‘A periferia é nossa Faixa de Gaza’, diz jornalista sobre Palestina
Desde o dia 10 de maio, palestinos sofrem com os ataques de Israel à Faixa de Gaza. Para entender como o conflito se relaciona com a violência estatal brasileira, conversamos com a jornalista e pesquisadora Sâmia Teixeira. Confira!
Por Jéssica Moreira
24|05|2021
Alterado em 24|05|2021
“O que você espera que eu faça? Conserte isso? Eu tenho apenas 10 anos. Eu sou apenas uma criança”. O vídeo de uma garota palestina em frente aos escombros de um prédio bombardeado rodou o mundo nos últimos dias. Nadine Abdel-Taif é uma das moradoras da Faixa de Gaza, região situada entre Palestina e Israel, que entre os dias 10 e 21 de maio viveu um verdadeiro massacre.
Estima-se que 232 palestinos tenham sido mortos. Desse total, ao menos 63 crianças eram crianças e 36 mulheres. Do lado israelense, 12 pessoas morreram. Os dados são da UNRWA (Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente).
“I don’t know what to do.”
A 10-year-old Palestinian girl breaks down while talking to MEE after Israeli air strikes destroyed her neighbour’s house, killing 8 children and 2 women#Gaza #Palestine #Israel pic.twitter.com/PWXsS032F5
— Middle East Eye (@MiddleEastEye) May 15, 2021
A região, que vive um conflito histórico, teve o confronto ampliado depois da Suprema Corte de Israel dar uma ordem de despejo a seis famílias palestinas que vivem em Jerusalém Oriental, no bairro de Sheikh Jarrah. O objetivo da desocupação é dar lugar a colonos judeus.
Antes mesmo do dia 10, a população contrária à expulsão dos palestinos já saía às ruas de bairros majoritariamente árabes de Jerusalém, sofrendo com a repressão da polícia de choque israelense.
Conflito Histórico
O conflito na região existe desde o século 19, quando o local era dominado pelo Império Otomano. Em 1876, judeus compraram fundos imobiliários em Sheikh Jarrah. Em 1948, aconteceu a Guerra Árabe-Israelense, quando parte da Jordânia passou a integrar Jerusalém Oriental, quando os refugiados palestinos do Estado de Israel ocuparam o local. Em 1967, o Estado de Israel ganhou a Guerra dos Seis Dias e também e colonos judeus passaram a reivindicar a posse do local, expulsando as famílias palestinas. O dia 15 de maio é o dia do Nakba, significa “a catástrofe” em português, sendo uma referência à criação do Estado de Israel e também à expulsão de palestinos de suas terras. Estima-se que mais de 750 mil palestinos foram expulsos, outros milhares mortos, cerca de 400 vilarejos queimados ou destruídos. Mais de 17 mil km² foram confiscados e 7 milhões de palestinos refugiados vivem espalhados pelo mundo.
Em 10 de maio, data que se celebra o Dia de Jerusalém em Israel, a polícia israelense agiu de forma completamente violenta, deixando mais de 300 palestinos feridos. O Hamas, organização palestina que está presente na Faixa de Gaza, reagiu lançando foguetes em Jerusalém. Desde então, os bombardeios não cessam, aumentando a cada dia o número de mortos.
Para entender o que está acontecendo na região palestina à luz da violência de Estado que também existe no Brasil, o Nós, mulheres da periferia conversou com a jornalista e pesquisadora no assunto, Sâmia Teixeira.
Quando a jornalista ainda estava na faculdade, sentiu necessidade de compreender o Holocausto de forma mais aprofundada. As pesquisas, no entanto, a levaram para outro tema, não tão discutido quanto o primeiro, mas tão importante quanto: o contexto no qual vivem os palestinos desde que foram expulsos pelas forças do movimento sionista colonizador judeu.
O interesse resultou no livro “A noiva é bela, mas está casada com outro”, de sua autoria e da colega de sala, a jornalista Maura Silva. Por meio do jornalismo literário, ambas se debruçaram nas histórias de oito mulheres palestinas que chegaram ao Brasil em 2007.
O livro faz uma rememoração do processo de limpeza étnica na Palestina, sendo o título uma referência a rabinos de Viena, na Áustria, que realizaram uma missão exploratória na Palestina para verificar a viabilidade da criação de um “lar nacional” judeu no território. Com a mensagem “a noiva é bela, mas está casada com outro”, os colonizadores informaram que aquelas terras já eram habitadas pela população árabe.
Nos textos, as mulheres contam suas experiências de refúgio e o desejo de retorno às suas vidas e lares. “É um livro sobre a humanidade dos palestinos e uma terra extinta e colonizada, e também sobre como não receberam apoio no Brasil”, diz Sâmia. “E também como muitos deles morreram ou foram viver nas ruas. Sobre os que voltaram para a Faixa de Gaza, por simplesmente não suportar mais passar fome no Brasil”.
Abaixo, Sâmia fala sobre a importância de discutirmos o tema, a difícil realidade que estão expostos os palestinos e as ligações com o Brasil. Confira abaixo!
Sâmia Teixeira, jornalista e e pesquisadora sobre a Palestina
©Arquivo pessoal
Nós, mulheres da periferia: Quais foram suas descobertas nesse processo? Há relações das periferias com a Palestina? Se sim, quais?
Sâmia Teixeira: Descobri o simples. Fui além do que muitos consideram quando enxergam a causa Palestina como puramente uma bandeira da esquerda revolucionária. É, deve ser, inclusive, e ter muito mais apoio da esquerda, mas é uma questão humanitária muito forte também. Ou acima de tudo, diria. É uma questão de justiça, de luta contra o apartheid, de violação de direitos humanos, de crimes contra um povo. De etnocracia escancarada, racista e discriminatória.
Foram 232 palestinos mortos desde o dia 10 de maio em bombardeios a Gaza. Desses, ao menos 63 são crianças e 36 são mulheres, aponta a UNRWA (Agência Responsável pelos Refugiados Palestinos). A agência aponta também que 47 mil pessoas estão em deslocamento, sendo a maior parte em escolas da UNRWA, abarrotados em plena pandemia.
Para os palestinos sitiados em Gaza, a realidade é de que uma bomba pode cair em suas cabeças a cada 12 minutos. Que infância essas crianças têm e que traumas carregarão? Ainda não chegamos aos estragos, em termos de números, do último ataque à Gaza em 2014.
Mas em termos de pavor, de precariedade de vida, os palestinos consideram viver um momento que se assemelha demais à Nakba, a chamada catástrofe palestina, quando o estado de Israel foi criado e a partir disso desabrigou mais de 750 mil palestinos, destruiu mais de 400 vilarejos e rendeu o número absurdo de mais de 7 milhões de refugiados espalhados pelo mundo.
É para este momento da história que os palestinos estão sendo lançados novamente, depois de mais de 70 anos de crimes rechaçados pela ONU e outras organizações internacionais.
Nós: Sabemos que o conflito na Palestina é histórico, mas o que está acontecendo na Palestina nesse momento? O que levou a esse confronto?
Sâmia Teixeira: O que ocorre agora tem a ver com o processo de colonização e judaização praticado com extrema violência contra o povo palestino por meio do despejo de 550 moradores do bairro de Sheik Jarrah, localizado na cidade de Al-Quds – Jerusalém Oriental. A tentativa de ocupação deste bairro já é antiga.
Desde o início da década de 1970 os palestinos dessa região resistem contra uma série de investidas de colonos judeus que entraram com ações judiciais, alegando que a terra pertencia a eles. O bairro de Sheikh Jarrah compreende cerca de 3 mil refugiados que foram expulsos em 1948 de outras regiões da Palestina histórica. Desde então, sofrem com a possibilidade de serem despejados, mesmo tendo sido realocados para o local com mediação da própria ONU (Organização das Nações Unidas).
Segundo dados da Anistia Internacional, 600 mil colonos vivem em assentamentos ilegais na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental. E de acordo com a OCHA (escritório de relações humanitárias da ONU), outros cerca de mil palestinos, sendo que quase metade são crianças, estão em risco de despejo forçado em toda Jerusalém Oriental.
Quero destacar que até o início dessa limpeza étnica, judeus possuíam menos de 6% das terras da Palestina. Por meio de leis e projetos da corte israelense, hoje já possuem 94% da área.
Nós: Você enxerga alguma relação da violência de Estado do Brasil e lá?
Sâmia Teixeira: Há sim relações com as periferias. O morador do Jacarezinho tem que convencer um por um que não é bandido – como se isso fosse justificável para atrocidades do Estado. O palestino tem que viver convencendo os outros de que não é terrorista. Ele é subcidadão se vive nos territórios de 1948 ocupados por Israel e é inimigo mais declarado na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. O discurso racista e discriminatório, a violência justificada estão presentes nas duas realidades.
A periferia é nossa Faixa de Gaza. É onde não entra serviço básico. Onde não chega dignidade, muito menos olhar e respeito da sociedade.
Pobres pretos e periféricos estão às margens assim como os palestinos na Palestina ocupada ou refugiados pelo mundo. Não somente em relação à realidade prática mesmo, como descrevi falando de nossas periferias e de como o estado policial pune esses setores de minorias, como também na relação política e ideológica.
Cresce cada vez mais um sentimento de adoração à Israel e a essa suposta terra santa, o que distorce toda a real origem da questão, que é unicamente geopolítica, de expansão e colonialista, e também alianças e comércio com tecnologias de segurança e de polícia entre Brasil e Israel. O caveirão que mata pobre preto no Rio é israelense. Bolsonaro e sua família também são adoradores de Israel. Por aí já podemos ter ideia de quanto abaixo do fundo do poço estamos nesse sentido.
Por outro lado, como diria o poeta palestino Mahmoud Darwish, o peso tecnológico, o poderio bélico de Israel sempre colocou o sofrimento do povo palestino em evidência. É daquelas ironias que desejamos que não existissem. Trata-se de uma causa ingrata – é muito difícil conseguir apoio, na minha opinião – mas que ganha espaço para discussões, ganha dimensão internacional.
Precisamos, não somente quando Gaza é bombardeada, descontruir o discurso orientalista e preconceituoso. Precisamos disputar os espaços de discussão, acabar com esse falso movimento sionista que se coloca, se intitula de esquerda. Porque nenhum projeto com origem e objetivos colonialistas e de opressão deve se encaixar no campo de lutas à esquerda.
Não há espaço para diálogo com quem oprime, discrimina, viola leis internacionais e segue na impunidade expandindo territórios e massacrando inocentes, mulheres e crianças confinadas em verdadeiras prisões a céu aberto. Judeus de extrema direita marcham livremente pelo centro da cidade velha em Al Quds cantando “Morte aos árabes”. Isso é criminoso.
Quero também destacar que não podemos aceitar, como fazem aqui contra a população das periferias, argumentações que visam justificar uma suposta “guerra”.
Aqui não há guerra às drogas. Há genocídio do povo preto. Com a Palestina é o mesmo. Seguem com essa tentativa de amenizar ou justificar o injustificável. Precisamos expor sempre a falsa simetria de forças. Palestinos não estão em pé de igualdade para falar em “conflito”.
A imprensa precisa ter a decência de utilizar os termos corretos nas reportagens. Palestinos morrem, mas israelense são assassinados? Quem mata os palestinos? Como podemos falar em “guerra” ou “conflito” quando são 145 mortos contra 6? Segundo dados da ONU, nos últimos 12 anos, sem contar com essa ofensiva recente da parte de Israel, foram mortas 251 pessoas. Do lado palestino, foram 5590 pessoas.
Nós: Na sua opinião, como fica a situação das mulheres palestinas nesse momento?
Sâmia Teixeira: Acho que as mulheres sofrerão realidades distintas por viverem num território todo fragmentado por Israel em suas expansões de domínio. Em Gaza, acredito que mulheres sofram com a falta de estrutura básica e de entrada de ajuda humanitária. Por viverem sob cerco israelense, sofrerão muito com as péssimas condições locais, com escassez de água potável, alimentos, com falta de energia, destruição do pouco comércio local. Acredito que na Cisjordânia e nos territórios de 48 as ofensivas judiciais aumentarão.
Os soldados israelense seguirão realizando incursões violentas, prisões e a população de colonos israelenses seguirá agindo com violência, linchando os palestinos, sob a proteção da polícia israelense. Acredito que muitos palestinos serão perseguidos e presos. E como muitas famílias vivem com maior parte dos entes homens presos, as mulheres seguirão resistindo em associações e movimentos de mulheres. Também penso que muitas mulheres palestinas serão presas, sobretudo as mais jovens, e as mais velhas serão punidas com as prisões de seus filhos, netos.
Dados do mês de maio, da associação de direitos humanos Addameer, apontam que 39 mulheres e 160 crianças estão em prisões israelenses. Apesar do que é constatado, é preciso manter o otimismo. Porque se a opressão é intensa, ao contrário do que no Ocidente pensa, as mulheres palestinas são desde sempre envolvidas nos movimentos de resistência. Façamos nossa parte, de buscar informações, apoiar e demonstrar nossa solidariedade, para que esse povo saiba que não estão só.
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