
Adultização na internet: ‘criança tem direito à intimidade e à privacidade’
Sheylli Caleffi, ativista na defesa de crianças em ambientes digitais, fala sobre o contexto da adultização e da erotização de crianças na internet
Por Beatriz de Oliveira
21|08|2025
Alterado em 21|08|2025
Enquanto você rola pelo feed das suas redes sociais é comum aparecerem fotos e vídeos de crianças? Por mais que pareçam fofos e inocentes, conteúdos desse tipo podem estar ligados à adultização e exploração sexual de crianças na internet. Para a educadora Sheylli Caleffi, é necessário que os adultos avaliem com cuidado antes de postar a imagem de uma criança e entendam que elas têm direito à privacidade.
O assunto da adultização ganhou destaque recentemente com o vídeo do influenciador Felca. Com a grande repercussão – o vídeo está com mais de 47 milhões de visualizações -, o tema movimentou o Congresso Nacional. Apenas no dia 13 de agosto, deputados apresentaram 32 projetos tratando do assunto. Além disso, o influenciador Hytalo Santos, denunciado no vídeo de Felca, foi preso preventivamente em 15 de agosto, por exploração e exposição de menores de idade em conteúdos para as redes sociais.
Sheylli, que também é ativista na defesa de crianças em ambientes digitais, argumenta que “existe a erotização, que faz parte da adultização; o que vimos no vídeo do Felca é essa erotização, que é colocar a criança num contexto de sexualização e de sensualidade que não pertence à fase de desenvolvimento dela”.
Em entrevista ao Nós, mulheres da periferia, Sheylli Caleffi fala sobre o contexto da adultização de crianças e sua exposição na internet, responsabilização das redes sociais e cuidados que podemos tomar enquanto sociedade.
Confira a entrevista completa!
Nós, mulheres da periferia: Qual o contexto atual da adultização de crianças e da exposição na internet? Como avalia a gravidade desse problema?
Sheylli Caleffi: É importante percebermos que a adultização de crianças sempre aconteceu. Crianças sempre foram colocadas para trabalhar, e foi preciso a criação de uma lei contra o trabalho infantil para que as pessoas parassem de fazer isso, mas ainda existem crianças nesse contexto.
Existe ainda a erotização, que faz parte da adultização ao colocar a criança num contexto de sexualização e de sensualidade, que não pertence à fase de desenvolvimento dela. Foi o que vimos no vídeo do influenciador Felca.
Hoje, na internet, isso está descontrolado. Aumentou muito a violência sexual contra crianças e adolescentes e a exposição delas. Antes, um predador sexual atacava uma criança por vez. Com a internet, há casos de prisão de pessoas que estavam conversando com 50, 200 ou 300 crianças ao mesmo tempo, fazendo o que chamamos de processo de aliciamento, que é essa conquista da criança. Muitas vezes, os criminosos fazem um perfil como se fossem crianças, usando fotos que os próprios pais e cuidadores postam, para se aproximar de crianças que usam redes sociais sem supervisão.
Nós: Qual a responsabilização das redes sociais e seus algoritmos na disseminação de conteúdos que erotizam crianças?
Sheylli Caleffi: Eu já encontrei perfis de crianças de quatro anos de idade no Instagram, cuja recomendação é acima dos 16. Há a opção de denunciar o perfil, numa alternativa que diz ‘a pessoa parece ter menos de 13 anos’, mas depois disso o aplicativo direciona para um formulário, em que é necessário colocar a data de nascimento real da criança. Eu não tenho como informar isso porque não sei a idade exata da criança, apesar de ser óbvio que ela tem menos de 13 anos.
Não importa que esteja escrito ‘perfil monitorado pela mãe ou pelo pai’, para os criminosos e para a segurança da criança isso não faz diferença nenhuma. Isso é exploração da imagem da criança.
A rede social até finge que não permite, mas na verdade permite. Para uma criança criar uma conta na rede social é só mentir a idade, porque é autodeclaratório. Sendo que, há tecnologia para identificar a idade real da pessoa. Essa é uma das coisas que nós, defensores da infância, estamos tentando colocar como regra. Existe o Projeto de Lei 2628/22, que dispõe sobre a proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais. Mas, as bigtechs fazem uma pressão muito grande porque não querem se comprometer em cuidar de ninguém.
Eu gosto de dar o exemplo da propaganda direcionada para crianças. Desde 1990, é proibido no Brasil fazer propaganda na televisão com crianças usando um produto infantil ou com um produto associado a um brinquedo. Isso foi uma conquista muito grande. Só que, na internet, isso acontece; por isso queremos essencialmente que as leis que valem para todos os outros veículos, comecem a valer na internet também.
Nós: De que maneiras mães, pais e responsáveis podem evitar a adultização e a exposição de crianças na internet?
Sheylli Caleffi: Uma coisa que podemos fazer enquanto adultos é lembrar que não somos donos da criança. A criança tem direito à intimidade e à privacidade. Se, quando colocamos nossa cara nas redes já estamos nos colocando em risco, será que podemos tomar essa decisão por uma pessoa vulnerável que ainda é pequena e não sabe os perigos que tem ali?
Outra coisa, é parar de curtir, comentar e compartilhar quando aparece imagens de criança. Eu tenho uma regra: me pergunto “eu consigo ter certeza que essa criança que está no vídeo ou na foto está viva e em segurança?”. Se eu não consigo ter essa certeza, não interajo na publicação. Muitas crianças estão sendo exploradas e nós não sabemos. Temos que perceber que estamos adultizando a criança quando curtimos uma publicação e não desconfiamos daquilo. Temos que estar atentos.
Nós: De que formas a sociedade e o poder público podem colaborar para a erradicação da violência sexual e online e da ampla adultização de crianças na internet?
Sheylli Caleffi: A sociedade e o governo precisam mudar muito, nós sexualizamos as crianças desde pequenas. Não vamos conseguir erradicar a violência sexual se naturalizarmos comportamentos assim dentro da nossa própria casa. Por exemplo, se for trocar a roupa da criança, diz: “licença filha, a mãe vai trocar você”. Se você sempre tratar o corpo dela com educação, quando alguém não fizer isso ela vai estranhar.
Precisamos defender também a educação sexual nas escolas, porque é geralmente nesse ambiente que a criança que está sendo abusada em casa entende que está sofrendo um abuso. Se a maioria das crianças são abusadas dentro de casa, elas precisam que isso seja informado a elas na escola para ter para onde recorrer.