Entre rios e bicas: a trajetória das lavadeiras brasileiras 

Atuantes desde o Brasil colonial, as lavadeiras são exemplos de memória, tradição e resistência

Por Beatriz de Oliveira

12|12|2025

Alterado em 12|12|2025

Sobre a cabeça, equilibra uma bacia de roupas. Nas mãos, a habilidade de esfregar, enxaguar e torcer. Na voz, tem de cor os cânticos para passar o tempo e aliviar o cansaço. Nos pés, estão gravados os caminhos de quem circula pela cidade para lavar a roupa alheia e sustentar a família. Figuras constantes no cotidiano do Brasil colonial, as lavadeiras ecoam tradições que permanecem vivas até hoje.

Presentes nas bicas, chafarizes e rios da cidade durante o período colonial, as lavadeiras eram mulheres escravizadas ou escravizadas de ganho – que entregavam parte de seus rendimentos para seus donos. O serviço era muito procurado, incluindo anúncios em jornais para “aluguel” de lavadeiras. Era comum também que acumulassem as funções de passadeiras e costureiras.

Diferentemente de boa parte das mulheres escravizadas no meio urbano que trabalhavam dentro das casas dos senhores como cozinheiras, amas de leite e mucamas, as lavadeiras circulavam pela cidade para realizar seu ofício, já que a grande maioria das residências não dispunha de água encanada ou poço.

Passavam de um ponto a outro, com bacias de roupa das elites na cabeça. De acordo com Jéssica Marroques, na dissertação de mestrado “Corre um rio de lembranças nas encantadas lavadeiras de Almenara”: “as famílias ricas não economizavam nas roupas que usavam diariamente, tendo também uma variedade de outros panos e peças do cotidiano que precisavam ser lavadas, remendadas e alvejadas constantemente, como toalhas, roupas de cama, peças íntimas, lenços, guardanapos, ornamentos para a casa como caminhos de mesa, dentre outros”. 

Sua presença nas ruas chamava a atenção de viajantes no Brasil do século XIX, o que fez com que fossem temas de pinturas. É o caso do pintor francês Jean-Baptiste Debret que registrou essas mulheres em suas obras. Sobre elas escreveu: “assistimos todos os dias (…) as negras reunidas na beira do mesmo e límpido riacho, ocupadas a virar a lixívia ao ar livre, perto daquelas que ensaboam a roupa, mas o fazem de uma maneira incrivelmente econômica, empregando para tanto somente plantas saponáceas, como a folha da babosa”.

“Lavadeiras Rio das Laranjeiras” – Jean Baptiste Debret. 1826 – Rio de Janeiro. Aquarela

© Pinacoteca do Estado de São Paulo

A voz das lavadeiras 

Com o fim do tráfico de escravizados e a abolição da escravatura, lavar roupas passou a ser o ganha pão de mulheres negras e pobres, ainda que com baixos pagamentos. Em contraponto ao salário, o trabalho era árduo: envolvia fazer o sabão, ensaboar, esfregar, bater, torcer, estender as roupas, passar e engomar.

Dadas as várias etapas de trabalho, era comum ver as mulheres atuando em coletivo. Junto a elas, ficavam seus filhos. A profissão de lavadeira se tornou viável para muitas delas por ter a possibilidade de cuidar de suas crias enquanto trabalhavam.

Entre lavar e estender as roupas, as trabalhadoras entoavam cantigas. “Essas mulheres, enquanto realizavam a lavagem das roupas, também criavam rimas, como forma de aliviar o trabalho extenuante. Utilizando o local de trabalho, em torno das fontes de água, enquanto espaço de sociabilidade, entretenimento, lazer e expressão”, escreve Jéssica Marroques.

A partir dessa tradição, surgiram corais e grupos musicais de lavadeiras pelo país, que entoam cantos passados de geração em geração. É o caso do Coral das Lavadeiras de Almenara, que existe desde 1991 em Minas Gerais; e do grupo Ganhadeiras de Itapuã, em atividade desde 2004 na Bahia.

Ô lavadeira que lava no areal

Ô lavadeira que lava no areal

Faz sol meu Deus pra lavadeira lavar

Faz sol meu Deus pra lavadeira lavar

– Canto da Lavadeira (Domínio Público)

Entre lavar e reivindicar direitos 

As lavadeiras eram vistas pela sociedade em geral como mulheres violentas e desordeiras. A pesquisadora Leda Maria Bazzo, no artigo “Trabalhadoras Lavadeiras e a Literatura Científica – Séculos XIX, XX e XXI”, explica que essas trabalhadoras aparecem na literatura do final do século XIX como as “principais provedoras dos filhos, com relativa autonomia dentro dos limites da opressão”. Além disso, usavam roupas consideradas muito decotadas, “estando assim à frente das outras mulheres, na entrada do mundo moderno”. 

Ao circular pelo território, também reivindicavam direitos. “As trabalhadoras lavadeiras nesse período, levaram a alcunha de mulheres valentes ao desafiarem a ordem pública e enfrentarem sozinhas regras sociais nas quais eram oprimidas, buscavam estabelecer alternativas, em seu cotidiano, que lhes permitissem ir além da sua sobrevivência”, pontua.

Entre o fim do século XIX e início do século XX, passou a vigorar no país uma série de políticas higienistas, que tinham o objetivo de “limpar a cidade”. Nesse contexto, o ato de lavar roupas em rios e bicas passou a ser visto como desordem. Assim, as primeiras lavanderias públicas foram construídas a partir de 1950.

Também nesse período, as lavadeiras passaram a se organizar politicamente. Junto ao movimento de mulheres negras e partidos de esquerda, passaram a reivindicar aposentadoria e direitos trabalhistas.

Outra pauta comum eram os acidentes de trabalho, “que envolviam quedas, queimaduras durante as fervuras das roupas para tirar manchas, além de alergias e micoses decorrentes dos produtos químicos usados no lavar e passar roupas”, explica Leda Maria Bazzo.

Apesar da invisibilidade, seguem vivas 

Ainda hoje, mulheres ganham o sustento da família atuando como lavadeiras. Para muitas delas, os rios e bicas, deram lugar às lavanderias comunitárias. Mas a prática de lavar as roupas na mão permanece. Segundo reportagem de 2019 do g1, na Bahia, os preços cobrados pelas lavadeiras variam entre R$ 50 para uma trouxa de até 10 peças e R$ 74 para até 60 roupas.

Dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que 68,1% da população tem máquina de lavar roupas em casa. Em contraponto, cerca de 40% das pessoas pretas e pardas não têm o eletrodoméstico. A região nordeste é a com menor percentual de residências com máquina de lavar: apenas 37,1%. Esse cenário dá a dimensão acerca do espaço que ainda existe para a atuação das lavadeiras.

A profissão é reconhecida pelo Ministério do Trabalho, sob o código CBO 5164: lavadores e passadores de roupa, à mão. O artigo “A memória motora ou ferida de um grupo de trabalhadoras lavadeiras de Salvador- Bahia”, de Leda Maria Bazzo e José Roberto Severino, conta que na cidade de Salvador (BA), há seis lavanderias comunitárias, com  60 mulheres lavadeiras manuais cadastradas pelo estado. “Todavia, sabemos que esse quantitativo é bem maior, pois existe a oferta desse trabalho realizado de forma individual, ocorrendo na própria casa da lavadeira”, pontuam. 

Os autores descrevem o trabalho das mulheres nas lavanderias com cansativo, se estendendo das 7h às 17h nas lavanderias comunitárias. “O ciclo da lavagem de roupas é extenuante, as trabalhadoras ficam oito horas ou mais em pé (entre lavar e passar roupas)”.

Com origens escravocratas, assim como o trabalho doméstico de modo geral, a atuação das lavadeiras segue sendo feita por mulheres negras e pobres, que carregam a desvalorização da profissão e o peso de limpar a sujeira alheia.