O que muda quando uma favela ganha um CEP?

Mais do que um detalhe do endereço, o CEP permite que o Estado monitore territórios, planeje políticas públicas e reconheça demandas sociais

Por Amanda Stabile

04|11|2025

Alterado em 04|11|2025

O CEP (Código de Endereçamento Postal) pode parecer apenas mais um detalhe do endereço. Uma formalidade para preencher formulários ou receber uma encomenda. Mas ele cumpre uma função mais ampla: é a informação que permite que o Estado localize pessoas e territórios. Ter um CEP significa aparecer nos sistemas que organizam saúde, educação, assistência social e serviços de emergência. Sem esse código, um endereço pode não ser reconhecido administrativamente — e, portanto, não ser atendido.

Por mais de 50 anos, porém, milhares de favelas apareciam nos mapas apenas como áreas delimitadas, mas sem esse reconhecimento oficial. A situação começou a mudar em 8 de outubro de 2025, quando o Governo Federal concluiu a primeira etapa do programa CEP Para Todos, atribuindo um código postal às 12.348 comunidades mapeadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2022.

A medida alcança 16,3 milhões de pessoas em 656 municípios brasileiros. A maior parte dessa população é negra (72,9%). O programa é uma iniciativa conjunta do Ministério das Cidades, por meio da Secretaria Nacional de Periferias, do Ministério das Comunicações, com os Correios, e do IBGE, e foi lançado em novembro de 2024 dentro do Programa Periferia Viva.

A meta inicial era universalizar o CEP em favelas até o final de 2026, mas o resultado foi alcançado com mais de um ano de antecedência. Com a conclusão da fase de atribuição de um CEP geral para cada comunidade, o programa segue agora para o mapeamento interno dessas áreas. Essa etapa inclui o levantamento de ruas, becos e vielas, para que cada logradouro receba um CEP próprio.

O trabalho começará pelos 59 territórios do Periferia Viva, que reúnem mais de 300 favelas já atendidas por outras políticas urbanas. A fase final prevê a instalação de unidades de atendimento dos Correios em 100 favelas, distribuídas pelo país. A escolha dessas localidades levará em conta a viabilidade de implantação e infraestrutura existente.

A origem do CEP no Brasil

De acordo com o artigo Atlas dos Setores Postais: uma nova geografia a serviço da empresa, de Francisco Aranha (1997), o Código de Endereçamento Postal (CEP) foi criado pelos Correios em 1971 como parte da modernização do serviço postal. A ideia era organizar e agilizar a entrega das cartas, que começavam a ser separadas com apoio de máquinas.

Com o tempo, porém, o CEP passou a ter um papel maior. O estudo mostra que o código também começou a ser usado para mapear e identificar áreas da cidade em bases de dados públicas e privadas. Como o CEP pode ser conectado a sistemas de informação geográfica, ele passou a servir de referência para órgãos públicos no planejamento de serviços e políticas, como localização de escolas, unidades de saúde e rotas de atendimento.

Mas, à época, o CEP não foi pensado para abranger todas as áreas urbanas. O sistema postal se baseava na malha urbana formal, registrada em cadastros municipais. Favelas, loteamentos informais e ocupações urbanas não apareciam nesses registros, porque não eram reconhecidos como parte “formal” da cidade.

É por isso que, mesmo após a criação do CEP, grande parte das favelas permaneceu sem endereços oficiais por décadas. A inclusão dessas áreas em políticas públicas só começou a ser estruturada a partir dos anos 2000, com marcos como.

2001 — Estatuto da Cidade: reconhece a cidade real como referência de planejamento, incluindo áreas informais;

2003 — Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS): passa a considerar favelas como parte legítima da política habitacional;

2007 — PAC Urbanização de Favelas: primeira política federal de grande escala para urbanizar e nominar vias em favelas (mas sem universalização).

Além disso, o IBGE só iniciou o mapeamento de favelas como ‘aglomerados subnormais’ em 1991, consolidando essa metodologia apenas em 2010. Isso evidencia a demora do Estado em reconhecer administrativamente esses territórios — o que, por consequência, retardou a atribuição de CEPs a essas áreas.

Sem CEP, sem registro

Se o CEP surgiu como uma ferramenta para organizar o correio, ele passou a ter outro peso quando pensamos no acesso a direitos. É isso que mostra a pesquisa do urbanista Rafael Urnhani, na dissertação Lugar Incerto: o endereço como infraestrutura urbana e social (2021). Para ele, o endereço não serve apenas para localizar uma casa: ele funciona como um elemento que permite que uma pessoa ou comunidade seja reconhecida pelo Estado.

O estudo aponta que, durante décadas, muitas favelas simplesmente não apareciam nos cadastros oficiais, porque suas ruas não tinham nome, número ou código postal. Nesses casos, moradores ficavam fora dos sistemas que organizam serviços públicos, como saúde, educação e assistência social. Segundo o autor, essas áreas eram tratadas como “lugares incertos”, expressão usada em documentos oficiais quando não é possível registrar um endereço.

“Se os lugares incertos […] estão fora do alcance dos oficiais de justiça, de igual maneira estão também fora do alcance dos agentes comunitários de saúde, assistentes sociais, médicos socorristas, carteiros, entregadores e serviços variados prestados por aplicativos”, explica.

Na prática, isso significava que, embora o Estado soubesse da existência dessas comunidades, elas não eram incluídas nos sistemas que permitem planejar atendimentos e ações públicas. Como consequência, moradores precisavam criar soluções informais, como usar o CEP de uma igreja, de um posto de saúde ou de uma associação de moradores, ou ainda depender de entregadores que já conheciam o território.

Com a formalização do CEP, esse cenário começa a mudar. A comunidade passa a existir nos mapas administrativos. Isso permite:

cadastro em unidades de saúde próximas;

atendimento de agentes comunitários;

inclusão em programas sociais que exigem endereço;

identificação de demandas de infraestrutura;

e planejamento público baseado em dados reais.

Quando a ausência de endereço impede o Estado de salvar vidas

A relação entre endereçamento e saúde pública é analisada no estudo Geocodificando a mortalidade em Belém/PA: estudo exploratório da qualidade dos endereços preenchidos nas declarações de óbito (2015). A pesquisa avaliou a possibilidade de identificar, no território, os locais de residência ou ocorrência de óbitos a partir das informações registradas nas Declarações de Óbito.

Os autores apontam que erros, abreviações e lacunas nos endereços dificultam o processo de geocodificação, etapa necessária para localizar os óbitos na cidade e construir mapas de análise epidemiológica.

A pesquisa identificou que, após procedimentos de padronização e correção dos endereços, foi possível aumentar a taxa de localização dos óbitos no território municipal: “Feitos os ajustes, foi possível ter 85% dos dados localizados e, na maioria dos casos, dentro pelo menos dos limites do bairro”.

Os autores destacam que a geocodificação dos endereços permite que gestores públicos identifiquem áreas com maior concentração de mortes e, a partir disso, planejem ações direcionadas. “Localizar os eventos de mortalidade é uma estratégia fundamental para se entender os padrões de distribuição espacial dessa realidade, informações relevantes para dirigir as ações de saúde pública e outras ligadas a um planejamento urbano que contemple eficazmente as diferenças em seu tecido”, explicam.

Assim, o estudo indica que a qualidade do registro de endereços nas declarações de óbito tem impacto direto na capacidade de mapear a mortalidade no território e, consequentemente, na formulação de políticas de saúde baseadas em dados.

Favelas e Covid-19: dados também ficaram comprometidos

A mesma dificuldade apareceu durante a pandemia de Covid-19, quando pesquisadores analisaram a incidência da doença em favelas do Rio de Janeiro. No artigo Geocodificação digital e a Covid-19: a velha disputa pelo território do atual urbanismo digital nas favelas (2022), os autores identificaram que falhas nas bases de CEP e na correspondência entre CEP e endereço real comprometeram a análise espacial dos casos.

Segundo o estudo, “as falhas na sistematização e coleta de dados não permitem uma análise espacial apurada da Covid-19 em territórios vulneráveis”. O artigo aponta que o uso do CEP como referência territorial não foi suficiente para representar os casos dentro das favelas, devido à ausência de registro oficial de becos, vielas e passagens.

“O urbanismo baseado na dataficação continua reproduzindo um modelo de território em que persevera a invisibilidade da favela e restringe o acesso às políticas de saúde a todos os cidadãos”, apontam os pesquisadores.

Assim, tanto em Belém quanto no Rio, as pesquisas convergem na mesma conclusão empírica: quando o endereço é incompleto, inconsistente ou inexistente, o Estado não consegue localizar eventos de saúde — nem para registrar, nem para agir.

Endereço também é questão de sobrevivência na Amazônia

A ausência de endereçamento não ocorre apenas nas cidades. Na Amazônia, comunidades rurais e ribeirinhas vivem o mesmo problema — e, nesses territórios, a falta de um endereço pode significar risco direto à vida.

Na pesquisa CEP Rural: por uma gestão socioambiental includente na Amazônia (2021), Jonathan Feitosa de Souza mostra que localizar uma casa às margens de um rio, em áreas de floresta ou em povoados distantes, depende muitas vezes de referências informais, como “a casa depois da curva do igarapé” ou “perto da castanheira grande”. Quando há uma emergência, essas referências não garantem precisão nem rapidez.

O autor destaca que “a demora de um serviço de emergência até a sua propriedade é um fato que coloca em risco a vida do morador devido às dificuldades de logística e localização exata do local”.

Ou seja: a ausência de localização formal não é apenas um desafio administrativo — é uma barreira para o socorro, para a chegada de vacinas, para a busca ativa de casos de doenças, para o acompanhamento pré-natal e para qualquer política que dependa de presença territorial do Estado.

A pesquisa documenta situações em que:

Ambulâncias fluviais levam horas a mais procurando uma casa sem referência exata;

Equipes de vacinação retornam ao porto sem conseguir encontrar a família;

Medicamentos e exames não chegam porque não há ponto de entrega definido;

Famílias não conseguem acessar programas sociais por não terem endereço para comprovar residência.

Nessas áreas, ter um CEP rural é tanto sobre acesso a direitos quanto sobre garantir condições mínimas de cuidado e segurança. Para o autor, o endereçamento é parte de uma política socioambiental includente, porque permite que comunidades isoladas sejam vistas, contadas e atendidas — no mapa e na vida real.

Quando o CEP define quem recebe alerta de desastre

A relação entre endereçamento e segurança também aparece nas situações de emergência climática. A pesquisa Sistema de alerta de desastre baseado no CEP: limites e possibilidades (2023) analisou como funciona o envio de alertas de risco da Defesa Civil, feitos por SMS para celulares cadastrados. O sistema utiliza o CEP informado pelo morador para definir quem deve receber avisos sobre enchentes, deslizamentos e outros eventos extremos.

O estudo mostra que esse modelo não alcança de forma igual todos os territórios. Em áreas com assentamentos informais, ocupações e favelas, onde o CEP é inexistente, recente ou compartilhado por grandes extensões, parte da população não consegue se cadastrar para receber os alertas. Segundo a pesquisa:

Os autores identificaram que, em algumas regiões analisadas, cerca de 10% dos domicílios em áreas de risco não tinham CEP compatível com o cadastro, o que significa que o sistema não envia avisos para quem vive em zonas mais suscetíveis a desastres.

O estudo também verifica que, mesmo quando há CEP, a correspondência entre o código e a localização real das residências nem sempre é precisa. Isso acontece porque muitas ruas, vielas e passagens não estão registradas nos mapas oficiais, dificultando a definição exata das áreas que devem receber o alerta. Assim, um aviso pode ser enviado para uma área mais ampla do que o necessário, ou não alcançar de forma pontual quem está em maior risco.

Além dos alertas por SMS, a presença de endereço formal influencia outras etapas da gestão de desastres, como:

mapeamento e monitoramento de áreas suscetíveis a enchentes e deslizamentos;

priorização de obras de contenção e drenagem;

registro de ocorrências e solicitação de ajuda emergencial;

 e o acompanhamento de famílias desalojadas ou desabrigadas.

Sem endereços formais, essas ações ficam mais lentas ou menos precisas. A pesquisa conclui que, em contextos de emergência climática, o CEP funciona como um elemento operacional para que o Estado localize, avise e atenda a população. Quando ele está ausente, incompleto ou não corresponde ao território real, parte da população permanece fora do alcance do alerta — e, portanto, mais exposta ao risco.