Abolição inconclusa: ‘Ainda não alcançamos liberdade e cidadania’
Neste 13 de maio, o Brasil relembra os 133 anos da Lei Áurea, que garantiu o "fim" da escravidão. Em entrevista, a advogada Sheila de Carvalho explica por que a abolição é inconclusa e o racismo estrutural de nossa sociedade. Confira!
Por Jéssica Moreira
13|05|2021
Alterado em 13|05|2021
“Quando falamos que a abolição é um processo de abolição inconclusa estamos dizendo que tivemos o processo formal, mas não foi pensada nenhuma política de concessão de cidadania de fato para a população negra.”
A fala é da advogada e integrante da Coalizão Negra por Direitos Sheila de Carvalho. Coordenadora do Núcleo de Violência Institucional da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, Sheila tem levado a discussão sobre racismo estrutural brasileiro para diversas esferas internacionais.
“Por décadas e décadas, mais de um século, passamos sem nenhum tipo de política focada na redução do racismo e da desigualdade em relação às pessoas negras no Brasil”, afirma a ativista, que hoje é também conselheira da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e fellow do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas).
Com o lema “Nem bala, nem fome, nem Covid. O povo negro quer viver!”, a Coalizão Negra por Direitos, que Sheila integra, realiza nesta quinta-feira (13), o “13 de maio de Lutas”. A mobilização nacional pede o fim do racismo, do genocídio negro, das chacinas e a construção de mecanismos de controle social da atividade policial.
Os atos foram escolhidos para 13 de maio em alusão ao marco do fim da escravidão no Brasil e a necessidade de debater o assunto sob a ótica da população negra. Mais de 130 depois de 1888, as gerações atuais ainda sofrem com algumas consequências, como a situação de genocídio e a morte de pessoas pretas por uma doença em que já há vacina, a Covid-19.
Com os atos, o movimento reforça seu pedido de respostas às autoridades e reivindica o auxílio emergencial de R$ 600 até o fim da pandemia, o direito da população negra à vacina contra o coronavírus pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e o fim do governo Bolsonaro. Segundo o Instituto Pólis, em 2020, eram 250 óbitos de homens pretos pela doença a cada 100 mil habitantes.
Mais de 30 atos já foram confirmados em todas as regiões do Brasil e duas mobilizações internacionais nos Estados Unidos e Inglaterra, todas realizadas por organizações que compõem a coalizão. Estados como Acre, Bahia, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e Distrito Federal estão entre os confirmados. É possível acessar o site e acompanhar a atualização da programação que terá concentrações das 7h, no Acre, até às 18h no Pará e Mato Grosso, nos horários locais. Confira abaixo a entrevista com Sheila de Carvalho na íntegra.
Nós, mulheres da periferia: por que o movimento negro fala em abolição inconclusa quando falamos sobre a Lei Áurea?
Sheila de Carvalho: O dia 14 de maio, um dia depois da abolição, nunca começou de fato. Quando falamos que é um processo de abolição inconclusa estamos dizendo que tivemos o processo de abolição formal –o Brasil foi o último país das Américas a abolir formalmente a escravidão–, mas não foi pensada nenhuma política de concessão de cidadania de fato para a população negra. Por décadas e décadas, mais de um século, passamos sem nenhum tipo de política focada na redução do racismo e da desigualdade em relação às pessoas negras no Brasil. Muito pelo contrário, foram criados outros aparatos legais de controle e manutenção da liberdade dos corpos negros. A gente não teve políticas de inclusão, mas tivemos um novo código criminal logo depois da abolição formal da escravatura, que transformou em crimes a vadiagem. Ou seja, para onde ia uma pessoa que não queria estar mais submetida ao espaço de escravidão? Ia para a rua. Vadiagem virou crime, capoeira virou crime, expressão de religião de matriz africana virou crime.
“Enquanto sociedade, a gente nunca conseguiu, de fato, alcançar a liberdade e cidadania à população negra.”
Ou seja, foram criando-se mecanismos e sofisticando esses mecanismos no curso da história para a manutenção da privação de liberdade dos corpos negros. Não é à toa que hoje a gente tem uma taxa de encarceramento em massa absurda, do qual a maioria é a população negra. E não é à toa também que a gente vive esse cenário que possibilita que corpos negros sejam mortos sem nenhuma justificativa, sem nenhuma ponderação em relação a isso. As medidas de combate e tentativas de reverter o racismo e a desigualdade no Brasil só começaram a ser desenvolvidas de fato na década de 1990. Passamos quase um século sem que essas políticas tivessem sido criadas. Isso tem um impacto muito grande na nossa sociedade como um todo. Por isso que dizemos que vivemos um processo de abolição inconclusa. Ainda vivemos um meio termo. Enquanto sociedade, a gente nunca conseguiu, de fato, alcançar a liberdade e cidadania à população negra.
Nós: a Coalizão vem enfatizando a palavra genocídio. Por que é importante falarmos em genocídio da população negra, seja em nossos discursos, conteúdos midiáticos, entre outros?
Sheila de Carvalho: primeiro porque é o termo certo. Acho que tentam, muitas vezes, negar o que a gente está vivendo. A gente vive um processo histórico e contínuo de genocídio. O que é genocídio? O ato deliberado de tentar eliminar parte de um povo, parte de um grupo étnico. E vivemos esse processo de genocídio desde que o Brasil é Brasil. Ele vai se agravando, vai se sofisticando e criando formas diferentes de se fortalecer e de ser continuado, mas tem o propósito de eliminar o que as elites brasileiras imaginam que sejam vidas indesejáveis. Mas não todas. É em partes, porque ainda querem manter uma parte dessas vidas indesejáveis numa situação de subalternidade, de servidão. O processo de genocídio é isso. Não só tirar a vida, mas tirar qualquer tipo de exercício da cidadania.
“A gente vive um processo histórico e contínuo de genocídio. Vivemos esse processo de genocídio desde que o Brasil é Brasil.”
Por isso, que a gente denuncia o genocídio. Continuamos denunciando o genocídio e vamos continuar, até a gente entender que aquilo que passamos não é um processo natural, não é apenas um processo de desigualdade ou mera injustiça, mas um processo sistêmico, de uma política de morte com alvos muito bem delimitados, histórica, contínua e sem perspectiva de reversão enquanto a gente não assume isso enquanto problema.
Foto tirada durante o ato “Vidas Negras Importam” em junho de 2020.
©Semayat Oliveira
NMP: Como você avalia a aplicabilidade da Constituição Cidadã para a população negra? Quais foram os avanços e retrocessos dos últimos anos?
Sheila de Carvalho: a gente vive um momento muito grave hoje de desmonte de políticas sociais e de direitos humanos. Isso impacta de forma muito mais agressiva a população negra. Se teve um momento que, a partir da luta do movimento negro e nossos mais velhos, conseguimos atingir políticas que, de fato, fossem possíveis em um cenário de reverter a desigualdade e as consequências do racismo estrutural de nossa sociedade, a gente vive hoje um momento de desmonte dessas políticas. As políticas de ações afirmativas foram muito importantes, tiveram seus impactos. O investimento em políticas sociais para aumentar o consumo, para reduzir a fome e mortalidade para instituir o Sistema Único de Saúde (SUS) foram muito importantes para sobrevivência da população negra, mas a gente assiste hoje uma situação de desmonte.
“Vivemos um momento muito grave de desmonte de políticas sociais e de direitos humanos. Isso impacta de forma muito mais agressiva a população negra”.
Se a gente for pensar os últimos dez anos apenas, a gente foi de país que era premiado pela terceira vez consecutiva enquanto referência de enfrentamento à fome (com índice de pobreza extrema em 3%), para um país dez anos depois onde o índice de pobreza extrema chega a 12,8%. A gente sabe que a maior parte é da população negra. Dois terços do Brasil hoje vive insegurança alimentar, de não saber quando vai ser o próximo alimento. Falamos sobre a fome, que é o mais básico de todas as lutas que deveríamos enfrentar. Imagina as outras agendas? O que será depois da pandemia também? O que será do acesso à educação? À saúde e ao trabalho digno? Tudo aquilo que é referente à cidadania, que está protegido e garantido pela Constituição Federal de 1988. Mas que nunca atingiu em sua plenitude a população negra desse país.
NMP: Vocês chamaram atos neste 13 de maio. Esses atos se encerram neste dia ou, então, quais são os próximos passos de luta do movimento negro no Brasil neste momento?
Sheila de Carvalho: A gente não quer sair nas ruas, mas como eu vi em um cartaz no protesto passado em relação às mortes da Chacina do Jacarezinho (RJ), a gente está saindo às ruas porque eles foram para nossa casa nos matar. Diante de tudo que a gente está vivendo, de uma pandemia que está sendo extremamente mortal e letal, de um retrocesso em todas as agendas sociais possíveis, a gente ainda está sendo morto pela violência estatal que nunca cessou em relação aos corpos negros. Acho que as pessoas estão nessa situação de basta, nessa situação de manifestar e dizer ‘eu quero viver’. Por isso que a Coalizão Negra por Direitos está puxando as manifestações de 13 de Maio. São manifestações em todos os 27 estados do Brasil. Algo gigante, amplo, para ir, mesmo com todo cuidado necessário. Se puder ir, vai, mas se não puder ir fortalece a ação nas mídias, no digital, no virtual, e isso pode reverberar em outras ações também. Chega. É a hora da gente dar o nosso basta. A gente vê que essas lutas estão eclodindo em outros lugares do mundo, que também estão eclodindo em um cenário de pandemia. Chegamos em uma situação absurdamente insustentável. Precisamos resistir da forma que conseguimos resistir. Eles vão ter que nos ouvir.
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