A alegria e a tristeza de ser a primeira mulher negra indicada ao TSE

Vera Lúcia é primeira mulher negra a ser indicada na lista tríplice e pode ocupar a cadeira de ministra no Tribunal Superior Eleitoral, a decisão será de Jair Bolsonaro. Em entrevista exclusiva, a advogada conta sobre sua relação pessoal e profissional com a democracia

Por Beatriz de Oliveira

25|05|2022

Alterado em 25|05|2022

Vera Lúcia Santana Araújo entrelaça parte de sua história com a reconstrução da democracia brasileira, já que viveu o período da da Ditadura Militar e viu seu fim. Votou pela primeira vez aos 26 anos. Formou-se em direito e fez sua reputação como advogada eleitoral com respeito às normas, entendendo que só ela poderia zelar por seu nome. Hoje, aos 62, recebe indicação à ministra do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e pode se tornar a primeira mulher negra a ocupar esse espaço.  

A indicação gerou sentimentos conflitantes em Vera Lúcia: alegria e tristeza. O primeiro nasce da satisfação pelo reconhecimento de uma extensa carreira.  No caso do segundo, a sensação surge de um incômodo pelo fato da indicação refletir o racismo vivenciado no Brasil, já que só agora há a possibilidade de uma mulher negra chegar ao cargo.

“Essa ausência negra nos poderes, em todos os níveis, é algo muito forte na nossa história. Então, a gente vive nas ausências”, afirma. A advogada figura na lista tríplice feita pelo Supremo Tribunal Federal (STF) junto a André Ramos Tavares e Fabrício Medeiros. É o presidente da República Jair Bolsonaro o responsável por escolher o novo nome para compor o cargo. 

Ela brinca que está se sentindo famosa com os pedidos de entrevista e agendas que passou a participar após a indicação. Mas entende, mais uma vez, a presença do racismo na repercussão gerada por seu nome figurar na lista tríplice: afinal, homens brancos entram e saem de cargos como esse com naturalidade.

“Meu caso ganha essa visibilidade pelo fato puro e simples de ser uma mulher negra, ou seja, é algo tão inusitado, tão impensado, quase que recusado pela sociedade”. E continua: “Mas ser eu a cumprir hoje esse papel histórico me dá orgulho e uma responsabilidade muito grande”.

Na frente de casa, uma biblioteca

Vera Lúcia nasceu em Livramento de Nossa Senhora, na Bahia. Sua mãe, Rosália Celestina, era professora de português e seu pai, Joaquim Lino, foi garimpeiro. “Eu tive uma infância absolutamente normal em uma cidade pequena. Quando Livramento foi ter televisão, eu já tinha 11 anos de idade”. Com o pai muito tempo fora de casa em razão da profissão, a jurista destaca que sempre teve a referência de “mulher e trabalho”, por ver a mãe se desdobrando no trabalho em escolas. Convivia com mais quatro irmãs e um irmão. 

Em frente a sua casa, havia uma biblioteca de livros infantis. Com gosto pelo estudo e pela leitura, tornou- se uma frequentadora do local. Lá, ganhava prêmios de melhor leitora e participava de todas as atividades. Numa dessas ações, viveu sua primeira experiência com o racismo. Aconteceu um desfile de crianças e a votação para definir os vencedores seria  por aplausos. “Fui a mais aplaudida e a filha de um juiz de direito da cidade também tinha participado. Ele saiu revoltado, porque era inadmissível que uma ‘negrinha’ daquela fosse mais aplaudida que a filha dele”. 

Quando completou 13 anos, seu pai faleceu. Para dar conta do sustento dos filhos, sua mãe decidiu se mudar para Vitória da Conquista, também na Bahia. A cidade era a mais próxima da capital do estado, Salvador, e isso permitiu que Vera morasse e cursasse o ensino médio na região por dois anos.

Na capital baiana, descobriu que o mundo ia além dos livros e da rádio que costumava ouvir. “Descobri que o Brasil vivia um contexto político extremamente delicado, que não tinha democracia, que a gente não tinha liberdade, inclusive para ler os livros que quisesse”, diz em  referência à Ditadura Militar, que vigorou entre os anos de 1964 e 1985. A partir dessa percepção, passou a atuar no movimento estudantil. 

Contrariando a vontade da mãe, que desejava que a filha fosse médica, chegou a fazer curso de teatro. Quando não passou para o vestibular de medicina, Rosália decidiu que ela deveria morar em Brasília, onde já vivia uma de suas irmãs. Mas Vera, aos 18 anos, não gostou do que encontrou na capital do Brasil, em 1978. “Era tudo muito esquisito. Imagina alguém que sai de uma cidadezinha, vai para Salvador, se deslumbra, se encanta e vem para Brasília, uma cidade que não me oferecia nenhum atrativo”. 

Ainda amante do estudo e da leitura, Vera decidiu prestar vestibular para Direito no CEUB (Centro de Ensino Unificado de Brasília). No início, o curso não agradou, mas hoje não tem dúvidas de que fez a escolha certa. O mesmo aconteceu em relação à cidade, quando se abriu para conhecer Brasília, nunca mais  morou em outro estado. 

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Desde a formação em direito, Vera traçou uma trajetória diversa em sua área de atuação

©Arquivo Pessoal

Atuação profissional diversa

Após sua formação em Direito, a jurista abriu um escritório com outros dois colegas. Em 1984, foi contratada como procuradora jurídica do Conselho Regional de Odontologia no Distrito Federal, cargo em que atuou por quase 15 anos.

Do início de sua carreira pra cá, a profissional já atuou em diversos espaços. Trabalhou no Conselho Federal de Fonoaudiologia, Conselho Federal de Serviço Social, Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal e Sindicato dos Vigilantes. 

Sua primeira função na administração pública foi durante o Governo Sarney, presidente do Brasil de 1985 a 1990, como assessora parlamentar. Desde então, passou por outras funções, como diretora substituta da Divisão de Nacionalidade e Naturalização, coordenadora jurídica do Departamento Nacional de Trânsito e procuradora jurídica do Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF), além de prestar serviço  particular como advogada, no período em que ficou fora do setor público.

“Tenho uma atuação jurídica e profissional tão diversa quanto minha própria representação: de ser mulher, negra e nordestina”, reflete. 

A jurista também tem trajetória no movimento negro. Para ela, viver num país racista impõe o ingresso no ativismo por instinto de sobrevivência. “A minha entrada em determinados espaços é simbolicamente tensionada, porque a exclusão não nos dá tranquilidade e conforto para estar em todos os lugares”. 

Vera aponta alguns avanços conquistados pelo movimento negro ao longo dos anos, como a política de cotas e maior presença de pessoas negras no mercado de trabalho. Apesar disso, destaca que “a violência mortal é intocada”. 

“Vivi a organização da Marcha Zumbi dos Palmares em 1995. Se você pegar os documentos da marcha, os documentos da Marcha das Mulheres Negras em 2015 e as nossas pautas de reivindicação e tirar a data, você não vai saber qual foi a de 1995, de 2015 e a de hoje. As imagens são as mesmas”, afirma.

No artigo “Racismo mata: o caso do Carrefour e outros tantos Brasil adentro”, a advogada relata como o assassinato por espancamento de João Alberto Silveira Freitas, em 2020, a fez lembrar do assassinato do trabalhador Júlio César de Melo Pinto, em 1987. Ambos ocorreram em Porto Alegre, foram “confundidos” com bandidos e tiveram como cenário um mercado.

“Para nós, negros, é como se a mensagem fosse: existo logo sou criminosa ou criminoso”, afirma fazendo paralelo a frase “Penso, logo existo” do filósofo René Descartes. 

Hoje, Vera é ativista da Frente de Mulheres Negras do DF e entorno, mobilização que reúne mulheres de diferentes gerações e integra a Executiva Nacional da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), composta por juristas de diferentes estados. 

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Seguindo com rigor às normas, a advogada executa seu papel como jurista sem se afastar das causas que as movem, como o combate ao racismo

Confiança no sistema eleitoral

Aos 26 anos, Vera votou pela primeira vez. Era o ano de 1986 e as eleições definiram os parlamentares a compor a Assembleia Nacional Constituinte, prevista para ocorrer no ano seguinte. A advogada relata que, como o Distrito Federal não tinha representação política, o processo de retomada das eleições no país exigiu uma luta a mais para o local. “Isso criou uma geração política muito rica em Brasília, que hoje já não se encontra mais”. 

Ao lembrar do período de construção e aprovação da atual Carta Magna brasileira, também conhecida como Constituição Cidadã, reforça que aquele foi um marco, pois todos estavam  entrelaçados e focados em  uma pauta única. “A democracia faz parte da minha história de vida. Minhas relações pessoais passaram a ser, em boa medida, com as pessoas que  conheci a partir do fazer político”, conta.  

Tais experiências levaram a advogada a atuar na coordenação jurídica de campanhas eleitorais e, posteriormente, em consultorias voltadas  à legislação eleitoral. “O que sempre distinguiu minha atuação como advogada eleitoral foi que, diante das coordenações políticas,  sempre estabeleci um padrão muito rígido”. A rigidez mencionada por Vera seria uma forma de definir o que chama de um ‘forte senso de institucionalidade’. “Talvez seja  por essa origem de exclusão, de não ter uma retaguarda. Quem tinha que zelar pelo meu nome era eu mesma”, explica. 

Sobre os questionamentos do atual presidente da república, Jair Bolsonaro, em relação às urnas eletrônicas e o sistema  eleitoral brasileiro,  sua análise ancora-se em sua vivência como cidadã e profissional, evidenciando ter confiança nesses meios. “A justiça eleitoral ganhou um nível de especialização extremamente sofisticado com o sistema desenvolvido que oferece à democracia uma estabilidade.”

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