autista e negra, indígena e/ou não branca: tudo fica um pouco pior, para não dizer terrivelmente desgastante. Atualmente, o número de diagnósticos de autismo tem crescido. Segundo uma estimativa mais atual, no Brasil, há cerca de 6 milhões de pessoas com TEA (feita com base em dados do CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) que dizem que 1 em cada 36 pessoas está no espectro do autismo nos Estados Unidos).
Isso não se dá porque é moda ou porque é “legal” ser autista, mas pela maior compreensão do tema, especialização e até mesmo mais acesso a médicos, psicólogos e neuropsicólogos.
Porém, há algo que, mesmo com tanto avanço, ainda segue intacto: o recorte racial. É muito raro, dentre todo este crescimento, encontrar pessoas pretas e ou indígenas com diagnósticos. É preciso procurar muito e, ainda assim, as informações sobre o tema são escassas.
Invisibilidade no discurso e na representatividade
Os eventos sobre pessoas autistas quase sempre convidam apenas pessoas brancas para falar. Na televisão e nas redes sociais, as pessoas autistas geralmente são representadas como brancas. Por isso, quando uma pessoa negra afirma ser autista, frequentemente enfrentam desconfiança e questionamentos.
Tudo é dito de forma baseada em privilégios que nem todos têm. Não me identifico totalmente com essas narrativas. É claro que, dentro do recorte “autismo”, todos enfrentam dificuldades, mas é importante abrir um pouco a bolha nesse aspecto.
Existem muitas pessoas negras sem acesso à educação. Mulheres negras ganham menos que as brancas, morrem mais na sala de parto e são as que mais sofrem abuso e violência doméstica. Isso não é uma competição de desgraças; é a realidade baseada em números.
Diante disso, é lógico pensar que, devido ao racismo estrutural, há muitos autistas negros e indígenas que ainda não possuem diagnóstico — este que é caro e de difícil acesso para aqueles que não têm condições de arcar com um plano de saúde ou tratamento particular — e, infelizmente, a população negra e racializada faz parte dessa realidade.
Você pode estar se perguntando: “Mas autismo não é tudo igual? Não tem as mesmas dificuldades? Por que separar raça e etnia disso tudo?”.
Primeira coisa: autismo não é igual. Como o próprio nome sugere, é um espectro — ou seja, amplo e diverso. Uma analogia simples para entender o autismo é a diabetes: há pré-diabetes, tipo I, tipo II, cada uma com manifestações, tratamentos e necessidades diferentes. Mesmo assim, ninguém é mais ou menos diabético por conta do tipo da doença; é uma condição que existe e pronto.
Com o autismo, ocorre o mesmo. Quando se leva em conta raça e etnia, o espectro se torna ainda maior. Não é segredo que mais de 56% da população brasileira é composta por pessoas negras e pardas, segundo o IBGE (2022) e, muitas vezes, não têm acesso a metade do que lhes deveria ser garantido. O acesso à educação, lazer e saúde é precário.
Em uma sociedade que mal reconhece o racismo estrutural em si mesma, é ainda mais difícil encontrar soluções para um sistema inteiro que falha em equidade
Jo Melo
Quando falamos de autismo, não é diferente. Muitos diagnósticos não acontecem por falta de acesso financeiro. No SUS, o diagnóstico é possível, mas o processo é demorado, cansativo e, em muitos casos, ainda baseado em conceitos desatualizados, racistas e estereotipados. Há, por exemplo, o diagnóstico preferencial de autismo em níveis de suporte 2 ou 3, deixando casos mascarados sem avaliação (falando de autismo em adultos).
Agora, imagine quantas pessoas racializadas e autistas estão sem diagnóstico, sofrendo diariamente por falta de acesso ou por não se entenderem? “Pesquisas científicas apontam para um número 8 vezes maior na tentativa de suicídio feita por autistas em relação à população em geral. E nesta nossa pesquisa, o número foi alarmante: 7,26% dos autistas já atentaram contra a própria vida. E quando perguntado se um familiar já tentou suicídio, o número é ainda maior: de 17,29%.
Racismo estrutural e o “Autismo azul”
O racismo estrutural reforça a imagem do “autismo azul” — crianças brancas, geralmente meninos, como se o espectro não abrangesse também mulheres, meninas e pessoas negras ou indígenas.
Em entrevista a uma revista, li uma frase do TIo Faso, autista, que resume esta explicação: “Quem é negro está o tempo inteiro pensando em formas de não dar motivos para ser parado pela polícia ou como vai comprovar que está em tal lugar ou em posse de algo pelos motivos corretos. Eu posso ser preso por causa de uma crise e devido à minha dificuldade de falar e acatar ordens nesse momento”.
Essa invisibilidade não é por acaso. É urgente repensar o racismo estrutural que atravessa o diagnóstico e a assistência de pessoas autistas racializadas. Não basta aumentar o número de diagnósticos; é preciso garantir equidade, representatividade e acesso para todos, inclusive para aqueles que sempre foram silenciados.
No próximo encontro, tratei informações detalhadas de como foi o meu processo até chegar ao diagnóstico de autismo. Te espero.
Jo Melo É mãe, jornalista, escritora e fundadora da revista Mães que Escrevem. Especialista em Comunicação/Marketing e Jornalismo Digital, é também mestranda em Estudos Linguísticos pela UNIFESP. Diagnosticada como autista na idade adulta, possui hiperfoco em escrita e linguagens. É Imortal pela Academia Mundial de Letras e autora premiada na Suíça, com os livros Os Cinco Sentidos e Hipérboles. — @jomelo.escritora
Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.
Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.
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