As eleições do diabo: quem perde com isso?

Se, ao invés de combatermos pilares nocivos de intolerância, passamos à discussão de quem está ou não ligado à maçonaria , é sinal que o diabo já venceu as eleições. 

24|10|2022

- Alterado em 17|05|2024

Por Victória Dandara

Neste segundo turno não há dúvidas de quem é o grande protagonista: o diabo. Num país onde temos 33 milhões de pessoas passando fome, com somente quatro em cada 10 famílias com acesso pleno à alimentação, desemprego em 9%, alta de 359% no desmatamento da Amazônia, chacinas em favelas que ceifaram ao menos duas mil vidas entre 2020-2022, 90% das travestis empurradas ao mercado sexual e com uma expectativa de vida de 35 anos.

Em meio a este cenário desastroso e infeliz, os temas de maior embate e discussão em redes sociais e nas campanhas eleitorais têm sido disputar qual dos candidatos é o maior cristão ou quem frequenta ou não seitas satânicas, dando-se um destaque excessivo à figura tão emblemática do diabo. 

Chega a ser ofensivo a todos aqueles com direitos violados no Brasil que a prioridade dos candidatos, em um Estado (destaque-se) laico, seja a religiosidade e o cristianismo, temas que deveriam estar adstritos à esfera privada de cada um. Evidente que as campanhas petistas tentam disputar o “valoroso” voto dos evangélicos, eleitorado fiel a Bolsonaro. Mas a questão que se coloca é: vale tudo em uma eleição? A defesa da democracia pode se dar às custas de valores democráticos essenciais, como a liberdade religiosa? Ora, se quando ouvimos Bolsonaro colocar “Deus acima de todos” e sua esposa afirmar que o Planalto era antes ocupado por “demônios” referindo-se nitidamente a religiões de matriz africana, e neste caso revidamos com “mas Lula também é cristão” ou ainda oferecemos uma “carta aos cristãos”, o quanto do discurso bolsonarista validamos e chancelamos? Não quero com essa crítica fragilizar nossa luta árdua por eleger Lula e tentar restaurar o mínimo de civilidade no Brasil. No entanto, não podemos fechar os olhos para as mãos que estão sendo soltas neste processo, lembrando que não só o fim importa, mas também seu meio de obtenção. O caminho trilhado se faz tão importante quanto a chegada em si.

Se no caminho fazemos vista grossa para a intolerância religiosa e permitimos barganhar com os direitos daqueles que por séculos lutaram para o reconhecimento e respeito de sua fé, é porque já perdemos enquanto nação.

Vale dizer que só em 2021 foram feitas 521 denúncias oficiais de violações à liberdade de crença no Brasil, representando mais que o dobro em relação ao ano anterior. Dados de 2019 apontam ainda que mais da metade dos casos se referia a intolerância contra religiões de matriz africana, enquadrando-se em hipótese de racismo religioso.

Não é difícil compreender como o discurso do presidente que sempre possui um pastor evangélico fundamentalista em seus comícios e cuja primeira dama prega uma “guerra santa” pela supremacia cristã, impacta tal cenário, incentivando e chancelando diretamente o ataque a terreiros de candomblé e umbanda e a violência contra os adeptos destas religiões.

E quando ao invés de combatermos esses pilares nocivos de intolerância e nos comprometermos a garantir a liberdade de culto a todos (inclusive a evangélicos), passamos à discussão de quem está ou não ligado a Baphomet, à maçonaria ou quaisquer outros grupos, é sinal que independentemente dos resultados do dia 30 de outubro, o diabo já venceu as eleições.


Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Victória Dandara Victória Dandara é travesti, cria da zona leste de São Paulo (SP), pesquisadora em direitos humanos, advogada transfeminista e filha de Oyá. Foi uma das primeiras travestis a se graduar em direito na USP e hoje luta não só pela inclusão da população trans e travesti, mas por uma emancipação coletiva a partir da periferia e da favela.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.