
‘A miscigenação no Brasil é uma ferida aberta da violência racial e de gênero’
Estudo concluiu que o Brasil é o país com a maior diversidade genética do mundo e que a violência sexual está no cerne dessa miscigenação; mulheres negras relatam suas reflexões acerca da pesquisa
Por Beatriz de Oliveira
28|05|2025
Alterado em 28|05|2025
O Brasil é o país com a maior diversidade genética do mundo. É isso que concluiu um estudo do Programa Genomas Brasil, que teve artigo publicado na revista Science no dia 15 de maio. Segundo a pesquisa, tal diversidade genética é resultado, em grande parte, da violência sexual praticada por homens europeus contra mulheres negras e indígenas no período colonial.
Foram analisados 2.723 genomas de brasileiros, de diferentes etnias e regiões geográficas, que resultaram em 60% de ancestralidade europeia, 27% africana e 13% indígena nativa. Identificaram-se 8 milhões de variantes genéticas, o que torna o Brasil a maior população miscigenada do mundo.
Genoma é o código genético de uma pessoa, ele mostra a sequência de DNA (ácido desoxirribonucleico, a molécula que contém as informações genéticas) que contém todas as informações hereditárias.
Outro ponto trazido pela pesquisa foi que a miscigenação produziu uma mistura variada de ancestralidades africanas na população brasileira, o que foi causado pelo cruzamento de pessoas oriundas de diferentes regiões e etnias da África.
O fato de que a violência sexual está no cerne dessa miscigenação já era sabido mesmo antes da publicação da pesquisa, mas ver isso com dados genéticos bem definidos pode gerar sensações e reflexões acerca das heranças da escravização. Pensando nisso, reunimos relatos de três mulheres negras que se dedicam a olhar para as consequências atuais do período colonial e para a luta do feminismo negro. Confira.
“A miscigenação no Brasil é uma ferida aberta da violência racial e de gênero”
Beatriz Sousa, jovem negra feminista soteropolitana, ativista no Odara – Instituto da Mulher Negra, onde contribui no Núcleo de Juventudes Negras e no Programa de Saúde.

Beatriz Sousa é uma jovem negra feminista soteropolitana
©arquivo pessoal
A pesquisa vem para explicitar aquilo que todas sabemos: a miscigenação no Brasil não se deu de maneira romântica, mas é uma herança colonialista e uma ferida aberta da violência racial e de gênero.
Nesse bojo, nós enxergamos como os direitos sexuais e reprodutivos de mulheres negras vêm sendo violados historicamente, como esse corpo é desumanizado em todos os sentidos na história do Brasil. Essa herança violenta e racista segue nos perseguindo nos números alarmantes de violência obstétrica e mortalidade materna que atingem majoritariamente mulheres negras. Mulheres e meninas negras são as principais vítimas de abuso sexual no Brasil, corpos de meninas negras são sexualizados muito cedo, são invadidos e adultizados.
O sentimento que fica é que a violência contra nossos corpos é duradoura e tem raízes antigas. A violação dos corpos de mulheres racializadas, negras e indígenas foi, e ainda é, um projeto em curso nessa nação. É por isso que precisamos reafirmar cotidianamente que nossos corpos nos pertencem.
“O corpo da mulher se configurou como um espaço político da violência racial”
Tathiana Cassiano, professora do Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina; pesquisadora associada ao Aya Laboratório de Estudos Pós-coloniais e Decoloniais e vinculada a Rede de Historiadorxs Negrxs.

Tathiana Cassiano é professora do Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina
©arquivo pessoal
Considero que esse estudo vai ao encontro de uma série de pesquisas científicas realizadas no campo da História e das Ciências Sociais que afirmam o caráter violento da formação do povo brasileiro. Essa variedade genética é um legado da colonização, da escravidão e até de políticas de Estado que, na prática, colocaram mulheres negras e indígenas em total vulnerabilidade.
O corpo da mulher se configurou como um espaço político da violência racial, mais um elemento das relações de poder que marcam a sociedade brasileira até o presente. Ou seja, isso significa dizer que não é porque a colonização acabou e a escravidão foi abolida que as heranças dessa violência se apagaram. O imaginário social sobre mulheres negras e indígenas ainda é pautado pela subjugação e inferiorização.
Nessa perspectiva, eu percebo os resultados desse estudo, primeiramente, como fundamentais para um olhar mais crítico em relação aos discursos sobre miscigenação; e também por ser representativo da importância de pesquisas transdisciplinares que tem como foco a realidade brasileira e que podem ser fundamentais na construção de políticas públicas que visem combater as desigualdades e violências históricas.
“A pesquisa acerca do sequenciamento do genoma brasileiro nos apresenta a herança da colonização”
Ana Lúcia da Silva, professora Adjunta efetiva da Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL – MG, campus de Alfenas – MG. Doutora em História (2023), linha de pesquisa: “História Política”, pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPH/UEM).

Ana Lúcia da Silva é professora Adjunta efetiva da Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL – MG
©arquivo pessoal
Muitas mulheres indígenas, africanas e negras foram desrespeitadas no contexto colonial e imperial. Como relataram a filósofa e historiadora Lélia Gonzalez e a historiadora Maria Beatriz Nascimento, ambas ativistas do movimento negro brasileiro e do feminismo negro, desde a colonização europeia, nós, mulheres negras, fomos desrespeitadas devido a objetificação e a hipersexualização dos corpos femininos e negro.
Apesar dessas adversidades, o povo negro não sucumbiu à escravização, resistiu, realizou fugas e revoltas, organizou quilombos, publicou textos em jornais, uma literatura negra em defesa da abolição como Maria Firmina dos Reis ao publicar o romance Úrsula (1859). Outros(as) abolicionistas negros(as) também lutaram incansavelmente contra a escravização negra, tais como: Chiquinha Gonzaga, Luiza Mahin, Luiz Gama, Dragão do Mar, André Rebouças, José do Patrocínio, entre outros(as).
Nesse sentido, conhecer nossa História e o genoma completo de nossa gente contribui para o conhecimento de nossa ancestralidade, e também a defesa do desenvolvimento de mais pesquisas e implementação de políticas públicas para pensarem a promoção da saúde de grupos subalternizados historicamente como indígenas e negros. Assim, pode-se depreender que a luta antirracista não é só da população negra e dos povos originários, mas de todo povo brasileiro que conhece o passado e entende como tudo isso reverbera na sociedade contemporânea.
Dessa forma, a pesquisa científica que veio a público acerca do sequenciamento do genoma brasileiro nos apresenta a herança da colonização, das relações étnico-raciais e de gênero assimétricas (desiguais) na sociedade, desde o social ao DNA do povo brasileiro.