Criar crianças negras felizes é revolução
Nossas crianças têm o direito de se reconhecer também nas vitórias, nos risos, nos bailes, nas invenções, nas danças e nas conquistas
27|11|2025
- Alterado em 27|11|2025
Por Sarah Carolinna
Quase sempre, as crianças negras são apresentadas à sua história a partir da dor: às vezes porque presenciam ou vivem situações de racismo que obrigam os pais a explicar o que não deveria ser explicado tão cedo; outras vezes, porque na escola o negro, enquanto sujeito histórico e ser social, aparece apenas quando se fala de escravização.
Seja qual for o caminho, o primeiro encontro costuma ser atravessado pela violência, pela vergonha e pelo medo de pertencer (aqui entre nós: quem, em sã consciência, há de querer herdar marginalização e preconceito?). E é aí que, sem perceber, a gente vai ensinando às crianças que ser negro é estar sempre em luta, sempre resistindo, que a negritude está ligada ao sofrimento e à violência.
Então chega o mês da Consciência Negra e a gente, mãe de filho preto, respira fundo de esperança: “nossa história será contada, afinal”. O golpe é doloroso e vem logo nas primeiras sugestões de atividades da escola. A lógica de relembrar a história de dor se repete e até se intensifica.
As atividades são costurar bonecas abayomi, porque supostamente as crianças escravizadas não tinham brinquedos (avisa lá que essa história é “papo furado”, viu gente?); aprender músicas que lembram navios negreiros e castigos na senzala; desenhar, pintar e ler mais uma vez sobre como fomos vítimas de um genocídio, tudo com a justificativa de “ensinar a história”. É importante lembrar, claro, mas também é preciso perguntar: quem sustenta essa lembrança e a que preço?
Porque quando a escola escolhe falar da negritude só pela dor, ela também escolhe o que a criança negra vai sentir sobre si mesma… E isso é sério. As memórias de sofrimento são reais, mas não podem ser o único espelho. Nossas crianças têm o direito de se reconhecer também nas vitórias, nos risos, nos bailes, nas invenções, nas danças e nas conquistas. Novembro não precisa ser o mês da ferida: pode e deve ser o mês do brilho, da festa, do tambor, do orgulho e da cura.
Se outros não estão fazendo, façamos nós, pois é em família, em casa, que retomamos o controle dessa narrativa, mesmo com pequenas ações, pois é a partir delas que construímos grandes pertencimentos.
Fazemos isso ao ler livros com protagonistas negros vivendo felizes, ao mostrar contribuições científicas negras para a humanidade, ao preparar uma receita de família enquanto se conta de onde veio aquele tempero. Passar tempo de qualidade enquanto ensinamos uma dança, ou trançando o cabelo é um rito de cuidado. Nossa felicidade será nosso maior ato de resistência.
Famílias brancas também precisam participar, não como espectadoras, mas como branquitude consciente: substituindo narrativas estereotipadas por histórias afirmativas, apresentando referências negras diversas, conversando sobre privilégios e convidando as crianças a celebrarem a cultura negra com respeito e não com apropriação ou caricatura. Em novembro (e o ano todo), educar crianças brancas é parte essencial da luta antirracista.
É hora de reapresentar a negritude às crianças a partir da potência. Falar de Palmares não apenas pela morte de Zumbi, mas de um povo que se organizou, resistiu e criou um modelo de liberdade muito antes da abolição. Falar de África antes das correntes: das civilizações milenares, da ciência, da filosofia, da arte. Falar de negritude é falar de beleza, de moda, de culinária, de ritmo, de fé, de futuro. É celebrar raízes, não cicatrizes.
Que nossas crianças vejam que ser negro é lindo e aprendam que celebrar também é resistir, porque alegria é ferramenta de luta e nosso sorriso também é político. Que neste mês da Consciência Negra a gente ensine, com todas as cores e sons possíveis, que as crianças negras têm o direito de ser felizes, de brincar, de sonhar e de se ver inteiras. E que as crianças brancas aprendam, desde cedo, que reconhecer, valorizar e respeitar a negritude é parte do mundo que elas também precisam construir.
Sarah Carolinna Mãe de três filhos pretos, pedagoga, historiadora e educadora racial especialista em cultura e história afro-brasileira e africana. Ativista da maternagem racializada e defensora do letramento racial na infância.
Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.
Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.
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