O quanto somos PRETAS
A mulher negra na periferia da classe, igualdade e do direito
O Brasil tem 195,2 milhões de pessoas, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2011. A maioria são mulheres: 100 milhões. Delas, 50 milhões são negras, declaradas pretas ou pardas. Representamos metade do total nacional feminino. E desse mundaréu de números, fica a imaginação e a vontade de contabilizar as morenas claras, morenas escuras e moreninhas que ainda firmam o pé no processo de identidade racial. Entre as mulheres negras (Nós), decisivas na busca do sustento familiar e inseguras na manutenção da autoestima, 39,8% estão em situação de pobreza, tornando este o grupo mais vulnerável da nossa sociedade. Em 2009, das 11 milhões de famílias incluídas no programa Bolsa Família, 61,3% dos beneficiários eram mulheres negras. Das famílias que habitam domicílios urbanos em favelas, 26% são liderados por elas. Das senzalas para as bordas do país. Nós, mulheres da periferia, somos majoritariamente pretas. Estamos na beira da beira dos direitos, lá onde a dor passa do singular para o plural e a força particular encontra a coletiva. Contrariando o conceito de racismo velado, já que só não vê quem AINDA não quer, seguramos o peso do racismo na interconexão entre gênero, classe e raça, remetendo a mulher negra a um contexto de tripla exclusão. Violência carregada de estereótipos, preconceito e a persistência de um pensamento escravocrata. Dessa tríplice, nascem explicações para as pretas (e jovens) serem as principais vítimas do feminicídio em todas as regiões do Brasil e corresponderem a 61% dos óbitos. No dia a dia, cresce a troca de motivação para libertar os cabelos da química e avançar pelo reconhecimento de nossa identidade. Ocupar territórios preparados para nos barrar. E lutar por igualdade, cuja disparidade se revela nas estatísticas. Dados do PNAD mostram que cerca de 6,5 milhões de mulheres exercem o trabalho doméstico remunerado no Brasil – instituído como profissão apenas da década de 1970. Destas, 61,6% são negras, pobres, com baixa escolaridade e a maioria sem formalização do vínculo trabalhista. A emancipação da mulher negra precisa ultrapassar – entro outras tantas – a barreira de benefícios que a exploração do seu trabalho traz para as mulheres e homens brancos. De sinhá à patroa, essa atividade é desenvolvida há séculos e até hoje não tem amparo efetivo e igualitário, comparado com o regulamento das demais profissões. É o amor que ainda transborda em cuidados vendidos para os filhos e lar de outra e a despedida cedinho do que nasceu do próprio ventre e da casa que a espera tarde da noite. Na base da sociedade, a mulher negra tem um rendimento médio de R$ 760,27, inferior ao do homem negro. A mulher branca (R$ 1.437,64) ocupa posição superior ao do homem negro, mas ainda não atinge o homem branco. Em termos de igualdade de gênero, estamos duas casas atrás no “jogo da vida”. O ensino superior tem atingido apenas 10,9% das pretas. Nos cargos de direção das empresas privadas, apenas 9% tem liderança negra e feminina. A mobilização por direitos essenciais como moradia, saúde e educação, fez com que o feminismo ganhasse uma vertente negra, para diferenciar o foco e os níveis de cada luta. O Feminismo negro nasce também da necessidade de liberdade e igualdade, mas ainda está muito arraigado na sobrevivência. No quilombo do Piolho, Mato Grosso, Tereza de Benguela resistiu e se tornou líder. A antiga Canindé, favela de São Paulo, foi traduzida por Carolina Maria de Jesus. Em Santos surgiu Laudelina de Campos Melo, a primeira mulher a criar uma associação para as “empregadas domésticas”. Nos cantos de Minas nasceu Lélia Gonzalez, inspiração para jovens adeptas do feminismo negro no Brasil. E ainda é aqui, na borda do morro, que Claudias são mortas, Elizabeths perdem Amarildos e Marias perdem Douglas. Somos as netas da lavadeira, a filha da doméstica e a menina que aprende muito cedo a se virar sozinha, não contar com o pai ou seguir sem companheiros. Somos as mulheres que descendem de uma luta ancestral por liberdade, travada na África, senzalas, casarões, matas e quilombos. Somos quem aumenta a presença preta nas universidades, acima dos homens negros, mas ainda cerra os pulsos por espaço para o estudo e reflexão social e racial nesses ambientes. Somos a maioria e poucas de Nós experimentam um cotidiano que seja físico e psicologicamente saudável. É preciso ainda reconhecer e combater a existência da exclusão social, do racismo e, a partir disso, criar políticas públicas para diminuir as estatísticas. E quanto mais luzes acenderem para a descoberta da identidade preta – um processo complexo, mas com fluidez – mais forte a luta fica.