De Franca para Dublin “A exploração das babás ainda persiste na Irlanda e no mundo”, por Adelita Monteiro
Adelita Monteiro, 36 anos, mora em Franca (SP), é psicóloga e doula. Foi au pair na Irlanda e fundadora do da associação que luta pelos direitos das au pairs no país, onde morou até 2014. Este relato faz parte do especial “Da periferia de SP para a Irlanda: desafios das babás brasileiras em Dublin” Quando cheguei na […]
Por Redação
01|03|2016
Alterado em 01|03|2016
Adelita Monteiro, 36 anos, mora em Franca (SP), é psicóloga e doula. Foi au pair na Irlanda e fundadora do da associação que luta pelos direitos das au pairs no país, onde morou até 2014.
Este relato faz parte do especial “Da periferia de SP para a Irlanda: desafios das babás brasileiras em Dublin”
Quando cheguei na Irlanda, em 2007, a crise já estava em seu curso e na falta de opções de emprego minha única alternativa foi ser Au pair. Quando eu comecei o trabalho eu não sabia o que uma Au pair deveria fazer. Eu estava desesperada e com a falta de escolhas, estava disposta a aceitar qualquer tipo de exigência ou condições de trabalho. Eu me cadastrei no site greataupair e uma família em Howth (Grande Dublin) entrou em contato comigo. Eu consegui o “trabalho”, mas não havia nenhum contrato, tudo foi acordado verbalmente. Inicialmente, foi combinado que eu trabalharia um sábado por mês e que eu receberia o pagamento extra para baby-sitting. Eu trabalhava todos os sábados e não recebia qualquer extra para baby-sitting (babá). Eu costumava lavar e passar toda a roupa da família, e me lembro da mãe dizendo “que ótimo”, pois antes ela tinha de pagar extra para passar as camisas de seu marido. Eu recebia 80 euros e trabalhava uma média de 32 horas semanais.
Crédito: arquivo pessoal
No dia de São Patrício (Saint Patrick’s Day – padroeiro do país) eu pedi uma carona ao pai das crianças que eu cuidava para ir até o centro. Antes de entrar no carro ele me perguntou: você fez suas tarefas? Eu disse que não, como era um feriado, e ele disse pra eu voltar e passar aspirador em toda a casa. Quando saíram de férias por uma semana, fiquei sem aquecimento, sem água quente e eu não pude tomar banho. Ela ficou com raiva de mim algumas vezes, gritou comigo e me chamou de estúpida e me pediu para ir embora, depois de alguns minutos ela pedia desculpas e dizia que suas filhas me adoravam e me pedia para ficar. Uma manhã bem cedo ela invadiu meu quarto gritando que eu era inútil e não fazia nada. Naquela manhã de segunda-feira eu não fui para a escola, eu fiquei passando roupas até 14h e, à tarde, levei as crianças para a escola de música na cidade até 18h da noite. Naquela noite, eu informei a ela que eu iria embora, vi que ela estava com raiva e no dia seguinte ela me insultou e me ameaçou e não me pagou a semana anterior, e nem aquele dia de trabalho. Essa experiência não foi de todo ruim comparada a outras experiências tristes de abuso e exploração que eu vi nos anos seguintes em que fiquei na Irlanda.
Trabalhei poucos meses pra essa família, e como acontece com muitas Au pairs, após o desentendimento com a mãe das crianças, saí de lá chateada, humilhada e sem receber o pagamento que me era devido. Aquela experiência me machucou e senti que a coisa não estava certa e que algo precisava ser feito.
Em 2011, colaborei voluntariamente com o Migrant Rights Centre em uma pesquisa que estava sendo feita com Au pairs sobre suas experiências e condições de trabalho. O relatório dessa pesquisa foi divulgado em 2012 e intitulado: “Aupairs – Part of the Family?” (Aupairs – Parte da família?). Os dados levantados foram alarmantes: 36% das au pairs pesquisadas relataram ser exploradas. Os resultados sugerem que muitas outras estão passando por exploração, porém sem reconhecer que estão nesta situação. Quatro entrevistadas revelaram situações de extrema exploração onde os seus documentos foram retidos, seus movimentos monitorados e sua liberdade pessoal era restrita. Em todos os casos, as aupairs não receberam suporte algum, sentiram sua segurança ameaçada, e se encontraram em uma situação ofensiva e solitária.
Em 2013, montamos o grupo ARAI (Aupair Rights Association Ireland), Associação Irlandade de Direitos das au Pairs, a fim de conectar as au pairs trabalhando na Irlanda, e oferecer suporte e informação àquelas que enfrentavam situações de exploração. Nesse mesmo ano fui contratada para cobrir licença maternidade como coordenadora do DWAG (Domestic Workers Action Group), de trabalhadoras domésticas na Irlanda, um grupo bastante organizado e politizado, que já existia desde 2003. Lidando com as questões e lutas desse grupo, percebi que a natureza do trabalho oferecido e os problemas eram exatamente os mesmo enfrentados pelas au pairs. Porém, o trabalho doméstico é um ofício reconhecido por lei e protegido pelos direitos trabalhistas da Irlanda, ao contrário das au pairs, que não são consideradas trabalhadoras, e muito menos trabalhadoras domésticas.
Mas o que são elas então?
Se elas atuam no ambiente doméstico, se elas cuidam das crianças, se fazem tarefas domésticas, se têm horário de entrada e saída, se recebem um salário (simbólico, é claro!), se são subordinadas a alguém, se são esses os fatores que caracterizam o ‘trabalho’, então porque as au pairs não são consideradas trabalhadoras? Ou mais especificamente trabalhadoras domésticas?
Onde quer que estejam, as au pairs estão fazendo o ‘trabalho’ que precisa ser feito, elas estão cuidando de crianças, elas têm horários, tarefas e responsabilidades, e precisam de formação e qualificações, a fim de prestar assistência qualificada e segura à infância. No entanto, para o público em geral, o fato de nomeá-las “au pair” automaticamente as isenta de seus direitos, tais como férias, feriados, licença por motivos de saúde, dentre outros. Há também um novo termo chamado de “Au pair live out”, que é nada menos do que uma trabalhadora doméstica, mas por ser chamada Au Pair a família automaticamente se dá ao “direito” de oferecer salários de 3 euros por hora, em oposição ao mínimo requerido de € 9,15 / hora.
Infelizmente, com as demandas do mundo moderno (tal como a necessidade da mulher voltar ao mercado de trabalho para complementar a renda), com a falta de apoio dos governos em educação infantil, com os altos custos de creches e escolas, fica evidente que a au pair tornou-se uma opção barata e muito atraente. Disfarçada de ‘irmã’ mais velha da família, ela faz todo o trabalho doméstico e de cuidado recebendo menos de ¼ do salário mínimo. Em meio a uma imensa crise financeira, as ofertas de trabalho de au pair continuam abundantes.
O problema é (e voltamos para a mesma questão levantada por todos os representantes de diversos países nesta audiência): Trabalho Doméstico é um trabalho de baixo status e as pessoas que prestam cuidados (que são na sua maioria mulheres) em casa ou ambientes privados não são consideradas trabalhadoras. Na Irlanda, como em muitos outros países, as cuidadoras empregadas em casas particulares como empregadas domésticas são classificadas como trabalhadoras não qualificadas e estão na base inferior do ranking profissional (Lynch, 2007). E o que dizer das Au pairs? Nem mesmo na base inferior deste ranking elas estão classificadas, pois o que eles estão fazendo não é considerado trabalho (assim como há alguns anos o trabalho doméstico e de cuidados não era considerado ‘trabalho’).
Au Pairs tornaram-se sinônimo de uma fonte barata de assistência à infância, o trabalho doméstico, e cada vez mais, de outras formas de trabalho com cuidado. O padrão de exploração, negligência e precariedade vivida por Au Pairs é um assunto de grande preocupação. A ARAI acredita que o que Au pairs estão fazendo é trabalho doméstico de grande valia para as famílias e consequentemente para o desenvolvimento econômico e elas devem ser chamadas ‘trabalhadoras’ e devem ter acesso a todas as leis de emprego, assim como qualquer outro trabalhador. Regulamentos e diretrizes que regem os programas au pair em todo o mundo são úteis para proteger os direitos das Au pairs e para garantir a segurança das crianças. No entanto, acreditamos que estes programas estão sendo usados pelos governos como uma forma de ‘poupar’ nos custos de assistência à infância às custas de trabalhadoras vulneráveis.
Apesar de longas batalhas travadas e vencidas pelos direitos dos trabalhadores domésticos, novas formas de exploração de trabalhadores vulneráveis estão emergindo e os governos precisam agir rapidamente para resolver este problema. Eles precisam garantir caminhos legais para tornar possível a entrada de trabalhadoras domésticas nos países desenvolvidos, pois é óbvio que há uma demanda por esse trabalho tão necessário e valioso. Isso exigirá o estabelecimento de novas políticas de imigração e permissão de trabalho. Também será preciso executar uma campanha de sensibilização para informar o público de que, se a família contrata uma au pair que passa a executar uma gama de serviços domésticos, a família se torna de fato uma entidade patronal e devem respeitar as leis trabalhistas do país.