As histórias de um lar para idosos sob o olhar de dona Silvia Maria, minha mãe

No início dos anos 2000, minha mãe trabalhou por alguns anos na limpeza de uma “casa de repouso” para idosos ricos. Neste artigo, contamos algumas histórias que fazem refletir sobre classe social e velhice

24|05|2023

- Alterado em 16|06|2023

Por Amanda Stabile

Era uma tarde de 2003 e dona Silvia Maria, minha mãe, aos 28 anos, caminhava por Guararema (SP) segurando as mãos de duas crianças pequenas e equilibrando uma pasta de currículos embaixo do braço. Nesse dia, eu e minha irmã, com cinco e seis anos, a acompanhávamos na saga por um novo emprego.

“Me falaram que lá na “casa de repouso” para idosos pegava pessoas para trabalhar e eu fui e entreguei o currículo”, lembra. “No mesmo dia, a menina perguntou se eu podia fazer a entrevista, se estava com pressa. Eu estava com tempo e vocês fizeram uma participação especial”, ri.

A oferta era imperdível: R$430 reais por mês para limpar uma instituição – Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI), como é chamado ultimamente – onde cada velhinho pagava uma mensalidade que ultrapassava os R$5 mil. Considerando que o salário mínimo na época era R$ 240, e o emprego era com carteira assinada, até que valia a pena.

Na verdade, fazer a limpeza era o trabalho original mas, quando precisava, ela também lavava e passava as roupas dos idosos ou dava uma mãozinha na cozinha. “Eram 14 quartos e 14 banheiros para limpar e um corredor grande, tipo um hospital. Alguns quartos tinham uma salinha, mas os outros eram mais simples”, recorda.

A rotina dos moradores era a seguinte: até às 8h, todos tinham que tomar banho porque era a hora que o médico passava para ver se estava todo mundo bem. Tudo era feito com o auxílio das cuidadoras: duas ou três por ala, sem contar aquelas particulares, contratadas pelas famílias. 

Todos os residentes eram ou brancos ou asiáticos – zero surpresa. Se hoje, 50% das pessoas negras com 50 anos ou mais consideram difícil ou muito difícil pagar as contas com sua renda mensal, quem sabe como era o cenário há 20 anos atrás.

Enquanto os idosos cumpriam a rotina da manhã, o pessoal da limpeza passava, trocando toda a roupa de cama e levando para lavar. Então era a hora do cafezinho e cada um partia para a sua rotina, que incluía banho de sol, passeios pela instituição, ginástica, leitura e até missa. “Você se lembra? Tinha até uma capelinha lá dentro”, me perguntou a dona Silvia. 

Às vezes tinha visitação de escolas e apresentações de música ao vivo. E os jogos, como cartas e dominó, eram rotineiros, para estimular a memória dos idosos. “Nisso, o dia ia passando, os idosos almoçavam e iam dormir um pouco. Quando chegava a hora do café da tarde, as cuidadoras acordavam eles. Mais uma voltinha e a janta era às seis da tarde, cedo para eles fazerem uma boa digestão”, conta.

“Era como se nós fossemos a família deles”

Passar a velhice em um lugar tão limpo, organizado e bem assistido pode até parecer um sonho, mas isso não era consenso entre os moradores. Especialmente porque a entrada deles na instituição era traumática, enganados por aqueles que queriam um repouso do cuidado daqueles que talvez julgassem já terem vivido tempo demais.

Os familiares falavam que estavam levando eles apenas para conhecer o lugar: ‘vai ali dar uma voltinha com fulano’. Aí os parentes iam embora e as pessoas ficavam desesperadas. Para mim, era a parte mais triste.

Uma das histórias que mais marcou minha mãe foi a da dona Marta*, que chorava muito de saudades do cachorrinho, que ficara preso longe dela no mundo “lá fora”. Em uma das conversas, ela disse: “a maior tristeza que eu tenho é saber que os meus filhos estão usando o meu dinheiro para me afastar deles e me manter presa nesse lugar. Eu tenho saudade da minha casa, das minhas coisas, do meu bichinho”.

Como a jornalista Eliane Brum descreveu em sua reportagem “A Casa de Velhos”, publicada na Revista Época em 2001, é de perdas que se constitui a velhice rica.

Tudo escapa das mãos, principalmente poder e escolha, do cardápio ao lugar em que estão. Impotentes para eleger com quem dividir dilemas e convívio. Humilhados na dependência de estranhos até para tomar banho.

Nesse lar, visitas de parentes eram coisa rara, aconteciam mais na semana de datas especiais como o Dia das Mães, dos Pais e o Natal. De resto, as famílias apenas administravam os pagamentos à distância. Porém, como dentro da rotina também eram administradas medicações para os moradores, a maioria perdia a noção do tempo, então não lembravam quando havia sido a última vez. Talvez a lucidez não fosse mesmo uma bênção para eles.

“Eles se apegavam muito na gente. Quando alguém faltava, eles ficavam procurando. Aí, no outro dia, diziam: ‘nossa, você não veio ontem, não tá doente, né?’”, lembra minha mãe. “Eles eram muito carinhosos. Era como se nós fossemos a família deles”.

Memórias da “vida passada”

Geralmente, no lugar dos acontecimentos recentes, o que ocupava a cabeça das senhoras e dos senhores eram as memórias de uma vida que continuava sem eles. Do outro lado daquele portão, que eles não tinham a chave, permissão para atravessar ou quem quisesse recebê-los de volta.

Seu José*, que havia sido um grande bancário, estava sempre atrasado para um compromisso. As meninas da limpeza precisavam dobrá-lo com carinho e gentileza para conseguir higienizar seu quarto. A chave ele sempre carregava no bolso da calça depois que trancava a porta do quarto em que guardava toda a bagagem que lhe sobrara de suas longas décadas de vida.

“Ele era bem bravo, sabe? Devia ter sido um chefe desse jeito”, analisa dona Silvia. “Seu José, me empresta a chave rapidinho?”, dizia. “Mas é rápido mesmo, né? Porque eu tenho que sair. Eu tenho compromisso, uma reunião”, respondia o senhor.

Da minha infância, dona Marina* é a velhinha que eu melhor guardo a fisionomia. Era linda. Vaidosa, no início dos anos 2000 já tinha o rosto preenchido por uma maquiagem definitiva há muitos anos. Sombra, batom e sobrancelha sempre feita. “E ela gostava muito de elogios. Eu falava: ‘nossa, dona Marina, a senhora tá tão linda hoje’. E ela ficava toda envaidecida”, comenta minha mãe.

“Se eu não me engano, ela era professora”, conta. E uma professora daquelas que nunca guardavam o nome dos alunos. Nos três anos em que conviveram, para dona Marina minha mãe nunca foi Silvia, mas Lúcia.

“Ela não podia me ver passar perto do quarto dela, que já chamava: ‘Lúcia, vem cá’”, ri. “Ela sempre me perguntava se tinha algum restaurante perto em que a comida era boa. Eu indicava: ‘ali na frente tem um restaurante bem legal e a comida é uma delícia’. E dava as direções para chegar ao refeitório”, lembra.

Alguns moradores ainda eram muito requisitados pelo mundo “lá fora”. Manuel* era um tenente condecorado do exército, ainda na ativa. Muito bravo, sério e fechado. “Para entrar no quarto dele tinha que ser uma cerimônia danada”, conta. Os que iam visitá-lo, já chegavam batendo continência. “O pessoal ia lá para pedir autorização e pegar assinatura dele para alguma coisa. Aos 90 e poucos anos, ele ainda estava completamente lúcido”.

Mas nem todos os idosos ricos tratavam bem os trabalhadores que se esforçavam para deixar suas velhices um pouco mais confortáveis. Elvira*, nas palavras de minha mãe, não era boazinha. Havia sido uma importante cozinheira, com programa na televisão e tudo, quase uma Ana Maria Braga.

“Toda hora ela chamava a gente. Falava assim: ‘você tem que vir aqui agora porque eu estou pagando’”, recorda. “Às vezes a gente não ia na hora não por descaso, mas porque se toda hora fossemos dar atenção para ela a gente não fazia o serviço, não fazia nada”, explica.

História de novela

Minha história favorita dos acontecimentos lá dentro é da cuidadora particular que se tornou herdeira. “Ela era minha amiga. Inclusive, foi ela que organizou o chá de bebê do seu irmão”, comenta minha mãe.

Ela cuidava de um antigo coronel do exército que era “osso duro de roer”, mas que gostava muito dela e era extremamente grato por seus cuidados. “Ele queria expressar de alguma forma esse carinho, porque pensava: ‘se eu morrer ela vai ficar desempregada e pobre’”, conta e ri.

O coronel então conversou com a família e com seu advogado, que disse que o único jeito de deixar algum dinheiro para ela era se casando. “Pois ele não casou? Ela ficou rica, menina, mexendo com euro e tudo. Uma vez entrei no banco e ela estava lá perguntando a cotação”, recorda dona Silvia.

Além de parte da herança, a antiga cuidadora ainda se tornou beneficiária da pensão por morte do militar. Se ela não se casar legalmente, vai receber o dinheiro até o final da vida.

Último endereço

Para a maioria dos que estavam no lar para idosos, a instituição seria o último endereço que teriam em vida. Mas a morte não deixava de assustar os idosos que ficavam. Afinal, aqueles eram os amigos, os inimigos e os amores com quem conviveram nos últimos anos. Como não vivenciar um luto?

Para isso, o lar tinha um protocolo. Mas nem na morte os familiares estavam presentes.

A direção entrava em contato com a família e contratava uma funerária. Os idosos saíam de lá carregados já dentro do caixão, sozinhos.

Suas mobílias, muitas vezes eram oferecidas como doação aos funcionários.

Inclusive, uma curiosidade é que a cama que eu dormi dos sete aos 20 anos foi uma dessas doações. Pertencia ao seu José, aquele senhor que achava sempre estar atrasado para uma reunião. Quando eu saí de casa, a herança ficou para o meu irmão que, após crescer demais, doou a cama para um amiguinho. E ela segue em pleno uso.

A instituição tinha todo um cuidado para os residentes não assistirem a cena. Eles eram levados para uma área reservada, longe do caminho da funerária, para não ficarem apreensivos. “Porque idoso também é curioso, né? Querem saber quem morreu, ficam tristes quando é um amigo, principalmente os que estão lúcidos”, explica minha mãe.

Ela conta que teve um senhor que, no dia em que morreu, pediu sua ajuda, o seu Vicente*. Após o almoço, ele lhe disse: “você me ajuda a ir até o meu quarto? Não tô muito legal, acho que comi alguma coisa que não fez bem”. “Eu levei ele e corri para o meu supervisor. Chamaram o médico, levaram ele pro hospital, mas não adiantou. Ele teve um infarto e faleceu”, lamenta.

Minha mãe acha uma ironia o seu Vicente ter um filho cardiologista e morrer do coração. Mas, enclausurado naquela parte do mundo, mesmo que bem acolhido, quem sabe quanto tempo fazia que sua família sequer ouvia uma única batida do seu peito de perto.


* O nome dos idosos foram trocados para preservar suas identidades e privacidade mesmo após tantos anos

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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