Por que as mulheres estão sempre “carregando” coisas? Sacolas, crianças e tantas outras responsabilidades

É importante questionar as estruturas sociais que garantem que essa sobrecarga física e mental continue existindo

Por Amanda Stabile

08|03|2025

Alterado em 09|03|2025

Uma negra e uma criança nos braços, solitária na floresta de concreto e aço

Essa cena, descrita pelos Racionais MC’s na música Nego Drama (2002), é tão comum no nosso dia a dia que poderia ter sido composta hoje mesmo. Além de crianças nos braços, as mulheres estão frequentemente carregando sacolas, bolsas e inúmeras outras coisas físicas que representam as múltiplas responsabilidades e expectativas que a sociedade impõe sobre elas.

A artista estadunidense Maira Kalman ilustrou no livro “Woman holding things” (Mulheres segurando coisas, em tradução livre), lançado em 2022, uma série dessas cenas, que trazem à reflexão como as mulheres carregam o peso do mundo de uma maneira tão naturalizada que passa despercebida.

©Divulgação Maira Kalman

“O que as mulheres seguram? A casa, a família, os filhos, a comida. As amizades, o trabalho. O trabalho do mundo e o trabalho de ser humana. As memórias, as dificuldades, as tristezas, os triunfos e o amor. Os homens fazem isso também, mas não exatamente da mesma maneira”, diz um trecho do livro.

Um ponto em comum entre as coisas que as mulheres carregam diariamente é a conexão com o trabalho do cuidado, seja do lar ou das pessoas. Por isso, é importante refletir sobre como essas responsabilidades impactam suas vidas e questionar as estruturas sociais que garantem que essa sobrecarga física e mental continue existindo.

As bolsas como extensão das mulheres

As bolsas, que surgiram na antiguidade para carregar pertences durante atividades fora de casa, passaram por diversas mudanças com o tempo. Mais do que apenas um item de moda, elas contam a história das mulheres e como seus papéis na sociedade se transformaram ao longo dos anos.

A história da moda (ou pelo menos, a história sobre a qual conseguimos encontrar pesquisas detalhadas sobre) não aborda especificamente o Brasil e o período colonial brasileiro, mas um contexto europeu. No entanto, é importante lembrar que a moda europeia influenciou significativamente as roupas da elite brasileira (especialmente a aristocracia e a burguesia urbana) desde a chegada da Corte portuguesa ao Brasil em 1808.

De acordo com Renata Tristante e Talita Roim, autoras do artigo “A história da bolsa: sua evolução no contexto histórico da moda feminina”, a primeira bolsa foi provavelmente feita de pele, amarrada a um pau, servindo para carregar alimentos e iscas. “Na civilização primitiva havia alguns registros através de pinturas rupestres com imagens femininas usando a bolsa, que era utilizada de acordo com as necessidades daquela época”, apontam.

Com o passar dos séculos, a moda feminina passou a se preocupar mais com a aparência do que com a funcionalidade. Isso não só fez com que as mulheres usassem mais bolsas, como também as transformou em símbolos de liberdade, mas também da sobrecarga de responsabilidades, especialmente no cuidado do lar e das pessoas.

No século 16, tanto homens como mulheres usavam bolsas, geralmente amarradas na cintura. Elas também revelavam as diferenças entre classes sociais, já que apenas os camponeses usavam bolsas maiores, levadas sobre os ombros ou a tiracolo. Nesse período, as saias se tornaram mais volumosas e então as mulheres também escondiam seus objetos entre as pregas da peça.

No século 17, os homens passaram a ter bolsos costurados em suas roupas, tornando a tarefa de carregar pertences mais prática. Enquanto isso, as mulheres passaram a prender bolsas em formato de pera debaixo do merinaque (saias presas por arcos ou varas flexíveis). Nesse período, esses acessórios eram tanto funcionais quanto limitadores, pois as mulheres precisavam carregar coisas, mas não tinham a liberdade oferecida aos homens.

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Exemplo das bolsas amarradas à cintura no século 16 e 17 © Roger de Gaignières/Domínio Público

Exemplo de bolsa pera, presa embaixo dos merinaques pelas mulheres no século 17 © Heritage Images/ Hulton Fine Art Collection via Getty Images

Merinaque (saia presa por arcos ou varas flexíveis) © Fæ/Wikimedia Commons, André Costa/Wikimedia Commons

Na Europa do século 20, por causa das grandes guerras mundiais, as mulheres começaram a ocupar funções tradicionalmente desempenhadas pelos homens. Isso aconteceu porque muitos deles estavam envolvidos diretamente no conflito e a sociedade precisava que a produção industrial e os serviços continuassem a serem executados.

“Enquanto a mulher é vista como o reflexo do poder aquisitivo de alguém, ela cumpre uma função tão ‘decorativa’ quanto as bolsas. A partir do momento em que assume a posição de ‘agente’, passa a demandar por bolsas que a ajudem a cumprir suas funções”, explica Nádia Matos Cardoso, graduada em Design de Moda pelo Universidade Federal do Ceará, idealizadora da marca Mondero_bags e autora da monografia “O papel social das bolsas femininas – como a bolsa se tornou uma extensão do corpo da mulher”.

Assim, nesse período, a praticidade na hora de se vestir se tornou prioridade e os uniformes de guerra e o vestuário masculino passaram a servir de inspiração para moda feminina. Ivana Guilherme Simili, doutora em História pela pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, aponta que um detalhe surge nas peças: os bolsos “chapados, espaçosos e práticos”.

As bolsas deixaram de ser pequenas e delicadas, pois as mulheres necessitavam que fossem úteis, resistentes e duráveis. Surgiram então as sacolas e bolsas carteiro com alças longas que podiam ser levadas sobre os ombros enquanto pedalavam ou andavam para serviço. Essa transição simbolizou liberdade de movimento e de trabalho, mas também evidenciou o peso das múltiplas responsabilidades assumidas pelas mulheres.

É importante destacar que esses fatos referem-se prioritariamente às mulheres europeias brancas e da elite, pois as mulheres das classes mais baixas sempre enfrentaram jornadas duplas ou triplas dentro e fora de casa, com necessidades e acessos distintos aos itens de moda. No Brasil, as mulheres indígenas e as mulheres negras escravizadas carregavam cestas de vime imensas para transportar cana-de-açúcar e outras cargas, também utilizavam amarrações para levar seus filhos nas costas, por exemplo.

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O quadro "Índia Tupi", pintado por Albert Eckhout em 1641, faz parte de um conjunto de telas sobre os indígenas elaboradas em função de sua estadia no Nordeste do Brasil © Albert Eckhout

Foto tirada em Salvador (BA), em 1884, mostra mulher negra carregando um cesto na cabeça e com seu filho amarrado às costas © Marc Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles

Recorte de foto tirada em 1885 mostra a partida dos escravizados para a colheita de café no Vale do Paraíba do Sul (RJ). Nela, pode-se ver mulheres negras carregando cestos na cabeça e crianças no colo © Marc Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles

Mesmo hoje em dia, as bolsas continuam sendo um reflexo da vida das mulheres, que carregam não apenas objetos, mas também expectativas e responsabilidades que a sociedade coloca sobre elas. O que parece um simples acessório, na verdade, revela muito sobre gênero, trabalho e independência.

Nem tudo que as mulheres carregam cabe dentro de bolsos e bolsas

Talvez você esteja se perguntando: então, se as roupas femininas tivessem bolsos maiores desde sempre, será que hoje em dia as mulheres carregariam menos coisas? A resposta é: provavelmente não.

Mesmo que as peças fossem igualmente funcionais para todos os gêneros, as mulheres ainda carregariam mais coisas do que os homens no dia a dia. Isso acontece porque os itens que elas carregam materializam o peso invisível das responsabilidades impostas pela sociedade, que estão diretamente ligadas à construção histórica dos papéis de gênero.

Como destaca Thamires Ribeiro, mestre e doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), na tese “Cuidar em família: uma análise sobre os significados atribuídos por famílias atendidas no Centro Cultural A História Que Eu Conto/Rio de Janeiro”, as responsabilidades de cuidar da casa e das pessoas foram naturalizadas como tarefas femininas, ligadas a um “saber inato” das mulheres sobre a maternidade e a ideia de ser uma “boa mãe”.

Essa construção cultural afeta o trabalho das mulheres em todas as áreas e a organização de suas rotinas. O trabalho do cuidado envolve desde o transporte de materiais de higiene e itens para crianças até documentos e acessórios pessoais necessários para as demandas do cotidiano.

“Antes de ser mãe, já levava uma vida ativa de trabalho e era apaixonada por bolsas bem elaboradas de forma utilitária. Hoje, após a maternidade, as considero imprescindíveis, pois a carga de responsabilidades que uma mãe precisa lidar reflete exatamente no que ela carrega em sua bolsa”, conta Nádia Matos Cardoso.

O trabalho do cuidado refere-se a todas as atividades realizadas para atender às necessidades físicas, emocionais e sociais de outras pessoas, garantindo seu bem-estar e desenvolvimento. Ele pode incluir tarefas como cuidar de crianças, idosos ou pessoas com deficiência, gerenciar tarefas domésticas (como cozinhar, limpar e organizar), oferecer apoio emocional e manter a saúde e segurança dos membros da família ou da comunidade.

Em 2019, de acordo com o levantamento “Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil”, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres dedicavam quase o dobro de horas por semana aos afazeres domésticos e cuidado de pessoas do que os homens no Brasil. Enquanto eles dedicavam, em média, 11 horas semanais, elas dedicavam 21,4 horas.

Essa divisão de papéis reflete como as mulheres ainda são associadas ao espaço doméstico e aos cuidados familiares, enquanto os homens são mais frequentemente ligados ao trabalho remunerado e ao espaço público. Isso contribui para a isenção dos homens das responsabilidades do cuidado e a desvalorização e invisibilização dessas atividades.

O trabalho de cuidado também inclui a compra dos itens essenciais para o dia a dia. Além de planejar e controlar o abastecimento da casa, isso envolve o esforço físico de carregar as compras do supermercado. Segundo o estudo “Estilos de Vida 2018” da Nielsen, as mulheres são responsáveis por 96% das compras domésticas, gastando cerca de 20% da renda familiar com o abastecimento. Elas também gerenciam a maior parte dos bens de consumo diários, com 81% delas cuidando das compras de alimentos e bebidas.

Desigualdades raciais no trabalho de cuidado

É importante destacar que o trabalho do cuidado também é marcado por desigualdades raciais, o que influencia as cargas físicas e emocionais que as mulheres carregam. A divisão do trabalho gera uma hierarquia entre as próprias mulheres, com o racismo, o sexismo e o patriarcado fazendo com que algumas enfrentem maiores níveis de exploração.

O levantamento do IBGE também mostra que as mulheres negras são as que mais se dedicam aos afazeres domésticos (92,7%), seguidas pelas mulheres pardas (91,9%) e brancas (91,9%). As taxas de participação das mulheres são sempre mais altas do que as dos homens nos mesmos grupos raciais (80,6%, 78% e 80%, respectivamente).

“Para as mulheres negras, há uma consciência da indissociabilidade de cuidado, atividades domésticas e trabalho, pois fazem parte da herança escravocrata alicerçada pelo racismo estrutural engendrada por estruturas de colonialidade que na constituição sócio-histórica brasileira confinaram a população negra desde a diáspora forçada africana na provisão deste trabalho”​, explica Thamires Ribeiro na tese “Mulheres negras na encruzilhada do cuidado: estudo sobre trabalho de cuidado e doméstico não remunerado”.

Além de realizarem o trabalho de cuidado em seus próprios lares, muitas também se dedicam a atividades em casas de terceiros, recebendo salários baixos e enfrentando condições informais de trabalho. Segundo dados de 2022 do Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas (Dieese), as mulheres representam 92% dos trabalhadores domésticos no Brasil, sendo 65% negras. A maioria dessas profissionais tem mais de 40 anos e uma renda média inferior a um salário mínimo.

O que as mulheres racializadas carregam vai muito além do peso físico das bolsas e sacolas – elas sustentam, historicamente, o trabalho de cuidado que mantém a sociedade funcionando, muitas vezes sem reconhecimento ou direitos garantidos.

A herança escravocrata ainda se reflete na precarização dessas funções e na falta de oportunidades para que essas mulheres ocupem outros espaços. Enquanto o racismo estrutural continuar determinando quem cuida e quem é cuidado, o peso dessas desigualdades seguirá sendo carregado, invisibilizado e naturalizado no dia a dia.