Ser mãe e universitária é um direito, defende Daniele moradora de Taboão da Serra
Me chamo Daniele, mas todo mundo me conhece como Daniê. Estudante da UFABC desde 2011, no curso de Planejamento Territorial. Tenho 29 anos e sou mãe da fofurinha do Fernando, que mês que vem completa 4. Filha de casamento interracial, pai branco e mãe negra. Não tive uma infância pobre, mas sempre morei em bairro […]
Por Redação
21|08|2016
Alterado em 21|08|2016
Me chamo Daniele, mas todo mundo me conhece como Daniê. Estudante da UFABC desde 2011, no curso de Planejamento Territorial. Tenho 29 anos e sou mãe da fofurinha do Fernando, que mês que vem completa 4.
Filha de casamento interracial, pai branco e mãe negra. Não tive uma infância pobre, mas sempre morei em bairro de periferia. Sou cria do Taboão, no extremo norte de São Bernardo do Campo. Último bairro da cidade, fazendo divisa com a zona sul de São Paulo, uma vila na várzea de algum córrego que deságua no ribeirão dos meninos. Da janela do meu quarto dá pra sentir o cheiro podre de esgoto e vislumbrar a favela que segue à beira do riozinho.
Não cheguei a passar nenhum tipo de privação na infância, meu pai sempre nos garantiu uma vida razoável, e minha mãe, dona de casa, cuidava de mim e das minhas duas irmãs em período integral. O que nos destruiu mesmo foi a violência doméstica e o racismo, que ainda são assuntos muito delicados pra mim e pra essas três mulheres que são minha família.
Uma das coisas mais duras para uma pessoa negra é ter familiares diretos brancos. E eu tenho muitos. Brancos. Olhos Claros. Enquanto isso, minha família se privava de algumas coisas, para que pudéssemos ter nossa casa própria. Moramos durante um ano na casa de um desses parentes, para não gastar com aluguel. Minha mãe acabou engravidando da minha irmã mais nova e foi um tormento para todos nós.
Um dia grávida, minha mãe ficou muito doente com bronquite, e passou alguns vários dias na UTI. Eu tinha 4 anos, e minha irmã 7. Ficamos aos cuidados de uma parente do meu pai, a dona da casa. Daí vem minha primeira lembrança de racismo muito forte: nós duas tínhamos cabelos crespos longos, que minha mãe amava trançar e pentear com o maior carinho. Essa senhora (branca e de olhos claros), pegou uma tesoura de cozinha e cortou nossos cabelos no toco, torto, com a desculpa de que entupíamos seus ralos. Eu nunca superei este dia. E acho que nunca vou superar. Essas feridas são profundas, e parecem que vão sangrar pra sempre.
Quando eu tinha 12 anos, finalmente meus pais se divorciaram, e por um tempo eu cortei laços com meu pai e sua família. Tive dificuldades de adaptação no ensino médio, passávamos muitas dificuldades financeiras sem meu pai, e por muitas vezes andei do Taboão até o centro da cidade pra poder estudar na ETE (Escola Técnica Estadual) Lauro Gomes. Repeti dois anos por faltas, tive uma adolescência rebelde e bebia quase todos os dias, pra ver se a vida doía menos.
Terminei o segundo grau em uma turma de supletivo, que tinha o ensino tão ruim e sem professores, que quem dava aula de matemática e física pra turma, era eu. Tinha o sonho de ser Urbanista. Em 2008 ingressei em Arquitetura e Urbanismo em uma universidade particular pelo ProUni. “Ufa, sonho realizado”
Eu era a única negra do curso, a única pobre. Três horas para ir, duas para voltar, depois de trabalhar seis horas por dia em uma empresa de telemarketing que arrancava minha dignidade. A única refeição do dia era marmita do almoço, porque comer na facul era caro demais, e meu salário ia todo para o material. Do meio dia a uma da manhã sem comer.
Meu bairro era muito perigoso, quem me acompanhava do ponto até em casa era um moço que trabalhava na boca ali das redondezas. Ele começou a me acompanhar porque um dia disse que tinha medo que alguém me tomasse meus materiais de desenho que tinham custado muito suor. Ele me sorriu e disse: “ Vou te acompanhar, acho muito bonito estudar”. Minha mãe ia me buscar também.
“Consegui um estágio, ufa”. Demitida seis meses depois, por não ter condições de pagar um curso de CAD particular. As pessoas faziam maquetes lindas, e eu carregava as minhas em caixas de sapato no busão. Um dia o motorista arrancou o ônibus antes de eu descer, e eu caí por cima de uma das maquetes. Ela se despedaçou. Coloquei na cabeça que ser arquiteta não era pra mim, não. Gente pobre tem que se contentar em comer.
Fiquei durante alguns anos pensando no que faria. Apareceu a UFABC em 2011. Decidi que faria Políticas Publicas e que de alguma maneira usaria isso como trampolim pra me especializar em algum momento em Urbanismo. Era perto de casa, pública. Um sonho.
No fim de 2011, soube que poderia ser criado o Bacharel em Planejamento Territorial. Era um MILAGRE.Um Milagre! Lembro de começar a chorar de felicidade no laboratório da universidade. A vida estava me encaminhando certo.
No começo de 2012 descobri minha gravidez. Parei os estudos. Voltei diversas vezes e parei outras tantas. A desesperança me tomou. Um espaço predominantemente branco, já não era lugar pra mim sendo negra e aluna de escola pública. Pra mim, sendo mãe, era menos ainda!
Quando meu filho completou dois anos, eu retomei o curso de forma mais regular. O pai dele então resolveu que deveria pedir um exame de DNA. O Exame deu negativo. Meu filho ficou sem pensão, sem convênio e sem nenhum amparo. O suposto pai retirou sua presença e todos os benefícios, e, literalmente, virou as costas pro pequeno. Sem visitas, sem ligações, sem nada. Pra ele, somente o laço sanguíneo era o que importava. Fernando sofre fortemente as consequências desse abandono. Consequências em seu desenvolvimento, inclusive.
Quem era o pai, então? Se me relacionei por 7 anos com esse cara? Fui vítima de um estupro enquanto estava bêbada, em uma viagem com amigos. Como não me lembrava direito o que havia acontecido, e nem tinha certeza do que havia acontecido, tive vergonha de ir à delegacia, e achei que pelo estado que estava, poderia ter imaginado. Não foi imaginação. Me culpo todos os dias por ter bebido. Sei que a culpa não é minha. Mas não tem como controlar coisas que a gente sente.
O que fazer? Ano passado tive a notícia de que meu filho não teria mais direito à escola integral gratuita. Pensei em sair da UFABC novamente. Decidi, então, que iria ocupar este espaço branco e pra pessoas sem filhos.
Decidi que passaria as tardes com o Fernando estudando. Que ia invadir o RU sim com uma criança, e que as pessoas teriam que aceitá-lo ali, sim. No começo, houve resistência da universidade. Como eu usaria os laboratórios específicos com uma criança?
Uma professora me cedeu sua sala e seu computador, e eu levei um colchão, onde meu pequeno dorme, enquanto uso o computador pra softwares específicos do meu curso. As vezes invado os laboratórios com ele sim, porque EU TENHO DIREITO A ESTES ESPAÇOS tanto quanto todo mundo.
Hoje meus colegas recebem ele muito bem, e meu filho é uma criança muito carinhosa, que distribui abraços pelo campus. Vive ganhando mimos e, surpreendentemente, muitas pessoas se disponibilizam pra ajudar. Ainda me faltam muitos direitos enquanto mãe, enquanto negra, mas a resistência tem sido a chave pra não esmurecer.
Se eu não me formar, o que resta pra mim e para meu filho? Não estou aqui por caridade. Estou aqui porque é meu direito. SIGAMOS NA LUTA!
Daniele Vieira, 29, estudante de Estudante de Planejamento Territorial da UFABC desde 2011.