Foto mostra bola em campo de futebol e jogadores ao fundo

Além das quatro linhas: a conexão entre futebol e violência doméstica

Estudos indicam que emoções intensas em dias de jogo aumentam agressões, especialmente no ambiente doméstico e que o esporte também reforça padrões culturais de masculinidade que naturalizam comportamentos agressivos

Por Amanda Stabile

16|05|2025

Alterado em 16|05|2025

O futebol é o esporte mais popular e acompanhado no Brasil e, como muitas práticas culturais coletivas, também reflete tensões e desigualdades sociais. A violência que marca o cotidiano brasileiro — incluindo a que atingiu 21,4 milhões de mulheres no último ano — se manifesta tanto dentro quanto fora dos estádios, chegando também ao ambiente doméstico.

Uma pesquisa do Instituto Avon, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revelou um dado preocupante: em dias de jogos do Campeonato Brasileiro, as ameaças contra mulheres aumentam 23,7%. Quando o time da cidade joga em casa, os casos de agressão física registram um salto de 25,9%.

O levantamento analisou dados entre 2015 e 2018 em cinco capitais: Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Belo Horizonte e Porto Alegre. Também foi observado que a violência aumentava principalmente quando o agressor era companheiro ou ex-companheiro da vítima.

Na Inglaterra, levantamento semelhante indicou que, durante Copas do Mundo, os casos de violência doméstica no condado de Lancashire aumentaram 26% nos dias em que a seleção inglesa venceu ou empatou, e 38% nos dias de derrota. A organização Women’s Aid explicou que o futebol, por si só, não gera a violência, mas que

altos níveis de emoção e consumo de álcool em dias de jogo podem agravar situações de violência já existentes.

Por que isso acontece?

Bernardo Ostrovski, em sua dissertação “Não é só um jogo: futebol como canal para a violência, analisou o impacto de derrotas inesperadas de times locais sobre o comportamento coletivo. Segundo ele, “esses choques, apesar de rápidos, podem alterar o comportamento das pessoas e levar a decisões violentas”.

O estudo mostra que, para cada 1% da população afetada emocionalmente por uma derrota, há um aumento de 0,08% nas mortes violentas. Embora esse número pareça pequeno, ele é significativo na prática. Por exemplo, segundo a média da pesquisa:

Numa cidade de 1 milhão de habitantes, se 1% da população for afetada por uma derrota inesperada do time local, isso pode resultar em quase uma morte violenta a mais.

Além disso, os efeitos variam conforme o tipo de vítima. Homens têm mais risco de morrer em agressões que acontecem na rua, enquanto as mulheres enfrentam maior perigo em casa, em casos de violência doméstica. Ainda segundo Ostrovski, “o impacto de uma derrota é maior do que o de uma vitória inesperada”.

Pesquisas na área da sociologia do esporte oferecem caminhos para entender a relação entre práticas esportivas, emoções e comportamentos violentos. No artigo “Esporte, Relações Sociais e Violências”, Fernando Starepravo e Fernando Mezzadri afirmam que os esportes modernos fazem parte de um processo histórico em que “a violência foi sendo canalizada para espaços regulados, como o esporte, onde as regras controlam os atos agressivos”.

Os autores destacam que, mesmo em esportes com contato físico intenso, como o boxe, “as ações mais violentas são punidas pelas regras, demonstrando que há um controle institucional sobre os limites da violência”. Com base na teoria do sociólogo Norbert Elias, explicam que o esporte ocupa um lugar importante na sociedade porque ajuda a regular impulsos que, em outros contextos, poderiam se manifestar de forma perigosa.

Isso acontece porque, nas palavras dos autores, “os padrões sociais vigentes e o monopólio do Estado sobre o uso da força não comportam ações diretamente violentas no cotidiano”, o que faz com que essas tensões sejam muitas vezes deslocadas para práticas como o esporte.

Essas constatações também lançam dúvidas sobre a ideia popular de que “o futebol é o ópio do povo”, expressão usada com frequência para sugerir que o esporte serve apenas para distrair e alienar. A metáfora, que associa o futebol a uma substância que entorpece e acalma, não contempla toda a complexidade emocional e social envolvida nas práticas esportivas.

Como os dados indicam, em vez de apenas relaxar ou distrair, o futebol pode intensificar emoções e, em determinados contextos, servir como gatilho para comportamentos violentos — especialmente contra mulheres. Isso sugere que os efeitos do futebol na vida cotidiana são mais diversos e profundos do que a metáfora do “ópio” costuma dar a entender.

Futebol, violência simbólica e dominação masculina

Além da violência física, os autores discutem a chamada violência simbólica, que “pode ser verbal, comportamental ou expressa por discriminação racial, sexual ou religiosa”. Trata-se de formas de dominação mais sutis, mas que também geram sofrimento e exclusão.

O estudo mostra que, em contextos altamente competitivos como o esporte, “a rivalidade e a agressividade aumentam, mas são mediadas por regras e limites definidos pela sociedade”. Mesmo assim, os autores alertam que:

A violência continua presente, ainda que transformada e deslocada para espaços considerados aceitáveis.

Essas análises ajudam a compreender por que momentos de alta carga emocional, como partidas decisivas ou derrotas inesperadas, podem acionar comportamentos violentos fora do campo — especialmente em ambientes domésticos, onde há desigualdade de poder entre homens e mulheres.

Ainda, de acordo com o artigo “A violência simbólica e a dominação masculina no campo esportivo”, de Leila Salvini, Juliano de Souza e Wanderley Marchi Júnior, a dominação masculina no futebol não fica só dentro do campo, mas está presente em toda a sociedade, reforçando desigualdades entre homens e mulheres e até ajudando a normalizar a violência.

Segundo os pesquisadores, o futebol é um lugar onde a ideia do que é ser homem — marcada pela agressividade e força — é constantemente reforçada.

O esporte tende a representar uma importante fonte de experiência da validação da masculinidade, sendo percebido como uma barreira contra a feminilização e a emasculação.

Essa cultura, segundo Pierre Bourdieu, também fortalece a violência simbólica — uma violência silenciosa que torna atitudes agressivas naturais. Esse modo de pensar cria barreiras para as mulheres dentro e fora dos estádios. Isso sugere que a exclusão das mulheres do futebol pode estar ligada a padrões culturais que também influenciam a dinâmica da violência de gênero na sociedade.