Foto mostra crianças desenhando com lápis de cor em uma das creches brasileiras

Pela primeira vez, crianças negras são maioria nas creches, mas acesso ainda reflete desigualdades

Censo Escolar 2024 revela que crianças negras são 40% das matriculadas em creches, mas apenas 38,7% das crianças de zero a três  anos conseguem vaga

Por Amanda Stabile

09|05|2025

Alterado em 09|05|2025

Pela primeira vez, a porcentagem de crianças negras (pretas e pardas) matriculadas em creches (40,2%) superou a de crianças brancas (38,3%). Nas creches públicas, o salto foi ainda mais expressivo: de 38% para 45%. Os dados são do Censo Escolar 2024, divulgado pelo Ministério da Educação (MEC) em abril de 2025.

Para Mighian Danae, doutora em Educação, professora universitária e pesquisadora sobre educação afrocentrada, a presença crescente de crianças negras nas creches do país, embora comemorada, não deve ser motivo para descanso. “Comemoramos e ficamos atentos para perceber o que aconteceu, tentando identificar o que pode ter feito esse número aumentar”, explica.

Uma das hipóteses levantadas pela pesquisadora é que o aumento na autodeclaração racial pode ter influenciado a redução do grupo de crianças com raça “não declarada”, com parte desse contingente migrando para as categorias preta e parda. Ainda assim, o Censo mais recente mostra que 17.945 crianças matriculadas em creches continuam sem raça declarada — o equivalente a 16,78% do total.

Há muito desconcerto por parte das famílias em se identificarem como negras.

O Censo também revela que apenas 38,7% das crianças de zero a três anos estão matriculadas em creches. O número está muito abaixo da meta estabelecida pelo Plano Nacional de Educação (PNE) para ser cumprida até 2024: pelo menos 50% das crianças de até três anos atendidas pela Educação Infantil em creches.

“Universalizar, até 2016, a educação infantil na pré-escola para as crianças de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade e ampliar a oferta de educação infantil em creches de forma a atender, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das crianças de até 3 (três) anos até o final da vigência deste PNE”, META 1 do Plano Nacional de Educação (PNE)

Creche é direito, não favor!

A educação infantil, especialmente nos três primeiros anos de vida, é uma das fases mais decisivas do desenvolvimento humano. Como apontado na publicação “Desigualdades na garantia do direito à pré-escola”, da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, é nesse período, conhecido como “primeiríssima infância”, que o cérebro da criança está em pleno desenvolvimento, realizando até um milhão de conexões por segundo, formando as bases para habilidades cognitivas, emocionais e sociais.

No Brasil, todas as crianças com idades entre zero e cinco anos e 11 meses têm direito à educação infantil pública e gratuita. Essa primeira etapa da educação básica é dividida em dois níveis: a creche, para crianças de até três anos, cuja matrícula é opcional; e a pré-escola, que todas as famílias têm o dever de matricular seus filhos a partir dos quatro anos.

Porém, o acesso à creche no país é desigual, atravessado por questões sociais, raciais e regionais que afetam principalmente os grupos mais vulneráveis. Segundo o Índice de Necessidade de Creche (INC) 2018–2020, realizado pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, dos 11,8 milhões de crianças de 0 a 3 anos no Brasil em 2019, 42,4% necessitavam de atendimento em creche—o que equivale a quase 5 milhões de crianças.

Entre elas, 17,3% vinham de famílias em situação de pobreza e 3,5% eram crianças não pobres de famílias monoparentais. O estudo aponta também a desigualdade educacional relacionada à renda: entre os mais ricos, 54,3% das crianças frequentavam creches, enquanto entre os mais pobres, apenas 27,8%.

Ainda,crianças pretas, pardas e indígenas têm menores taxas de frequência escolar em relação às crianças brancas, com a taxa de frequência para crianças pretas, pardas e indígenas em 91,9% em 2019, enquanto para crianças brancas ou amarelas era de 93,5%.

Mighian pontua que a alta necessidade por vagas em creches está diretamente relacionada à estrutura familiar em que muitas crianças negras estão inseridas. Segundo ela, é comum que pai e mãe precisem trabalhar. “Então, as vagas em creches são importantes tanto para o desenvolvimento integral das crianças quanto para a organização das próprias famílias”, diz.

O estudo também apontou que 75,6% das crianças em situação de pobreza não frequentavam creches. Já entre as crianças de famílias não pobres e monoparentais, 55,1% estavam matriculadas.

“Essas crianças precisam da creche porque elas não têm estrutura, não têm alguém que cuide delas em casa, porque os pais precisam trabalhar para sustentar a família. Ao mesmo tempo, isso complementa a ideia de que a criança precisa de um espaço e de pessoas para auxiliá-la no seu desenvolvimento integral”, explica.

A especialista observa que as políticas públicas voltadas à educação infantil exigem um investimento público maciço, algo que não tem sido prioridade do Estado. Ela argumenta que essa etapa da educação básica, apesar de essencial, costuma ser vista pelos políticos como onerosa, em parte porque as crianças pequenas não votam.

“E, ainda que possam influenciar os votos das famílias, acho que essa influência é secundária, em relação a outras influências, como, por exemplo, uma distribuição direta de renda, que muitas vezes não está vinculada à criança ou à creche”, aponta.

Para ela, mesmo quando o Estado não dispõe de unidades próprias de educação infantil, seria fundamental que os entes federativos atuassem de forma conjunta para garantir esse direito. Mighian ressalta que a creche é o início da trajetória educacional da criança e, portanto, deveria ser tratada como parte estruturante da educação básica. No entanto, por não ser obrigatória, a creche recebe menos atenção do que etapas como a pré-escola.

“O que precisamos fazer é tornar a creche a primeira etapa da educação obrigatória, para que ela se torne algo mais valorizado pelas políticas públicas. Essa é uma questão a ser enfrentada no próximo plano nacional”.

No entanto, Mighian reconhece que essa é uma luta difícil de ser vencida, tanto pelo alto custo envolvido quanto pela percepção dominante de que essa etapa não representa um investimento de qualidade.

Até porque os bebês não estão na vida política. Eles não podem reclamar por vagas.

A especialista pontua que tornar a creche obrigatória exigiria mudanças na forma como se organizam as instituições de educação infantil, com a criação de condições específicas que respeitem as particularidades dessa faixa etária. Diante da atual mentalidade política no Brasil, a especialista vê com dificuldade a realização de um investimento significativo na expansão e qualificação dessa etapa educacional.

Impactos da pré-escola

Manter crianças negras fora do sistema de educação formal é uma escolha com consequências profundas e duradouras. Para Mighian, essa exclusão representa não apenas uma negligência individual, mas um fracasso coletivo. Segundo ela, a sociedade brasileira já paga o preço por não assumir a responsabilidade de incluir populações historicamente minorizadas na educação.

O resultado é a perpetuação de desigualdades sociais e educacionais, além da continuidade do racismo institucional — que atua tanto como sintoma quanto como causa desse descuido. Ou seja, essas desigualdades de acesso afetam não só o presente, mas também comprometem o futuro das crianças e da sociedade.

Um estudo da Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, revela que quem frequentou a pré-escola teve desempenho superior na 4ª e 8ª série do fundamental e na 3ª série do médio, além de um ano e meio a mais de escolaridade e aumento de 16% na renda.

Outra pesquisa, de autoria de Doutoras da Universidad Del Sol, reforça que a pré-escola estimula o desenvolvimento da autonomia, expressividade e interação com professores, facilitando a alfabetização. Os impactos seguem na vida adulta: maiores taxas de empregabilidade, escolarização e menor probabilidade de envolvimento com a criminalidade.

Mighian ressalta que o desenvolvimento pleno dessas crianças — físico, emocional e cognitivo — é comprometido quando o acesso à educação infantil não é garantido. E isso não afeta apenas as famílias diretamente envolvidas: a sociedade como um todo perde a oportunidade de construir uma base mais plural, diversa e justa.

Quando as crianças não têm acesso a um desenvolvimento pleno, isso impacta diretamente a sociedade que somos e que podemos ser.

A primeira etapa da Educação Básica é, ainda, essencial para a promoção da equidade, pois, ao oferecer proteção, segurança e cuidado aos pequenos, também acolhe as famílias, como aponta estudo publicado pelo Núcleo Ciência Pela Infância. Além disso, do ponto de vista econômico, investir na primeira infância gera resultados significativos para toda a sociedade.

Garantir que crianças negras e pobres frequentem a pré-escola, por exemplo, traz um retorno financeiro muito maior do que o investimento. É o que destaca Eduardo Melhuish, professor nas universidades de Oxford, Birkbeck e Londres, e pesquisador da área de Educação Infantil e Desenvolvimento.

No artigo Efeitos de longo prazo da Educação Infantil: evidências e política, ele argumenta que, no Perry preschool project – projeto realizado nos Estados Unidos que ofereceu um programa pré-escolar de alta qualidade para crianças pobres na década de 1960 – os benefícios foram equivalentes à economia de 7 dólares para cada dólar gasto.

Mighian conclui que, “ao não olhar para os grupos que foram sistematicamente excluídos desde a invasão portuguesa no Brasil, a gente perde a oportunidade de crescer e se desenvolver. Não nos tornamos uma sociedade diversa, plural, forte, menos violenta, menos racista e preconceituosa”.