Foto mostra mulher negra com a saúde mental abalada chorando

Saúde mental: “se o profissional não for preto, como vai entender o que eu vivo?”

Mulheres negras enfrentam barreiras no acesso a cuidados psicológicos que reconheçam suas vivências e dores

Por Amanda Stabile

19|09|2025

Alterado em 19|09|2025

“Sou uma mulher preta em construção, descobrindo as coisas. Já tive depressão, procurei três psicólogos e também terapias alternativas. Quanto mais me conheço, mais consigo lutar e crescer”, conta Eliza Rodrigues de Miranda, funcionária pública, mãe de quatro filhos, moradora de Cuiabá (MT).

Aos 46 anos, ela se descreve como uma pessoa intensa: “Quando estou triste, é a senhora tristeza; quando estou feliz, é uma alegria exaltada”. Essa intensidade, que por vezes levou-a a buscar acompanhamento profissional em diferentes momentos da vida.

“Minha saúde mental hoje eu diria que está em sete e meio, oito numa escala de dez. Já esteve pior, hoje está melhor, porque eu me conheço mais. Mas sei que poderia estar muito melhor se houvesse profissionais que realmente compreendessem a minha vivência de mulher preta”, reflete.

A consciência racial atravessa seu olhar sobre o cuidado. Durante uma sessão de terapia, Eliza contou à psicóloga sobre a frustração da filha, rejeitada em uma entrevista de emprego com a justificativa de “não ter o perfil da empresa”. Dias depois, voltou ao local como cliente e reparou que não havia atendentes pretas — mas entre as pessoas que limpavam e serviam café, a maioria era negra. “Entendi o que queriam dizer com perfil”, lembra.

A resposta da psicóloga foi que aquilo era apenas “uma impressão” dela. “Foi aí que pensei: a partir de hoje a gente vai ter que buscar psicólogos pretos, porque eles vão entender o que a gente quer dizer. Senão, corro o risco de sair de lá achando que sou louca!”.

A dor que não é levada a sério

No artigo “Impactos Psicossociais do Racismo na Saúde Mental de Mulheres Negras” (2023), as pesquisadoras apontam que o racismo atua como produtor de sofrimento psíquico, operando não só em violências explícitas, mas também em mecanismos sutis de silenciamento e invalidação.

Elas explicam que a junção das condições de racismo e sexismo cria o que Sueli Carneiro chama de asfixia social, causando um impacto direto na saúde mental e deixando sérias sequelas emocionais. Isso explica por que, em tantas situações, mulheres negras como Eliza têm suas experiências deslegitimadas até mesmo por profissionais.

Outro estudo, “A saúde das mulheres negras: atuação da psicologia na atenção básica” (2023), mostra que sem preparo para lidar com o racismo, alguns profissionais atribuem o sofrimento das pacientes a problemas individuais, como “fragilidade emocional” ou “falta de resiliência”.

Esse tipo de interpretação transfere a responsabilidade para a mulher, como se fosse uma questão exclusivamente dela, e não o resultado de violências estruturais. As autoras destacam ainda que a falta de preparo racial por parte dos psicólogos pode fazer com que as próprias pacientes passem a duvidar de si mesmas.

Ao longo de sua carreira de 25 anos na educação, Eliza também sentiu o peso do racismo em outras formas. “Fiquei apagada porque não tive oportunidade de me destacar. Quando finalmente me pediram para representar a empresa em um evento, eu não sabia que teria que discursar. Falei sobre o que dominava: educação. Depois ouvi várias vezes: ‘Nossa, você fala muito bem, eu não sabia’. Qual é a visão que as pessoas têm de uma mulher preta? Que não sabemos falar, que não sabemos discursar. São estereótipos que nos prejudicam, que nos apagam”.

Violências que marcam corpo e mente

A experiência de Mychelle Silva, trancista e moradora da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro (RJ), mostra os efeitos devastadores de um relacionamento abusivo sobre a saúde mental. Aos 38 anos e mãe de uma bebê de poucos meses, conta que a maternidade também não foi vivida como um momento de acolhimento, mas como abandono.

“Grávida de dois meses, fui deixada pelo genitor da minha filha. Desde então, enfrento tudo sozinha. A maternidade solo é muito estressante, tem horas cansativas, chorar é a solução”, conta. “Lembrar cenas onde eu era certa e saía como louca, o desrespeito no resguardo, lembrar tudo que eu amava na minha profissão e tive que parar. Penso que hoje não sou a mesma: os traumas, os problemas de esquecimento, um monte de coisas que nem sei por onde começar”.

Os sinais do adoecimento mental apareceram cedo e se manifestaram no corpo. “Comecei a ter manchas roxas e dores no peito. Ia ao pronto atendimento, tomava remédios e voltava pra casa. Depois vieram crises de choro, tremedeira, lembranças das discussões e a vergonha de ser chamada de louca. Mesmo provando minha verdade, ele convencia as pessoas de que eu mentia. E eu chorava sozinha”, desabafa.

Mychelle conta que interrompeu os estudos por não conseguir controlar as crises. Em alguns momentos, voltava ao relacionamento por vergonha, medo ou esperança de mudança. “Fico gelada ao falar ou lembrar. Passei vergonha, fiz coisas que hoje não faria. Realmente qualquer um me chamaria de louca. Mas eu queria pôr pra fora tudo o que eu sabia e passava, e ninguém sabia, só eu e ele”.

A dissertação “Saúde Mental das Mulheres Negras Brasileiras: uma revisão de escopo” (2023), defendida por Kelly Paula do Amaral Brito na Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), aprofunda esse cenário ao identificar quatro grandes dimensões que estruturam a saúde mental das mulheres negras:

Sofrimento psíquico e sobrecarga: mulheres negras apresentam maior prevalência de depressão e ansiedade e acumulam responsabilidades domésticas, familiares e profissionais que geram exaustão;

Resistência e território: a espiritualidade, o autocuidado e as redes comunitárias aparecem como estratégias fundamentais de enfrentamento e proteção da saúde mental;

Narrativas em primeira pessoa: os relatos diretos das mulheres negras trazem conhecimentos invisibilizados pelas estatísticas e revelam novas formas de compreender o cuidado;

Violência racial de gênero: a combinação de racismo e sexismo estrutura exclusões, discriminações e desigualdades de acesso, impactando de modo profundo a saúde mental.

Eliza e Mychelle percorrem, cada uma a seu modo, essas dimensões. Enquanto Mychelle luta para reconstruir sua vida entre cursos, o retorno ao trabalho como trancista e a batalha judicial pela pensão da filha, Eliza segue apostando no autoconhecimento e na espiritualidade.

“Quanto mais me conheço, mais embasamento tenho para lutar e crescer”, afirma. Mas também reconhece os limites:

Se o profissional não for preto, como vai entender o que eu vivo? É perigoso eu sair de lá duvidando ainda mais de mim mesma.

Para Kelly, esse é justamente o ponto central: a saúde mental das mulheres negras não pode ser reduzida ao modelo biomédico de consultas e medicamentos. Ela está no centro de um campo de disputa, onde se cruzam história, política e desigualdades estruturais. “As mulheres negras brasileiras, cotidiana, cíclica e intergeracionalmente têm a saúde mental exposta de maneira cruel por estarem envoltas à violência racial-estrutural de gênero e classe”, conclui a pesquisadora.