Entre as décadas de 80 e 90, houve uma esterilização em massa de mulheres brasileiras, especialmente as negras e pobres. A reportagem conta sobre esse período e faz um paralelo com o cenário atual
Reportagem: Beatriz de Oliveira
Edição: Karoline Miranda
Arte: Gabriela Godoy
Atualizado em 30|04|2025
No final da década de 80, a recém-formada médica Jurema Werneck trabalhava como parte de uma equipe de agentes de saúde em favelas do Rio de Janeiro (RJ), e observou uma tendência que lhe chamou a atenção: um alto número de mulheres esterilizadas. “Detectei esse fenômeno, que era surpreendente, porque esterilização não era algo que naturalmente estivesse na cesta de contraceptivos disponíveis; era uma cirurgia”, diz a médica, hoje com 63 anos de idade, cofundadora da organização Criola e diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil.
O que Jurema observou naquele período foi definido a seguir como um movimento de esterilização em massa de mulheres no país, em particular das negras e pobres. A partir dessa constatação, o movimento feminista negro passou a pautar a questão da esterilização em massa de mulheres negras e das políticas de saúde reprodutivas que vigoravam entre a décadas de 80 e 90.
Nesta reportagem, vamos abordar essa luta que se desdobrou em um encontro nacional de mulheres negras para discutir direitos reprodutivos, em uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) no Congresso Nacional para investigar a esterilização em massa e o investimento internacional nesse âmbito, e, por fim, na Lei do Planejamento Familiar, de 1996. Vamos ainda, fazer um paralelo com o cenário atual, investigando como esse problema se perpetua mesmo após significativos avanços.
Laqueadura é uma cirurgia para a esterilização definitiva, para evitar a possibilidade de gravidez, em que as trompas da mulher são amarradas ou cortadas, evitando que o óvulo e os espermatozóides se encontrem.
Em 1986, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicou uma edição especial da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Entre outros dados, o estudo apresentava índices relativos aos métodos contraceptivos utilizados pelas mulheres. Revelou-se que 71% das mulheres brasileiras casadas ou unidas e que tiveram filhos, de 15 a 54 anos, usavam algum tipo de anticoncepcional. Ao passo que 44% delas estavam esterilizadas e 41% usavam pílula anticoncepcional. A maior incidência de mulheres esterilizadas era no Maranhão, estado que tinha a maior proporção de população negra.
Na época, era comum mulheres serem apresentadas à esterilização como um método contraceptivo reversível, ou como o único método disponível. Além disso, havia vagas de emprego que colocavam a laqueadura como um requisito para contratação. Vigoravam ainda movimentos de troca de votos por esterilizações em eleições.
Baseada em informações como essas, Jurema Werneck criou um projeto e buscou organizações para apoiá-la. Surgiu daí a Campanha Nacional contra a Esterilização de Mulheres Negras, feita em parceria com o Programa de Mulheres do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (Ceap), cujo o slogan era “Esterilização – Do controle da natalidade ao genocídio do povo negro!”
Campanha contra esterilização em massa
©Art Mulheres
A campanha denunciava que o governo brasileiro e entidades internacionais estavam financiando o controle da natalidade e o extermínio da população negra através das esterilizações involuntárias.“No desenvolvimento dessa campanha, tivemos acesso a documentos e informações sobre a existência deliberada de uma iniciativa de controle da natalidade”, conta Jurema Werneck.
Outras ativistas do feminismo negro se aliaram a esse debate. É o caso das fundadoras do Geledés – Instituto da Mulher Negra, localizado em São Paulo (SP), que lançaram em 1991 a publicação “Esterilização: Impunidade ou regulamentação?”, propondo a regulamentação da prática a fim de coibir os abusos e estimular o uso de outros métodos contraceptivos.
Publicação “Esterilização: Impunidade ou regulamentação?”
©Geledés
No artigo “Saúde Reprodutiva da População Negra no Brasil: Entre Malthus e Gobineau”, Edna Roland, psicologia e a época coordenadora do Programa de Saúde de Geledés, afirma que a posição defendida pelo programa destoava da fala de representantes do movimento negro que consideravam a prática unicamente um instrumento de genocídio.
“Recusando uma posição política que chegava ao cúmulo de declarações de militantes negros de que era tarefa política das mulheres negras terem filhos, o Programa de Saúde considerava que tal visão não incorporava a discussão do conceito de direitos reprodutivos, prendendo-se unicamente aos resultados demográficos das práticas contraceptivas, sem levar em conta as necessidades e desejos das mulheres em relação ao controle de sua prole”, escreve.
Jurema Werneck discordava da regulamentação. “Eu achava na época temeroso autorizar, porque estava sendo usada contra nós, sem controle e a lei não ia nos proteger”, diz. Naquele contexto, a laqueadura era uma prática que acontecia numa suposta ilegalidade, uma vez que era proibida pelo Código de Ética Médica e penalizada pelo Código Penal Brasileiro em situações de ofensa à integridade corporal.
Diante desse contexto, foram criadas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) em estados como Rio de Janeiro, Espírito Santo e Goiás para investigar as denúncias apresentadas pelo movimento de mulheres negras.Em paralelo, em março de 1991 o deputado Eduardo Jorge realizou uma debate acerca da questão na Câmara Federal, que resultou na primeira versão do Projeto de Lei nº 209/91, subscrito por ele, por Benedita da Silva e outros deputados para regulamentar a esterilização. Diante das críticas recebidas pelo projeto, Benedita da Silva e Eduardo Jorge apresentaram em 20 de novembro do mesmo ano um requerimento propondo uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para avaliar a questão à nível nacional.
A CPMI foi instalada em abril de 1992 e colheu 27 depoimentos de representantes de diferentes setores, incluindo do movimento de mulheres negras: Jurema Werneck, então representante do Ceap, Luiza Bairros, então coordenadora nacional do Movimento Negro Unificado (MNU), e Edna Roland, então diretora do Geledés.
A comissão apurou a incidência massiva de esterilização de mulheres no país, baseando-se em evidências, como a de que 45% das mulheres brasileiras em idade reprodutiva estavam esterilizadas, sendo que os maiores índices são em estados de maioria negra. “A maioria da população feminina que se submete a esta prática é negra, o que revela o caráter racista da esterilização”, dizia o sexto item do argumento. Outro ponto descrito foi o de que a esterilização é apresentada às mulheres como sendo o primeiro, principal ou único método contraceptivo.
Sobre a esterilização involuntária, a depoente Luiza Bairros destacou que havia uma maior evidência entre mulheres negras, decorrentes de doenças ginecológicas, que resultam da condição socioeconômica da pobreza e miséria.
Entre os fatos que escancararam o caráter racista da política reprodutiva da época está uma campanha publicitária realizada em 1986 na Bahia, conforme relata-se na CPMI. A campanha destinava-se à inauguração do Centro de Pesquisa e Assistência em Reprodução Humana e exibia outdoors com fotos de crianças e mulheres negras, com os dizeres “defeito de fabricação”.
O relatório apontou ainda que grande parte das laqueaduras ocorriam durante acesárea, o que “explica por que o Brasil ostenta a condição de campeão mundial nesse tipo de cirurgia”, diz o texto. Alerta-se também para os riscos da cesárea e para as sequelas da esterilização cirúrgica.
Constatou-se também a existência de interesse internacional na implementação do controle demográfico no país, incluindo o investimento de altas quantias com destaque para os Estados Unidos. As instituições ofereciam laqueaduras sob a omissão do Estado brasileiro, sendo as de maior envergadura a Bemfam e Cpaimc.
“Os municípios do Brasil tinham parceria de cooperação com a Bemfam, para distribuir métodos hormonais e os médicos encaminhavam para esterilização sem nenhum critério”, explica Emanuelle Góes, doutora em Saúde Pública, estudiosa e ativista dos direitos sexuais reprodutivos, com foco em mulheres negras.
Joice Nielsson, doutora em Direito Público e pesquisadora da área de Direitos Sexuais e Reprodutivos, explica que isso ocorreu quando vigorava no mundo a corrente desenvolvimentista, que colocava uma ideia de contraposição entre países de primeiro e terceiro mundo. “Havia a ideia de que a pobreza era culpa da procriação em massa das mulheres pobres do terceiro mundo. Uma ideia extremamente xenófoba e racista. E isso levou com que houvesse um investimento de várias instituições para um processo de esterilização em massa.”, diz.
Entre as conclusões obtidas pela CPMI estão:
Não há no Brasil uma política de saúde da mulher por parte do Governo Federal;
O Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) não tem implementação efetiva;
Há interesse internacional na implementação do controle demográfico no Brasil;
Houve esterilização em massa de mulheres no país;
É preocupante a taxa de arrependimento pós-laqueadura.
No entanto, o maior índice de esterilização de mulheres negras não foi confirmado pelo relatório. “A maior incidência de esterilização em mulheres da raça negra foi denunciada pelo movimento negro, como um aspecto do racismo praticado no Brasil. Os dados levantados pelo IBGE, na PNAD de 1986, não confirmam a denúncia, mas é fato notório a dificuldade de se apurar com precisão a informação relativa à cor da pele dos brasileiros”, pontua o texto.
Em agosto de 1993, no ano seguinte à realização da CPMI, 55 lideranças representantes de organizações do feminismo negro e de mulheres de diferentes estados se reuniam para o primeiro evento nacional destinado a discutir direitos reprodutivos das mulheres negras no Brasil.
Tratava-se do Seminário Nacional Políticas e Direitos Reprodutivos das Mulheres Negras, que aconteceu em Itapecerica da Serra (SP), organizado pelo instituto Geledés. O encontro tinha o objetivo de preparar ativistas negras para a participação na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, que aconteceu no Cairo, em 1994.
Como resultado de três dias de seminário, foi escrita a “Declaração de Itapecerica da Serra das Mulheres Negras Brasileiras”, que versava sobre a esterilização em massa de mulheres negras, políticas populacionais racistas e o papel exercido pelo movimento de mulheres negras.
“As mulheres negras mantiveram sua posição crítica em relação à esterilização cirúrgica, considerando que os reflexos da esterilização em massa de mulheres negras no país se fizeram sentir na redução percentual da população negra em comparação com a década anterior”, escreveu Edna Roland, uma das organizadoras do seminário, no artigo “Saúde Reprodutiva da População Negra no Brasil: Entre Malthus e Gobineau”.
“Os reflexos da esterilização em massa de mulheres negras no país já se fazem sentir na redução do percentual da população negra nesta década, em comparação com a década anterior”
trecho da Declaração de Itapecerica da Serra
Matilde Ribeiro, professora, assistente social e ativista política nos movimentos negro e feminista, foi uma das participantes do evento e afirma que a declaração “serviu como uma uma bússula, uma referência, de por onde o movimento feminista, o movimento negro e os movimentos sociais deveriam seguir, valorizando a mulher negra como sujeita, e criticando a condição imposta por setores conservadores”. Para ela, as mulheres negras foram muito perspicazes ao pautar suas demandas nos movimentos negro e feminista
“A declaração se apresenta com cinco pontos bem importantes, que a liberdade reprodutiva como parte dos direitos fundamentais, a reivindicação dos direitos reprodutivos, a crítica ao abuso no processo de interação, o combate ao racismo e ao sexismo denominadores que limitam o acesso das mulheres a várias coisas, como a questão da educação, do trabalho, a participação política e, por fim, a participação social, que traz para as mulheres negras, o lugar de pautar essa discussão”, explica Lucidalva Nascimento, advogada dedicada a em defesa dos direitos das mulheres em situação de violência, integrante do Centro das Mulheres do Cabo (CMC) e uma das participantes do evento.
O documento destaca que a garantia de direitos reprodutivos só seria alcançada a partir da garantia de direitos amplos de cidadania, como emprego, saúde, saneamento básico, educação e moradia.
“Nós, mulheres negras, consideramos que cabe ao Estado garantir as condições necessárias para que os brasileiros, as mulheres, e em particular as mulheres negras brasileiras, possam exercer sua sexualidade e os seus direitos reprodutivos, controlando a própria fecundidade, para ter ou não ter os filhos que desejam, garantindo acesso a serviços de saude, de boa qualidade, de atenção a gravidez, ao parto e ao aborto”
trecho da Declaração de Itapecerica da Serra
Em 1996, após seis anos de tramitação, foi promulgada a Lei do Planejamento Familiar. Ela definia, entre outras coisas, que a esterilização voluntária só poderia ser realizada em pessoas com mais de 25 anos de idade ou com dois filhos vivos; em situação de casamento, só poderia ser realizada com consentimento expresso de ambos os cônjuges; e a cirurgia não poderia ser feita durante os períodos de parto ou aborto.
Em 2022, houveram algumas mudanças na lei: a idade mínima passou a ser 21 anos, não é mais necessária a autorização do cônjuge e é permitida a realização da laqueadura logo após o parto.
Amanda Muniz, advogada e doutora em Direito Política e Sociedade, considera que as mudanças trazem benefícios, mas chama atenção para o período em que as foram aprovadas. Tratava-se do governo Bolsonaro, que tinha por característica um discurso controlista e que já defendeu a esterilização de pobres para combater a miséria.
“Temos que olhar com cuidado para que essa lei não saia pela culatra, para que ela não facilite ainda mais a gente fazer esterilização em massa usando controle populacional de gente pobre, porque o contexto em que essa lei foi promulgada assusta”, afirma.
Dados do Ministério da Saúde obtidos pelo Nós, mulheres da periferia via Lei de Acesso à Informação (LAI) revelam que o número de laqueaduras realizadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) aumentou 349% de 2015 para 2024. Ao passo que, 60% das cirurgias foram realizadas em mulheres negras (pretas e pardas).
Mas é possível dizer que esse aumento significa livre poder de escolha das mulheres sob seus corpos? Não necessariamente. Na pesquisa “Direitos reprodutivos e esterilização de mulheres: a Lei do Planejamento Familiar 25 anos depois”, Joice Nielsson buscou compreender legislações, políticas públicas e debates jurisprudenciais acerca do planejamento familiar e do fenômeno da esterilização — voluntária e compulsória — de meninas e mulheres brasileiras.
“Muitas mulheres querem ter acesso a laqueadura e não vão ter porque não conseguem preencher os requisitos que a lei estabelece, elas não conseguem exercer a sua autonomia. E outros casos, temos mulheres que vão ser esterilizadas compulsoriamente. Passa muito por um recorte simbólico, daquilo que se considera mulheres desejáveis à reprodução e mulheres indesejáveis à reprodução em um contexto machista, racista, classista e capacitista”, afirma.
A pesquisadora analisou decisões judiciais acerca da esterilização de mulheres entre 1996 e 2021, e agrupou o conjunto de demandas pela cirurgia em três grupos: mulheres esterilizadas compulsoriamente sem o seu conhecimento; mulheres que querem realizar a laqueadura e encontram barreiras; e mulheres com deficiência intelectual ou em situação de drogadição ou vício em álcool que são esterilizadas. Nesse intervalo de 25 anos analisado, Joice concluiu que a autonomia da mulher segue desconsiderada. “Praticamente todos têm voz, menos a mulher”, resume.
De modo geral, a pesquisadora observou que mulheres brancas, jovens, casadas ou de classe média encontram barreiras ao procurarem pela pela realização da laqueadura. A medida que mulheres negras e de classes mais baixas são encorajadas a fazer a cirurgia. “Eu vi sentenças judiciais em que literalmente estava escrito assim: isso [a laqueadura] vai ser bom para impedir que futuras crianças problemáticas venham [a existir]”, relata.
Joice pontua ainda que esse cenário está muito relacionado à violência obstétrica, principalmente nos casos em que mulheres são esterilizadas após o parto e só descobrem depois de já realizado o procedimento.
Para a pesquisadora, apesar dos avanços na legislação, ela ainda está baseada na ideia de planejamento familiar, ao invés de se aproximar do conceito de justiça reprodutiva, que pensa na justiça social e na autonomia da mulher.
Já a pesquisadora Amanda Muniz analisou processos sobre laqueadura em Santa Catarina entre 2015 e 2016. Ela observou que “alguns juízes faziam um juízo de valor muito estranho, que era mais ou menos o seguinte: ‘ah, então, nesse caso aqui, a gente vê que ela é pobre e já tem vários filhos, então vamos fazer a laqueadura’. Como se não existisse uma lei por trás, como se não tivesse requisitos a serem atendidos por trás, o que dá a entender é que eles davam a sentença favorável à laqueadura para mulheres pobres e isso me chocou bastante”.
Dentro desse cenário, um caso emblemático foi o de Janaína Aparecida Quirino, uma mulher negra, moradora em situação de rua de Mococa (SP), usuária de drogas e que foi esterilizada contra a sua vontade em 2018, após pedido do Ministério Público.
Amanda pontua que durante o processo usa-se o argumento de que ela já tem filhos para que seja realizada a laqueadura, mas em momento algum é questionado onde está o pai das crianças. “Ela não é aquele ideal materno que se espera, ela é muito mais vista como um problema de Estado”, diz.
Dado todo esse cenário, a ativista Jurema Werneck diz se sentir “derrotada” olhando para a atual Lei de Planejamento Familiar. “Eu venho da corrente da autonomia, do confronto à injustiça e à iniquidade. E essa lei não protege as mulheres negras de quase nada”, diz. Da década de 80 pra cá, a autonomia das mulheres negras acerca de seus direitos reprodutivos ainda não é plenamente vivida.
Essa reportagem foi produzida com o apoio do IWMF – Internacional Women’s Media Fundation (https://www.iwmf.org/) como parte da Iniciativa Saúde Reprodutiva, Direitos e Justiça nas Américas