‘Existem dois mundos: o dos ricos e o dos pobres’, diz ativista de saúde
Conversamos com Dalva Silva, ex-auxiliar de enfermagem da Prefeitura de São Paulo e militante do movimento de saúde entre os anos 1970 e 1990. Ela falou sobre política, Ditadura e a importância do SUS.
Por Lívia Lima
19|03|2020
Alterado em 19|03|2020
Este conteúdo faz parte do especial “Na periferia da saúde: precarização do SUS afeta mais as mulheres pobres e negras”
O Movimento de Saúde da Zona Leste, historicamente reconhecido por sua proporção e suas conquistas, se fez a partir da atuação de mulheres em seus pequenos bairros. De um conjunto de bairros, dos quais faz parte o Jardim Nordeste, onde moro, surgiu uma grande mobilização de mulheres por equipamentos públicos de saúde. Dentre esses, estão Vila União, Burgo Paulista, Jardim São Francisco, entre outros.
Em meu trajeto cotidiano, o acesso da estação de metrô para minha casa se dá pela lotação 2709-10 – Vila União. O ponto final, localizado em uma praça, há uns 10 minutos de caminhada da minha casa, fica bem perto da casa de Dalva da Silva, uma das militantes do movimento de saúde entre os anos de 1970 e 1990. Em uma tarde visitei sua casa, como antigamente as vizinhas faziam, e juntas tomamos um café, lembrando os acontecimentos daquela época.
Aposentada como auxiliar de enfermagem pela Prefeitura de São Paulo, Dalva construiu sua trajetória na área da saúde, porém faz questão de se referir a si mesma como artesã. Atualmente, aos 60 anos, continua trabalhando, duas vezes por semana, em um centro de convivência de idosos em Ermelino Matarazzo, ensinando técnicas e práticas artísticas diversas.
“Eu aposentei como auxiliar de enfermagem, mas eu nunca apliquei uma injeção em paciente”, confessa aos risos. “Nunca instalei um soro, dei medicamento. Eu fui parar no movimento de saúde mental. Eu trabalhava no Hospital Planalto. Aí, na gestão da Erundina, entraram com a implantação de Centros de Convivência, pra população que saia da internação de psiquiatria, para lugares de socialização. O pessoal do partido sabia que eu era ligada às artes. Eu fui pro Centro de convivência do Parque Chico Mendes trabalhar com oficinas terapêuticas. Aposentei em 2013 como auxiliar de enfermagem, mas sou artesã, meu negócio é arte. Gosto de tear, fazer bolsa, boneca”, explica. “A gente esteve muito junto na luta antimanicomial”.
Segundo Dalva, o início do movimento de saúde no bairro se deu a partir da vinda de um religioso para a região, que começou a incentivar a comunidade a ir atrás de seus direitos para melhoria das condições do local.
“Eu era solteira, mas já tinha filho. Na verdade, eu nunca me casei. Nós não tínhamos uma organização, éramos todas donas de casa. Mas na década de 70, a gente começou se organizar por causa do padre Xavier, que veio pra cá pro Burgo Paulista. Eu fico emocionada porque a gente tava em plena a ditadura, e esse padre ia de casa em casa pra chamar pra ir à reunião. A ditadura foi muito pesada. Ele falava pra gente se organizar, que o bairro precisava de um monte de coisa, de posto de saúde, de creche. Eu nunca tinha saído de casa pra coisa de partido. Ele foi tentando aglomerar. Nessa época a igreja tava mudando, por causa da Teologia da Libertação. A partir dessas reuniões a gente começou a ver as necessidades, o que precisava. E a periferia tava abandonada, largada”, relata.
A partir dos encontros nas igrejas, Dalva e outras donas de casa começaram a se organizar para reivindicar melhorias em seus bairros. “A primeira coisa pelo que a gente se organizou foi lá no Largo São Francisco, que tinha uma lagoa e as crianças morriam afogada. Tinha mato, tinha cobra. Tava muito perigosa. A coisa começou por aí, para aterrar a lagoa. A gente não tinha muita noção do poder público. As mulheres se juntaram e foi atrás da prefeitura e foi uma conquista. Aterraram a lagoa”.
Segundo Dalva, a organização das mulheres incomodava seus companheiros, que nem sempre apoiavam a participação delas em lutas políticas. “Começou a dar briga dentro de casa. Os maridos começaram a ficar bravos, essas mulheres começaram a sair de dentro de casa e seguir esse padre. Começou a ter muito conflito”. A artesã relata que, a partir das reuniões nas igrejas, as mulheres começaram também a ter formações e se engajaram na militância nos movimentos populares. “A gente começa a reivindicar as coisas pro bairro, mas também abre a cabeça. Tinha vários cursos. Vinha gente de outro lugares dar curso de política pra gente. E aí o grupo começou a crescer nesse sentido”.
Em relação ao movimento de saúde, Dalva conta que a mobilização aconteceu para a construção de postos de saúde nos bairros. “Só tinha posto na Penha. Na época não tinha o SUS, só o (INPS – Instituto Nacional de Previdência Social) e só tinha direito quem era registrado em uma empresa. Por isso que depois entrou o SUS, que era um atendimento universal. Isso veio depois, com a batalha dos movimentos de saúde para o atendimento ser universalizado. Aqui no Burgo foi essa organização que fez implantar o primeiro posto. A gente não tinha acesso ao poder público, aos conselhos. Na época, a gente não tinha essa liberdade. A gente ia lá, mas não gritava muito porque a gente tava em um momento de repressão muito grande. O Dops já rondava por aí. Acabamos conquistando esse primeiro posto de saúde, uma casinha muito simples, um médico só, o Dr. José Erivalder Guimarães, figura muito importante na nossa comunidade. Na Rua Conceição do Castelo. Hoje ele é a AMA”.
Além das conquistas dos postos de saúde, o movimento das mulheres iniciou mobilização por outras causas que também eram importantes para elas. “As mulheres estavam começando a trabalhar fora, não tinham onde deixar os filhos, aí a gente começou a batalhar para ter um lugar pra deixar as crianças. Foi uma luta grande pelas creches. As mulheres se juntaram de novo, criam comissões. Burgo Paulista, Jardim Nordeste, Jardim São Francisco, São Nicolau”.
A partir da organização nas comunidades eclesiais de base, por meio do apoio de Dom Angélico, bispo da diocese de São Miguel Paulista, que teve forte influência no período, muitos moradores da zona leste se engajaram mais na militância política e partidária, dentre eles, Dona Dalva.
“A igreja respaldou os movimentos o tempo todo. A gente tinha muito curso de iniciação política, de alfabetização popular, curso de comunicação popular, muita palestra e trabalho de organização. A gente precisava tomar conhecimento da exploração e do que a gente precisava. A igreja abriu as portas pra organização popular. A organização nossa veio com a necessidade do posto e dessa organização toda a gente foi cair no Partido dos Trabalhadores, que estava nascendo também. A gente precisava se organiza pra outras coisas. A gente não tinha ônibus, merenda de melhor qualidade nas escolas. Nós aqui tivemos uma organização muito grande no Partido dos Trabalhadores, mas pra nós tudo foi crescendo dentro da igreja, dentro do movimento popular. Quando o partido nasceu, fomos os primeiros filiados. A leva da primeira turma, e foi legal porque dos bairros saiu a organização dos núcleos do partido. Em cada bairro tinha um núcleo e um diretório. O partido tinha essa relação com a comunidade, ouvia as reclamações que a gente levava. Começamos em um movimento pequenino e acordamos para outras questões”, conta.
Apesar da filiação ao PT, Dalva acredita que a militância acontecia dentro dos movimentos populares. “As coisas eram mescladas, movimento e partido. Se falava muito do crescimento do partido, fazia filiação, de boca em boca. As reuniões do partido também eram nas casas. Cada bairro tinha um núcleo. O que era discutido era levado pro diretório, o intermediário entre o poder público e o que o pessoal tava reivindicando. Depois veio as questões políticas. A gente falava da exploração da mão de obra, de como a gente era dominado”.
Dalva relata que muitos dos integrantes do movimento de saúde se tornaram depois representantes públicos por meio de cargos políticos. “Os primeiros vereadores, deputados que elegemos, eram do movimento. Os primeiros médicos que trabalharam sobre essa questão da implantação do SUS, foram Roberto Gouveia, deputado federal por muitos mandatos, amigo nosso, militava junto com a gente. Ele era do Jardim Nordeste, morava ali na Campanella. Ele saiu da politica, agora dá aula na USP. Eduardo Jorge, foi um dos fundadores do PT, foi pro PV, agora foi pro REDE, o vice da Marina. Esses médicos tiveram total importância no trabalho da organização da população. Carlos Neder, que era médico em Artur Alvim também. Esses três médicos tiveram uma representatividade aqui na zona leste. A participação deles no movimento foi fundamental para a implantação do SUS”, acredita.
“O partido cresceu bastante, conseguiu eleger um monte de gente. A gestão da Luiza Erundina, uma mulher, foi um dos primeiros governos a ser eleito pelo partido, e a gente tinha aquela gana de que poderia fazer as mudanças. As lutas, a gente sempre foi de luta de rua. De sair, de fazer pichação, de colar cartazes, de correr da polícia. A gente brigava por aquilo que a gente acreditava. Infelizmente a gente fica com o coração apertado. É uma mágoa minha.
O partido mudou muito. E a gente fica meio saudoso porque a época da nossa militância era muito boa”.
A aposentada, que hoje não é mais filiada ao partido, avalia que o PT perdeu a força que tinha no período devido ao afastamento dos bairros. “Agora eu não milito mais, mas a saída foi natural. Na verdade, foi um descontentamento. Na primeira eleição do Lula, contra o Collor, a gente trouxe ele aqui no Burgo. A gente panfletava. Quando ele não foi eleito, nós choramos junto. Nos organizamos bastante para dar apoio para a Luiza Erundina, no programa de governo. Depois a gente acabou se afastando. O partido começou a rachar muito. Fez muito alianças que a gente não concordava, e principalmente, se afastou da militância. Não tinha mais núcleo. O partido foi crescendo, eles foram se elegendo. Era muito lindo. Ideologicamente era um partido que a gente sempre amou. Mas, infelizmente, ele perdeu a militância. Eu ainda hoje sou lulista. Voto no Lula. Voto nos candidatos do partido, mas em pessoas, que eu admiro, que eu gosto. O partido em si se distanciou muito dos movimentos. Virou um partidão de elite, aí virou essa história toda que a gente vê aí. Os homens que a gente mais confiava, a gente não sabe até onde vai a história. O Zé Dirceu, José Genoino, que era tudo companheiro nas lutas. A gente fica com muita tristeza de o partido estar tão desacreditado. Mas eu continuo gostando do Lula. A nossa esperança esteve sempre nele e ele fez um governo legal. Quem não gosta, não gosta mesmo, não adianta. Não gosta da esquerda, não gosta de petista. Não gosta de ninguém”.
Dalva avalia que a Igreja Católica, que teve tanta importância na mobilização dos moradores das periferias nos movimentos por direitos, também mudou muito com o passar do tempo. “A organização popular estava metendo medo na cúpula da igreja. E aqui era uma região muito forte e tinha respaldo de Dom Angélico, que era o bispo. Mas a cúpula da igreja entrou com tudo para desmobilizar os movimentos. E a primeira coisa que fizeram foi tirar o Dom Angélico, aí enfraqueceu bastante. A igreja teve um retrocesso. Eu quase não reconheço a igreja católica. Hoje a igreja é carismática, não se fala de política. Eu não sou católica, ia de vez em quando porque eu tinha um namorado católico, mas eu briguei com ele. Um dia ele disse que eu tinha que casar com ele, que Deus ia nos abençoar mais ainda. Quer dizer que quem não tá junto e não tá casado, tá amaldiçoado né? Eu não vou casar coisa nenhuma, não”, conta.
Firme e decidida, Dalva não era uma mulher a frente do seu tempo, pois viveu intensamente seu período histórico. “Meu primeiro companheiro foi morto na época da ditadura militar. Eu fui levada pelo DOPS (Departamento de Ordem e Política Social), umas histórias que acabam mexendo com a gente. Na época a gente tinha que fazer as reuniões escondida. O DOPS perseguia muito a igreja e os movimentos. A gente ficava arriscando a vida”.
Sua experiência no enfrentamento à ditadura militar não era assunto tão tranquilo para um café da tarde. Dalva prefere contar sobre as lembranças positivas de sua militância e envolvimento de tantas outras mulheres no movimento de saúde. “Na verdade, acho que o grande saldo de tudo isso é que todas aquelas donas de casa, que lavavam, que passava, mudaram. Mudaram conceitos, formas de vida. Umas se separaram, outras casaram, mas a gente adquiriu outra visão de mundo. Porque, além dessas lutas, dos movimentos, a gente cresceu também, a gente começou a entender que existe dois mundos: o mundo de ricos e o mundo de pobres. Todos os movimentos, os cursos, ajudaram a gente a crescer como pessoa. Entender melhor a dinâmica da política, como a política funciona. Uma visão de mundo muito grande”, conclui.
A gente começou a entender que existe dois mundos: o mundo de ricos e o mundo de pobres
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