Jornalista se inspira em Racionais para criar o “Diário de uma detenta da CPTM”
Minha relação com os trens é de amor e ódio. Odeio precisar dele em minha vida, mas impossível viver sem. Moro em Perus, região noroeste de São Paulo, e preciso passar pelos trilhos da Linha 7-Rubi para trabalhar, passear ou ir até o médico. Outro dia, em pleno horário de pico, o trem demorou mais […]
Por Jéssica Moreira
07|02|2017
Alterado em 07|02|2017
Crédito: Marina Lopes
Minha relação com os trens é de amor e ódio. Odeio precisar dele em minha vida, mas impossível viver sem. Moro em Perus, região noroeste de São Paulo, e preciso passar pelos trilhos da Linha 7-Rubi para trabalhar, passear ou ir até o médico.
Outro dia, em pleno horário de pico, o trem demorou mais do que de costume na Estação da Luz. Era impossível entrar em um vagão. Então, resolvi matar o tempo com uma paródia de uma de minhas músicas favoritas, “Diário de um Detento”, do grupo de Rap Racionais MC’s:
são paulo, 27 de setembro de 2016, 9h da manhã.
aqui estou, mais um dia,
sob a parada diária da ferrovia.
você não sabe como é ir trabalhar com um trem sem andar.
ventilador velhão ou sem janela,
estraçalha com o trabalhador que nem papel.
na plataforma em pé,
mais um cidadão josé.
pagando a tarifa, 3,80, olha que fita
passa fome, grita.
o marreta chegou.
ele sabe o que eu desejo.
sabe o que eu penso.
o dia tá chuvoso,
o trem tá lento.
vários tentaram sentar, eu também quero.
mas de um a cem, a minha chance é zero
será que o maquinista ouviu minha oração, será?
será que vai sobrar lugá no vagão,
será?
manda um recado lá pro meu patrão:
o trem vai atrasar,
não vou assinar o ponto, não.
ele tá me ligando,
mas pode crer, o encarregado é gente fina.
tirei um dia a menos ou um dia a mais,
sei lá.
tanto faz, os dias são iguais.
abro um livro, vejo a quebrada passar.
mato o tempo pra ele não me matar.
cada passageiro, uma mãe, uma crença.
cada parada uma sentença.
cada sentença uma estação,
cheias de gentes, tretas,
empurra-empurra no vão.
misture bem essa química.
pronto, eis um típico trenzão.
Lamentos na plataforma,
nas portas, no chão.
mas eu conheço o sistema, meu irmão,
trem à frente na próxima estação.
Ratátátá
preciso evitar que um safado abuse uma mulher sem ninguém olhar.
Tic tac ainda é 9h40.
O relógio da CPTM anda em câmera lenta. Ratátátá,
mais uma multidão vai passar,
com gente no trem,
apressada, católica, lendo jornal, satisfeita, hipócrita.
Mas o trem não chega, enquanto eles vão pro centro.
Olhando pra cá, curiosos, é lógico.
Não, não é não, a galera da quebrada não é zoológico.
minha vida não tem tanto valor,
quanto a empreiteira do governador.
hoje tá difícil, não saiu o trem.
não há ciclovia, nem uber pra ninguém.
alguns companheiros têm a fúria na lata,
não suportam o tédio,
acabam com a vidraça.
graças a deus falta só uma hora,
tem uma casa à espera e comida gelada
mas no primeiro vagão deu ruim,
treta entre marretas.
qual que foi? quem sabe? não conta.
o guardinha ia levar mercadoria de ponta a ponta.
nada deixa alguém mais doente
que um trem decadente.
já ouviu falar de lucífer?
que veio do inferno com moral
um dia… na CPTM não… ele é só mais um
comendo balas fini, amendoim um real…
aqui tem mana de perus,
vila Clarice, Jaraguá,
Pirituba, Franco, Morato
passageira sangue bom tem moral no vagão. mas pro Estado é só um número,
mais nada.
Nove vagões,
num sei quantas mil pessoas.
que gastam mais que trezentos reais por mês.
na última parada,
um mano deu em cima de mim.
veio aí. pagando de gatão,
ele xinga, ele abusa com uma nove milímetros embaixo da blusa.
se as mina tromba esse fulano,
não tem pá, não tem pum,
machistas não passam,
não fica um
anoiteceu sem trem,
ainda vinte e sete de setembro
nada funcionando,
plataforma estrumbando
eu senti um calafrio
não era do vento, não era do frio
suicídios na linha tem quase todo dia
paciência é o que todo passageiro tenta conseguir a paz,
mesmo que a cabeça num guenta
Fumaça na janela,
tem fogo na carga elétrica
Fudeu, foi além, se pá.
Geral saiu descendo, na linha foi andar. Mulheres, homens,
crianças e idosos
não sabiam o que estava por vir
Trem desgovernado
Era a brecha que o sistema queria,
morrer por culpa própria,
“a CPTM nao devia”.
Depende do sim ou não de um só assessor.
Que prefere ser neutro pelo telefone.
Ratatatá, caviar e champanhe.
Alckmin foi almoçar,
que se foda toda a gente!
cachorros assassinos,
trem exterminador,
quem mata a multidão,
ganha medalha de prêmio!
O passageiro é descartável em São Paulo.
Nois é sardinha, na caixinha de fósforo.
trem?
tem aqui tudo que o sistema não quis.
esconde o que a novela não diz.
Ratatatá!
Brahma, coca ou água.
O Senhor é meu pastor…
perdoe o que o marreta fez
Matou a fome da menina
que lia no assoalho o jornal do dia passado. Vão pegar seu salgadinho e pisotear até uns cem.
Rátátátá,
Alckmin e sua gangue vão nadar numa piscina de sangue.
mas quem vai acreditar no meu depoimento? Dia 27 de setembro, diário de uma detenta da CPTM.
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A paródia foi completamente inspirada na música “Diário de um Detento, dos Racionais Mc’s e a partir da mvivência diária da autora nos trens da CPTM. Ela demorei uma hora e quarenta minutos para escrever, mesmo tempo que ficou esperando para entrar em um vagão.
Jéssica Moreira, é jornalista, integrante do Nós, Mulheres da Periferia e moradora de Perus, zona noroeste de São Paulo.