Mulher negra estranha mensagem recebida por celular

Assédio sexual e vazamento de dados: vítima processa Microcamp

A empresa foi condenada a indenizar Letícia Mendes, que foi vítima de assédio sexual online após ter seus dados vazados por um funcionário. Porém, mais de um ano após a decisão, ela ainda espera o pagamento

Por Amanda Stabile

18|12|2023

Alterado em 18|12|2023

Certo dia de 2020, Leticia Mendes, de 31 anos, dirigiu-se à unidade da Microcamp – instituição de ensino que oferece cursos profissionalizantes e de informática – no Tucuruvi, zona norte da cidade de São Paulo (SP), após ver um anúncio sobre os cursos no Instagram. “Na época, eu estava desempregada e vi essa oportunidade como uma chance de estudar inglês por um preço acessível, algo que sempre quis fazer”, explica.

Enquanto esteve nas dependências da empresa, Letícia realizou o pagamento e a formalização da matrícula e conta que recebeu alguns olhares diferentes e comentários como “você é muito bonita” e “você parece uma artista”. Ela agradeceu e deu alguns sorrisos constrangidos, mas não achou nada incomum.

Porém, naquele mesmo dia, por volta 23h, recebeu algumas mensagens assediadoras de um homem desconhecido em seu WhatsApp. “Ele veio falar comigo já abordando o meu nome e dizendo que sabia que eu tinha ido à Microcamp para fechar um curso”, recorda.

Assustada, questionou como a pessoa havia conseguido seu número de celular. “Eu pensei estrategicamente, já que meu pai e meu irmão são advogados, criando uma certa malícia. Eu disse que jogaria um verde para ver se ele falava, e, enquanto ele me elogiava e tentava se desculpar, insisti em descobrir como obteve meu contato”.

Após desviar um pouco da pergunta, o assediador revelou que o funcionário responsável pela matrícula de Letícia na Microcamp havia lhe passado o contato. Ela o bloqueou imediatamente e foi contar o acontecido aos pais.

Minha mãe ficou preocupada. Foi assustador, especialmente no início, porque pensamos que ele poderia ter obtido meu endereço. Fiquei com muito medo.

Pensando em um possível vazamento de dados, Letícia foi à delegacia mais próxima e registrou um B.O. (Boletim de Ocorrência). Após reportar o acontecido à Microcamp, Letícia conta que a empresa ofereceu a ela a opção de fazer o curso normalmente. Mas ela recusou e pediu que devolvessem o dinheiro que havia pago na matrícula.

Foto mostra Letícia Mendes, mulher negra, sorrindo para a câmera

Letícia Mendes, que recebeu mensagens assediadoras após vazamento de seus dados por um funcionário

©Arquivo pessoal

“Eles provavelmente pensaram que ao pegar o dinheiro de volta, eu não entraria com o processo. Fui agindo como se nada estivesse acontecendo, peguei meu dinheiro, mas não disse nada. Surpreendentemente, o cara ainda estava trabalhando lá no dia seguinte, o que achei estranho e absurdo”, aponta.

Por meio da indicação do irmão, Letícia entrou em contato com Renan Buzzetto, da Buzzetto Advocacia & Consultoria Jurídica, para defendê-la no caso. “Ele agiu rapidamente, iniciando o processo. Porém, pouco tempo depois, entramos em quarentena devido à pandemia, e o processo ficou atrasado”, explica.

Vazamento de dados é crime, assédio sexual também

Desde 2020, vigora no Brasil a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade das pessoas.

A legislação prevê que, em caso de vazamento dos dados pessoais pelas empresas, é obrigatória a notificação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e dos titulares dos dados afetados. Além disso, as organizações são responsáveis por adotar medidas para mitigar os danos causados pelo vazamento e estão sujeitas a penalidades em caso de descumprimento da lei.

 “Os vazamentos individuais ou os acessos não autorizados de que trata o caput do art. 46 desta Lei poderão ser objeto de conciliação direta entre controlador e titular e, caso não haja acordo, o controlador estará sujeito à aplicação das penalidades de que trata este artigo” – Lei nº 13.709/18 Art. 11 § 7º”

“O vazamento de dados é um crime de responsabilidade das empresas. As pessoas, no geral, se cadastram ou fazem, como no caso da Letícia, a matrícula para um curso, e todos esses dados captados não podem ser repassados para ninguém. Por meio do acesso a essas informações, as pessoas podem cometer crimes, seja de ordem financeira ou, como nesse caso, assédio sexual”, explica o advogado Renan Buzzetto.

Desde 2001, assédio sexual é crime no Brasil, a partir da promulgação da Lei nº 10.224, que incluiu o artigo 216-A no Código Penal. Essa violência é caracterizada como ato de “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”.

Já a Controladoria-Geral da União (CGU) explica que o assédio sexual se caracteriza por toda conduta indesejada de caráter sexual que restrinja a liberdade sexual da vítima. Nesse sentido, pode ser manifestada fisicamente, por palavras, gestos ou outros meios, propostas ou impostas a pessoas contra sua vontade, causando-lhe constrangimento e violando a sua liberdade sexual.

De janeiro a julho de 2023, o Ministério Público do Trabalho recebeu 831 denúncias de assédio sexual em todo o país. No mesmo período do ano anterior, foram 393 denúncias. Isso indica um crescimento nas denúncias, porém inúmeros casos não chegam a ser notificados.

O processo

O processo civil iniciado pela defesa de Letícia foi de compensação por danos morais, solicitando uma indenização a ser paga pela empresa pelo vazamento dos dados. A ação recebeu decisão favorável de todas as instâncias em que foi julgado após a Microcamp recorrer das decisões.

A sentença final, proferida pela Ministra Nancy Andrighi, do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), em 28 de junho de 2022, é favorável à Letícia e determina o pagamento de indenização de R$ 10 mil pela empresa, além dos honorários advocatícios da defesa.

Hoje, já com 34 anos, Letícia ainda aguarda o pagamento de sua indenização. Toda essa demora sinaliza, para a vítima, o descaso da empresa. “Eu senti como se esse caso não tivesse importância. Mas é muito grave, o cara poderia ter ido na minha casa, poderia ter acontecido algo pior”, aponta.

Além disso, acredita que sua atitude também tem um objetivo maior.

Hoje estou indo atrás não só por mim, mas por todo mundo que passa por isso. Algumas mulheres não têm coragem de falar, de ir com a boca no trombone como eu tive.

Posicionamento da empresa

Em resposta a um pedido de posicionamento quanto ao caso, a Microcamp apontou por email ao Nós, mulheres da periferia que “de acordo com o departamento jurídico da empresa, o funcionário foi demitido à época do acontecimento, uma vez que a empresa não aceita, de forma alguma, este tipo de comportamento”.

Em relação à demora no pagamento da indenização, disse: “foi proposto um acordo de parcelamento do valor da ação, frente às dificuldades financeiras que a empresa vinha passando por conta da pandemia, período em que teve que fechar suas escolas”. E informou que a empresa se mantém aberta a negociações.

Como se proteger de vazamento de dados?

Em casos como o de Letícia, é mais difícil se proteger de ter seus dados pessoais vazados a terceiros, pois conta com o fator humano nessa transação. Mas a internet é o principal meio em que isso ocorre e, para se proteger nesse ambiente, siga algumas dicas baseadas em conteúdos produzidos por Google e Serasa e por especialistas ouvidos por G1, Folha de S. Paulo e Exame:

Senhas fortes e únicas: use senhas complexas e diferentes para cada. As senhas devem ter pelo menos doze caracteres e conter uma combinação de letras maiúsculas e minúsculas, números e símbolos;

Autenticação de dois fatores: ela adiciona uma camada extra de segurança ao exigir que você insira um código de verificação enviado ao seu telefone ou dispositivo de segurança físico;

Controle de privacidade online: gerencie cuidadosamente as configurações de privacidade em redes sociais e aplicativos. Limite a visibilidade de suas informações pessoais;

Atenção a emails suspeitos e links: evite clicar em links ou baixar anexos de emails desconhecidos. Verifique a autenticidade de remetentes antes de fornecer informações;

Proteja dispositivos e redes wifi: configure senhas ou biometria em dispositivos móveis. Evite transações sensíveis em redes wifi públicas;

Monitore suas atividades financeiras: analise regularmente extratos bancários e de cartão de crédito. Relate atividades suspeitas imediatamente;

Desconfie de solicitações de informações pessoais: desconfie de mensagens que solicitam informações pessoais. Verifique a legitimidade de mensagens suspeitas entrando em contato diretamente com a empresa.

Caso suspeite que seus dados pessoais tenham sido vazados, confirme por meio de fontes confiáveis. Siga essas dicas, também baseadas em conteúdos produzidos por Google e Serasa e por especialistas ouvidos por G1, Folha de S. Paulo e Exame:

Mude imediatamente suas senhas;

Caso envolva informações financeiras, informe seus bancos;

Fique atento a atividades incomuns em suas contas online e financeiras;

Entre em contato com as empresas envolvidas no vazamento, como provedores de serviços online, para relatar o incidente;

Reporte o vazamento à Autoridade de Proteção de Dados (ANPD) e agências regulatórias, se necessário;

Em casos graves, consulte um advogado especializado em proteção de dados pessoais e segurança cibernética para orientação jurídica;

Avalie os danos causados pelo vazamento, incluindo potencial perda financeira ou dano à reputação. Se você sofreu prejuízos, pode considerar buscar compensação legal.