Agosto Lilás: nenhuma mulher deveria precisar ser super heroína

Em memória os 17 anos da Lei Maria da Penha, a colunista Vitória Dandara conta a história da mãe, uma sobrevivente da violência doméstica.

16|08|2023

- Alterado em 17|05|2024

Por Victória Dandara

Adentramos o mês de agosto, marcado pela celebração dos 17 anos da Lei 11.340/2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha. Neste período, a luta contra a persistente violência doméstica, que afeta inúmeras mulheres brasileiras, especialmente aquelas de origens negras e das periferias, ganha destaque. Nesta coluna, eu poderia explorar dados estatísticos, como os alarmantes números de 2022, onde 495 mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil, ou ainda enfatizar que, a cada quatro horas, uma mulher é alvo de agressão em nosso país. Contudo, reservamos este espaço para reverberar minha voz por meio desta coluna, rendendo tributo à minha mãe, Dona Micheli, uma sobrevivente da violência doméstica.

Enquanto eu e meus irmãos crescíamos na zona leste de São Paulo (SP), nossa mãe era figura central de nossa existência. As histórias entoadas antes de dormir, seus esforços incansáveis para garantir nossa subsistência, e as brincadeiras que amenizavam uma realidade por vezes dura, mas sempre permeada de carinho, eram elementos que delineavam nossa rotina. Porém, era possível perceber seu jeito acuado e a tristeza em seu olhar quando ia caindo a tarde e se aproximava o horário da chegada de nosso pai em casa. É importante dizer como era difícil para mim presenciar a pessoa que eu mais amava no universo ser humilhada e maltratada diariamente. Com o tempo, descobrimos que ela suportou uma década em um relacionamento no qual era privada de cuidados básicos, como fazer das unhas, adquirir roupas pessoais e, em algumas ocasiões, até mesmo de itens essenciais como absorventes. A despeito de sua formação como professora, ela foi impedida de trabalhar pelo agressor, que ao mesmo tempo em que pretendia exercer o papel de “provedor”, por muitas vezes nos deixou sem recursos para o mínimo por conta de vícios com que sofria.

Vivemos em carência extrema, pois, embora se intitulasse provedor, seus vícios frequentemente nos deixavam em penúria.

Contudo, esta narrativa não versa sobre uma vítima, mas sim sobre uma heroína que, frente às adversidades e a uma década de diminuição e abuso, encontrou forças internas para romper o ciclo de opressão e recomeçar do zero. Desprovida de herança e moradia própria, responsável pela criação de três crianças pequenas e com recursos limitados, Dona Micheli retomou sua trajetória. Durante todo esse processo, ela nunca nos abandonou. Em todo esse processo ela nunca nos abandonou. As histórias para dormir continuavam sendo contadas todas as noites, seguíamos recebendo muito a partir de tão pouco, e as brincadeiras ainda enfeitavam nosso dia a dia. Ela nunca se mostrou cansada demais para olhar nossas lições de casa e cadernos escolares. Nem esteve sem tempo para nos ouvir. Praticamente sozinha e contra todos que duvidavam de sua capacidade e a tentavam fazer desistir, minha mãe conseguiu colocar os três filhos na faculdade, ganhar um prêmio de empreendedorismo e se tornar vice-diretora escolar.

Neste Agosto Lilás, que assinala 17 anos da Lei Maria da Penha, em meio à persistência das agressões e violências de gênero, homenageio todas as mulheres que, como minha mãe, sobreviveram e reconstruíram suas vidas, desafiando normas sociais e estereótipos. Minhas orações e energias também se dirigem às que ainda não encontraram a força dentro de si para romper este ciclo de opressão. Como sociedade, devemos estender nossa mão solidária, ser um espelho que reflete a potência em cada uma delas. Por fim, é crucial que o Estado desenvolva políticas públicas abrangentes, de modo a assegurar que futuras Micheli’s não enfrentem jornadas múltiplas para sobreviver e ter acesso ao mínimo de dignidade mínima.

Nenhuma mulher deveria precisar ser heroína.

Victória Dandara Victória Dandara é travesti, cria da zona leste de São Paulo (SP), pesquisadora em direitos humanos, advogada transfeminista e filha de Oyá. Foi uma das primeiras travestis a se graduar em direito na USP e hoje luta não só pela inclusão da população trans e travesti, mas por uma emancipação coletiva a partir da periferia e da favela.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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