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‘Acesso à educação vai muito além de garantir vaga na escola’

Passei o dia estudando na biblioteca Sérgio Buarque de Holanda, no centro de Itaquera, zona leste de São Paulo, quando já era fim da tarde, em um daqueles momentos que damos de intervalo para nossa cabeça, comecei a observar uma menina de cabelos pretos e longos que havia acabado de sentar na mesa da frente. […]

Por Regiany Silva

03|08|2017

Alterado em 03|08|2017

Passei o dia estudando na biblioteca Sérgio Buarque de Holanda, no centro de Itaquera, zona leste de São Paulo, quando já era fim da tarde, em um daqueles momentos que damos de intervalo para nossa cabeça, comecei a observar uma menina de cabelos pretos e longos que havia acabado de sentar na mesa da frente. Ela estava acompanhada da mãe, que percorria os corredores da biblioteca enquanto a garota curtia o livrinho que pegou da seção infantil.
Ela estava toda lindinha lendo a história de um palhaço esquisito, quando a mãe terminou sua passagem rápida pelas prateleiras e tentou adiantar a leitura da menina. “Vamo filha, tenho muita coisa pra fazer hoje ainda!”. A menina, no entanto, continuava lendo de boa, como se não percebesse a presença da mãe no cangote pressionando a bichinha.
Depois de um tempo a mãe cedeu, sentou ao lado e esperou, passivamente – e até sorrindo um tantinho -, a menina terminar de ler. Passou mais uns dez minutos e ela findou a leitura, olhou para a mãe que permanecia ao seu lado, sorriu e avisou “agora sim!”. Correu na prateleira de onde tirou o livro e o devolveu. As duas foram embora.

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crédito: Regiany Silva


Fiquei pensando por que ela não levou o livro para casa, não só aquele, mas outros, a biblioteca permite até três empréstimos. Sei lá, vai vê elas não moram pertinho, não sabem quando vão passar por aqui de novo, e não dava para se comprometer com a data da devolução, ou podia ser por qualquer outro motivo.
Nos últimos tempos tenho procurado espaços na cidade onde eu possa estudar com tranquilidade, que seja silencioso, que tenha uma mesa e sinal de wi-fi, e percebi que não é fácil encontrar esses espaços. Descolei que nem toda biblioteca tem wi-fi,, e que nem toda biblioteca com wi-fi, fica perto da minha casa.
Eu sempre morei na Cidade Tiradentes, e lembro que a única biblioteca que conhecia era a Biblioteca Comunitária Solano Trindade, criada por iniciativa dos próprios moradores. Hoje, moro na Cohab 2, também na zona leste, e por aqui eu não conhecia nenhuma perto de casa, por isso, passei a frequentar a Biblioteca Sérgio Buarque de Holanda. Pego um ônibus para chegar até aqui. Pesquisando na internet, descobri duas que ficam mais perto de casa, a Vinicius de Moraes e a Vicente de Carvalho, vou conhecer esses espaços essa semana.
Além de pensar por qual motivo ela não levou os livros, fiquei me perguntando quantas vezes eu passei a tarde em uma biblioteca. Bem, na minha infância nem a Solano Trindade existia. Na quebrada, só construíam prédio mesmo. Aliás, não havia nem escola suficiente, tanto que só entrei no primeiro ano do Ensino Fundamental com oito anos, o certo era entrar aos sete anos, mas minha mãe não conseguiu vaga pra mim.
Só que acesso à educação vai muito além de garantir vaga na escola né?! Tem a ver com garantir acesso a uma série de possibilidades de desenvolvimento que ainda nos são negados, seja pela falta de vagas, de bibliotecas, de teatros, ou ainda, porque a gente aprende que trabalhar é o mais importante e porque o corre diário de nove horas no serviço mais quatro horas no transporte público não deixa espaço para pensar nessas fita de estudo.
Ainda assim, fico feliz de ver um bocado de adolescentes na biblioteca que parecem estar estudando para o vestibular. No Ensino Médio, eu nem sabia o que era Fuvest. Espero que nossa consciência sobre o direito de aprender e se desenvolver integralmente esteja cada dia mais fortalecida e que as possibilidades realmente atravessem a ponte e cheguem por aqui, igualmente.
Regiany Silva, é designer e integrante do Nós, Mulheres da Periferia. Mora na Cohab José Bonifácio, zona leste de São Paulo.