Norte: insuficiência de serviços de aborto legal deixa milhões de mulheres desassistidas

As barreiras geográficas, estigmas e omissões dos Estados põem em risco pessoas com útero que têm direito de acessar o procedimento

Por Redação

06|10|2025

Alterado em 06|10|2025

No Norte do Brasil, 40 serviços de aborto legal estão cadastrados na base de dados do DataSUS, mas em apenas 11 destes o atendimento foi confirmado pela Secretaria Estadual de Saúde ou pelo próprio serviço. Entre as unidades cadastradas, duas negaram a realização do procedimento em ligação telefônica feita pela equipe do Mapa do Aborto Legal. Esta é a realidade de acesso à saúde em uma região que concentra sete dos dez municípios com maior taxa de fecundidade entre meninas de 10 a 14 anos no país (com nascidos vivos registrados), como mostrado no projeto Meninas Mães d’AzMina.

Todas essas meninas que se tornaram mães foram vítimas de estupro de vulnerável, como o Código Penal define qualquer relação sexual com menores de 14 anos, independentemente de vínculo afetivo ou suposto consentimento. O acesso ao aborto legal deveria ter sido garantido, mas muitas vezes elas sequer são informadas dessa possibilidade. É o caso de Elza*, moradora da zona rural de Assis Brasil, interior do Acre, que engravidou aos 13 anos. Aos 16 anos, a adolescente foi entrevistada pela equipe d’AzMina que visitou a cidade no primeiro semestre deste ano.

Quando descobriu a gravidez, Elza foi incentivada pelo parceiro a abortar. Ele logo desapareceu e a menina ficou confusa, então acabou começando o pré-natal e não foi informada do direito ao aborto legal. No decorrer das consultas, ela disse que não queria seguir com a gestação, mas foi desencorajada e amedrontada por um enfermeiro, que chegou a dizer que ela poderia morrer se interrompesse a gestação, desconsiderando todos os riscos que a Elza corria ao levar a gravidez a termo.

Hoje, uma menina de Assis Brasil (AC) que precise fazer um aborto legal teria de viajar até Rio Branco, capital acreana, onde está o único serviço cadastrado no CNES (Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde). Uma viagem de aproximadamente 5 horas de carro, mas que chega a 10 horas quando feita de ônibus.

Assis Brasil tem a terceira maior taxa de fecundidade entre meninas de 10 a 14 anos de todo o país. Uiramutã (RR), Itacajá (TO), Jacareacanga (PA), Tocantínia (TO), Goiatins (TO) e Alto Alegre (RR) são os outros seis municípios da região Norte presentes no ranking das dez maiores taxas de fecundidade da faixa etária destacada. Nenhum deles tem serviços de aborto legal.

>> Esta reportagem faz parte do projeto Aborto e Democracia, da Artigo 19 e AzMina, que investiga as barreiras de acesso aos direitos reprodutivos em cada região do país. A série de cinco reportagens (uma por semana) se soma ao novo Mapa do Aborto Legal, atualizado pela Artigo 19, como ferramenta para garantir o aborto legal no Brasil. As matérias foram produzidas em parceria com os veículos feministas Paraíba Feminina, Portal Catarinas e Nós, Mulheres da Periferia.

Capitais também apresentam barreiras ao aborto legal

A dificuldade de conseguir informações se repete também nas capitais do Norte, até mesmo dentro das unidades que realizam o procedimento, como é o caso da Santa Casa do Pará, em Belém. Crissia Cruz, mestre em psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), desenvolveu lá sua pesquisa de mestrado sobre violência sexual e aborto legal. Crissia identificou que entre setenta médicos do corpo clínico, apenas três ou quatro aceitavam atuar com aborto legal. Ou seja, menos de 6% dos profissionais.

A maioria dos médicos alegava objeção de consciência, prevista no Código de Ética Médica. A norma garante o direito de não realizar procedimentos que contrariem seus princípios morais, éticos ou religiosos. Mas, como explica a pesquisadora Crissia, atualmente pós-doutoranda na Universidade de Brasília (UNB), esse direito “não é irrestrito”. Quando se nega, o profissional tem a obrigação de encaminhar a paciente a outro médico.

A recusa não é sempre religiosa. Crissia aponta o estigma do aborto como o maior obstáculo. Médicos que atuam no programa recebem apelidos pejorativos, como “médico aborteiro”. Ela mesma foi chamada de “a menina do aborto”. Isso gera medo, isolamento e insegurança entre os profissionais.

Segundo maior estado em extensão territorial no Brasil, ficando atrás apenas do Amazonas, o Pará conta com serviço de aborto legal em 14 dos seus 144 municípios. Quem sai de Altamira até os serviços mais próximos, por exemplo, enfrenta pelo menos seis horas e meia de viagem para Santarém, Itupiranga ou Porto de Moz.

Boicote institucionalizado e rede pulverizada

Em outros estados da região, o cenário é ainda mais desafiador. No Amapá, por exemplo, quem vive em Oiapoque precisa viajar por quase 9 horas até a capital Macapá, único município do estado com serviço cadastrado. Em alguns casos, o deslocamento depende de rios e pode durar dias. Um exemplo é o município amazonense de Tabatinga, cujo serviço mais próximo — em Tefé — só pode ser alcançado de avião ou após 34 horas viajando de barco.

Para Crissia Cruz existe um “boicote institucionalizado” e uma política de omissão do Estado no que diz respeito à formação de profissionais aptos a garantir o acesso ao aborto legal. O serviço de interrupção da gestação na Fundação Santa Casa do Pará não é sequer divulgado no site do hospital. “A população não procura o que não sabe que tem direito”, alerta a pesquisadora.

O diretor do Instituto de Ciências Médicas da UFPA, Silvestre Savino Neto, reconhece que não há qualificações específicas sobre o atendimento nesses casos, embora o aborto legal seja abordado na disciplina de Medicina Legal. Segundo ele, a grade curricular foi reformulada em 2024 para incluir conteúdos sobre saúde sexual e reprodutiva, mas a consolidação ainda depende da realização contínua de seminários e discussões clínicas dentro da universidade.

Crissia descreve a rede de apoio à mulher como “muito pulverizada”, o que prejudica a criação de estratégias eficientes para atendimento adequado. Os serviços até existem, mas estão espalhados, sem comunicação entre si e sem um fluxo definido de encaminhamento. Essa fragmentação dificulta o acolhimento das vítimas de violência e o acesso a direitos garantidos por lei. Na prática, muitas mulheres não sabem a quem recorrer ou são empurradas de um órgão para outro, sem resolução.

Defensorias sinalizam falta de acesso à informação

A reportagem procurou as Defensorias Públicas dos sete estados que compõem a região Norte do Brasil e somente os estados do Pará, Amazonas e Amapá responderam.

No Pará, todos os casos atendidos foram encaminhados extrajudicialmente, como explicou a defensora pública Daiane Lima dos Santos, do Núcleo de Enfrentamento à Violência de Gênero da Defensoria Pública do Pará. No Amazonas, a defensoria respondeu que tem se concentrado exclusivamente em demandas individuais relacionadas ao aborto legal, casos de pessoas que buscaram atendimento jurídico e receberam assistência, não havendo ações judiciais coletivas para garantir um acesso mais amplo à sociedade.

No Amapá, a Defensoria Pública afirma que há um desconhecimento sobre o direito ao aborto legal, especialmente entre crianças e adolescentes. Segundo a defensora pública Thalita Araújo, que atua em Oiapoque, no extremo norte do estado, os relatos que chegam até ela apontam uma lacuna grave de informação, acolhimento e fluxos institucionais acessíveis — principalmente em cidades distantes da capital.

Embora o estado do Amapá possua um serviço autorizado no SUS, a Secretaria de Saúde do Estado informou à Defensoria que os protocolos estão desatualizados e passando por reformulação. A Secretaria ressaltou que esse processo não impede que as meninas/mulheres que se enquadram nas hipóteses que fazem jus ao aborto legal, sejam atendidas e acolhidas.

Thalita observa que a ausência de protocolos atualizados, equipes treinadas e canais de acesso padronizados compromete o atendimento digno e seguro às mulheres e meninas, especialmente as que vivem em comunidades ribeirinhas, indígenas e quilombolas.

Julgamento moral atrapalha

Além disso, o medo da criminalização e o julgamento moral ainda impedem muitas mulheres de buscar ajuda, mesmo quando têm direito ao procedimento. “Assistidas demonstram insegurança quanto à legalidade, receio de represálias familiares ou sociais e sensação de culpa”, aponta a defensora do Amapá. Thalita Araújo afirma também que identificou situações em que a palavra da mulher não foi respeitada, mesmo em casos de estupro, o que contraria as diretrizes legais.

Para reverter esse cenário, o órgão tem atuado de forma reativa, quando acionado, promovendo diálogos com hospitais, secretarias e outros órgãos. “A ausência de serviços especializados e de protocolos clínicos funcionais é uma violação grave de direitos e pode gerar responsabilização do poder público”, avalia.

No Pará, por sua vez, o Ministério Público atua em casos que exigem judicialização, mas o acesso à Justiça também esbarra na ausência de uma rede bem articulada e preparada para lidar com esse tipo de demanda.

A pesquisadora Crissia Cruz critica a forma como o aborto é tratado socialmente quando uma mulher engravida após uma violência sexual. “Ela teve o corpo violado e a gente está debatendo o aborto, e não a violência que ela sofreu. Isso me choca demais.” Mulheres que cheguem ao hospital para fazer o procedimento após estupro não precisam provar que foram estupradas.

Além disso, muitas equipes não sabem que a palavra da mulher tem presunção de veracidade nos casos previstos por lei. Médicos cobram nexo causal entre o relato e a idade gestacional, o que pode inviabilizar o aborto.

Riscos do aborto clandestino

Mulheres sem acesso ao aborto legal recorrem a métodos perigosos. Algumas morrem por complicações. Outras carregam sequelas físicas e psicológicas por toda a vida. E casos de abortos clandestinos mal sucedidos podem ir parar no hospital. Entre os estados da região, o Pará lidera as internações hospitalares relacionadas a abortamento, independentemente do tipo (aborto legal, espontâneo ou clandestino).

Julia* tinha 22 anos quando descobriu a gravidez. Estudava, trabalhava e sabia que não tinha condições de criar uma criança. Conseguiu as informações sobre o aborto seguro em uma cartilha da Organização Mundial da Saúde (OMS) e pagou quase R$ 2 mil, em 2023, por um remédio desviado de hospital.

A técnica de enfermagem que lhe entregou a medicação cedeu a ela um quarto em sua casa para que fizesse o procedimento. Julia aplicou a medicação. Passou a madrugada sozinha. Muita dor. Muito sangue. Nenhuma certeza. “Não sabia o que tinha acontecido com meu corpo. Só sabia que não podia ir ao hospital”, conta Julia. O caso dela não se enquadra nas situações previstas em lei que garantem o aborto legal.

Julia ainda lembra do dia em que a amiga de apenas 17 anos, que tinha feito um aborto, começou a passar mal e precisou ir a um hospital. As duas moravam em Cametá, no nordeste do Pará. A jovem tinha conseguido o remédio clandestino por indicação de outras meninas. Passou mal, teve febre e perdeu muito sangue. Chegou a desmaiar em casa. “Ela quase morreu na minha frente”, conta Julia.

Diante da gravidade do quadro, as duas decidiram procurar uma unidade de saúde. Mentiram sobre o motivo do sangramento, por medo de serem criminalizadas, mas de nada adiantou. “Os médicos sabem e demoram para fazer o atendimento, como se fosse uma punição por termos decidido pelo aborto.”

Na Amazônia, o desafio é construir o básico

A pesquisadora Crissia destaca que na Amazônia ainda se luta para construir o mínimo. A precariedade da estrutura de saúde, as longas distâncias e a falta de informação agravam a situação. “Falar sobre aborto aqui é falar de saneamento, de anticoncepcionais, de educação sexual, de casamento infantil”, resume. Para ela, a luta pelo acesso ao aborto legal é também uma luta por dignidade, saúde e direitos básicos.

A avaliação está alinhada com o que defende o Ministério Público do Pará (MPPA). A promotora Renata Cardoso, coordenadora do Núcleo de Promoção à Mulher, afirma que é preciso descentralizar os atendimentos, garantir transporte e acolhimento, investir na formação de profissionais da saúde e divulgar amplamente os serviços disponíveis. Para o MPPA, negar o acesso ao aborto legal configura uma forma de revitimização.

Em um dos casos recentes, conselheiros tutelares tentaram impedir uma adolescente de 17 anos — com deficiência e vítima de violência sexual — de realizar o procedimento. A recomendação do conselho era que ela levasse a gestação até o oitavo mês e entregasse o bebê para adoção.

Renata Cardoso relata que houve falhas no atendimento prestado pelo Hospital Santa Casa do Pará, que se recusou a realizar o aborto alegando idade gestacional avançada. Diante disso, o MPPA emitiu uma nova ordem judicial, determinando que o hospital fizesse o procedimento ou encaminhasse a jovem para outra unidade. O aborto só foi realizado após essa intervenção do Ministério Público.

Para a promotora Renata, garantir o aborto legal vai muito além da lei. Exige vontade política, estrutura, informação acessível e compromisso real com os direitos das mulheres.

Um profissional bem capacitado sabe como proceder

O Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente do Pará afirma que tem investido em qualificações para a garantia do direito ao aborto legal em casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. As formações se baseiam na Resolução 258 do Conanda — que versa sobre o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual — e têm como público-alvo conselheiros municipais, conselhos tutelares e a rede socioassistencial.

Segundo Max Costa, ex-conselheiro estadual, cujo mandato se encerrou em agosto de 2025, a aplicação dessas diretrizes ainda enfrenta obstáculos estruturais, como a descontinuidade das equipes nos municípios, vínculos de trabalho precários e ausência de concursos públicos. “Quem está na ponta vive sendo trocado de função. Os municípios não fazem concursos”, explicou.

Max avalia que, embora os efeitos das qualificações ainda sejam tímidos, elas têm contribuído para ampliar o conhecimento sobre legislação, procedimentos e articulação entre os serviços. “Um profissional bem capacitado sabe como proceder, faz as notificações necessárias e orienta conforme os marcos legais”, reforçou.

A criação da Semana Estadual do Nascituro e de Conscientização sobre os Riscos do Aborto é outro ponto de preocupação do Ministério Público do Pará (MPPA). Embora não altere a legislação federal, a lei estadual pode interferir na garantia dos direitos reprodutivos. “O Estado é laico e deve garantir o acesso ao direito, não promover campanhas que o desestimulem”, afirma Renata, coordenadora do Núcleo de Promoção à Mulher do MPPA.

A Secretaria de Saúde do Estado será responsável pela organização das ações. A lei permite parcerias com organizações religiosas e civis antidireitos, que atuam para impedir meninas e mulheres de realizarem abortos. A campanha pode reforçar o estigma e desencorajar o acesso ao procedimento e direito previsto em lei.

*Nome alterado para preservar o anonimato

* Por Catarina Barbosa