A espiritualidade como instrumento de controle social

A espiritualidade pode ser um caminho de libertação, mas, muitas vezes, é usada para naturalizar desigualdades.

19|03|2025

- Alterado em 01|04|2025

Por Pam Ribeiro - Bruxa Preta

Quando uma crença justifica a dor como “aprendizado”, a pobreza como “prova necessária” e a opressão como “missão de vida”, ela deixa de ser um instrumento de transformação e se torna um discurso de conformismo.

Ao longo da história, discursos religiosos e espiritualistas foram mobilizados para validar hierarquias. Desde a ideia de que a miséria é um teste divino até a noção de que certas violências acontecem porque “precisavam acontecer”, a fé tem servido para manter estruturas de poder intactas. Em vez de questionar por que algumas pessoas nascem em condições extremas de desigualdade, por que mulheres são forçadas ao silêncio ou por que corpos racializados são alvos constantes de violência, preferiu-se dizer que tudo faz parte de um “plano maior”.

Esse tipo de pensamento transfere a responsabilidade da opressão para quem a sofre. Se uma mulher é abusada e dizem que faz parte de sua “caminhada espiritual”, o agressor é invisibilizado. Se uma pessoa nasce em um sistema racista e afirmam que isso faz parte do seu “desenvolvimento”, a estrutura de exclusão permanece. Se alguém com deficiência escuta que sua condição é “uma missão”, o capacitismo se perpetua.

A espiritualidade não precisa ser um convite à resignação.

Se não há espaço para questionamento e transformação, resta apenas um discurso de aceitação passiva das injustiças. Justiça e espiritualidade não são contraditórias, mas quando a fé serve apenas para justificar o mundo como ele é, ela se torna cúmplice da violência sistêmica.

É possível ter fé e ainda assim se indignar. É possível acreditar no sagrado sem romantizar o sofrimento. Questionar não é desrespeito, é parte do caminho de consciência. Uma espiritualidade que não reconhece as estruturas de opressão corre o risco de espiritualizar a violência, de revestir a desigualdade com uma camada de misticismo que a torna ainda mais difícil de enfrentar.

Espiritualidade que liberta é aquela que permite que o indivíduo se veja, se afirme e se levante, não que aceite ser dobrado em nome de uma suposta evolução. Ela caminha junto com o senso crítico, com o corpo desperto e com a vontade de mudar o que foi imposto. O que vem do alto não pode anular o que grita aqui embaixo.

Pam Ribeiro - Bruxa Preta Terapeuta reikiana, taróloga, astróloga, bruxa urbana e favelada. Autora do portal "A Bruxa Preta", em que escreve sobre espiritualidade, misticismo e universo holístico numa perspectiva decolonial e subversiva.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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