O Nós, mulheres da periferia investiga a relação de mulheres periféricas com jogos de apostas e de azar online, contextualiza o atual cenário de usuários e gastos nessas plataformas e discute a regulamentação do setor
Reportagem: Beatriz de Oliveira
Edição: Karoline Miranda
Atualizado em 01|11|2024
Patrícia* baixou o primeiro jogo de azar no celular por curiosidade, seguindo a recomendação de uma cliente. No jogo que simulava um caça níquel, a representante de vendas colocou R$10 e ganhou R$30. A cearense de Maracanaú (CE) não sabia, mas naquele dia dava início a uma reviravolta em sua vida, que culminaria em vício, dívidas e afastamento de familiares e amigos.
Esta é a primeira da série de reportagens “Entre bets e perdas: o cenário de jogos de apostas e azar no país”. Neste especial, o Nós, mulheres da periferia investiga a relação de mulheres periféricas com jogos de apostas e de azar online, contextualiza o atual cenário de usuários e gastos nessas plataformas, discute a regulamentação do setor, os impactos na saúde mental e o papel da publicidade nesse meio.
Depois de um mês do primeiro jogo, Patrícia passou a acessar a plataforma diariamente. Em um desses dias, ela apostou R$50 e conseguiu o ganho de R$9 mil. A partir daí, a frequência aumentou, e ela chegou a jogar até enquanto dirigia.
“No início, foi uma questão de ser uma grana fácil, mas a partir dos meses veio aquela adrenalina, aquela vontade de jogar. Não era só por ganhar, mas pelo prazer de entrar [no jogo]. Eu ficava fascinada quando ganhava e muito chateada quando perdia. Quando eu perdia, a minha vontade era de pegar mais valores para jogar e recuperar aquilo que tinha perdido. Era uma adrenalina muito grande”, relata.
“No início, foi uma questão de ser uma grana fácil, mas a partir dos meses veio aquela adrenalina, aquela vontade de jogar”
Patrícia
Para sustentar o vício no jogo, Patrícia contraiu dívidas em cartões de crédito, fez empréstimos bancários e pediu dinheiro emprestado a amigos e familiares. Quando o salário já não dava mais para arcar com as dívidas, a cearense entrou em desespero e tentou o suicídio.
Nesse ponto, seu comportamento também havia mudado: se tornou uma pessoa mais irritada e ansiosa e já não comparecia a encontros com familiares e amigos, pois preferia ficar em casa jogando.
Depois de três anos jogando, Patrícia decidiu conversar com a mãe e o irmão sobre sua situação e encontrou neles o apoio para lutar contra o vício. No dia em que conversamos com a cearense, ela já não jogava há três meses.
“Os primeiros dias foram bem complicados. Chegavam mensagens diariamente com bônus chamando para jogar”, lembra.
Como parte da sua jornada contra o vício, Patrícia participa de reuniões dos Jogadores Anônimos (JA), uma irmandade em que pessoas que desejam parar de jogar compartilham suas experiências e seguem um programa de recuperação composto por 12 passos. “Lá eu consigo me fortalecer junto com outros irmãos que estão passando pelo mesmo problema”, conta.
“Eu tinha uma compulsão tão grande por jogar que hoje eu me pergunto como cheguei naquele lugar. Mas o que eu posso falar para pessoas que conhecem alguém que joga é que não julgue, mas ajude aquela pessoa a procurar um socorro, indicar algum lugar de tratamento”, pontua.
Experiências de mulheres periféricas com jogos de azar resultam em dívidas e isolamento
©Gabi Lucena @gabizlucena
Segundo pesquisa do Instituto Locomotiva, 62% dos brasileiros que começaram a fazer apostas no primeiro semestre deste ano são mulheres. O levantamento mostrou ainda que 37% dos jogadores afirmam que já usaram dinheiro destinado a outros compromissos para apostar online e 53% afirmam que ganhar dinheiro é a principal razão para realizar as apostas. Além disso, a maioria das pessoas que fazem apostas esportivas online são das classes C, D e E; e na faixa etária de 30 a 49 anos.
Para Lucilene Morandi, professora de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Economia (NPGE), “esses dados mostram um certo desespero, uma conta que não fecha entre gastos e renda”.
“Uma das coisas importantes que a gente tem que pensar é que a inflação de 2018 a 2024 é maior do que a correção da renda. Outra questão importante no mercado de trabalho é a grande informalidade”, explica Lucilene, acrescentando que há “uma desigualdade social e econômica muito grave, então muitas pessoas estão desiludidas com a economia, com a possibilidade de ter um espaço no mercado de trabalho e com a possibilidade de melhoria de vida”, diz.
Diante de tamanha desilusão, os jogos de azar e de apostas, se apresentam como uma forma de ganhar “dinheiro fácil”. O sucesso dessas plataforma se evidencia em seus lucros: entre julho de 2023 e junho de 2024, apostadores enviaram R$68,2 bilhões às bets e outros sites de jogos e apostas, ao passo que conseguiram sacar R$44,3 bilhões, segundo pesquisa do banco Itaú.
Em 2018, o governo de Michel Temer permitiu a existência das apostas de quota fixa de eventos esportivos, modalidade em que o jogador sabe quanto poderá ganhar caso acerte a sua aposta. A partir disso, houve o crescimento das bets, casas de apostas esportivas online, mas também de plataformas oferecendo jogos de azar – sem relação com esportes. Jogos como Fortune Tiger (jogo do tigrinho) viraram uma febre no país e, apesar de proibidos, são facilmente encontrados em sites e aplicativos de apostas.
“Os jogos de azar não dependem de estudo e análise, é meramente um jogo de sorte ou azar, depende exclusivamente da sua sorte. Entre os jogos de azar, há tudo que tem dentro de um cassino: roleta, máquina caça níquel, cartas. E o jogo do tigrinho entra nesse conceito”, afirma Gisele Truzzi, advogada especialista em Direito Digital e fundadora da Gisele Truzzi Tech Legal Advisory. Os jogos de azar são considerados contravenção penal, conforme o artigo 50 da Lei de Contravenções Penais.
No entanto, uma portaria publicada em 31 de julho pelo Ministério da Fazenda definiu regras para caça-níqueis (slots), jogos de colisão (crash), roletas, blackjack, dados e outras modalidades de apostas online. Atualmente, esses jogos são oferecidos de forma ilegal em sites sediados no exterior; com as novas regras, poderão ser ofertados em plataformas brasileiras a partir de 2025.
Em 2023, o governo Lula começou a regulamentar as apostas esportivas online com a sanção da Lei 14.790. Desde então, foi criada também a Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA-MF) e publicadas portarias com regras relacionadas às apostas de quota fixa. As portarias definem questões como a prevenção a lavagem de dinheiro, formas de pagamento e regras para publicidade.
Mas, segundo a advogada especialista em Direito Digital e crimes cibernéticos Claudia Bonnard, ainda há muito o que se avançar na regulamentação e na fiscalização do cumprimento das regras. “A lei diz que a empresa de apostas tem que estar vinculada ao órgão de controle de publicidade, mas não descreve de que forma esse controle vai ser feito”, exemplifica.
De modo geral, a regulamentação permite o recolhimento de impostos das casas de apostas, o que não ocorria antes. “Esse tema impacta o Brasil na questão tributária, impacta o cenário econômico das pessoas que jogam. Temos um impacto socioeconômico no entorno, então a família passa a ter problemas financeiros”, afirma Gisele Truzzi.
Em Sorocaba (SP), a doceira Sonia Regina é uma das pessoas que sofreu os impactos financeiros e emocionais dos jogos de apostas e de azar, mesmo sem nunca ter entrado numa plataforma do tipo. Seu filho se viciou nesses jogos, contraiu muitas dívidas e chegou a ser internado numa clínica de reabilitação.
O homem de 30 anos começou apostando nas bets, a partir de partidas de futebol, mas logo avançou para os jogos de azar na plataforma Blaze. O vício escalou rápido: ele usava o dinheiro que recebia vendendo jóias de prata nos jogos, pediu dinheiro emprestado a amigos, contraiu dívidas com agiotas e precisou vender o carro, a moto e o apartamento que havia financiado.
No início, apenas Sonia Regina sabia do problema do filho. “Foi desesperador, chegou uma hora em que eu não conseguia mais suportar tudo aquilo sozinha, de ver o sofrimento do meu filho. Quando dava crise nele, ele me falava ‘mãe, pelo amor de Deus me empresta [dinheiro para jogar]’”, relata a Sonia Regina.
Depois de compartilhar a situação com o marido e com um amigo do filho, Sonia Regina teve mais forças para enfrentar a situação. O filho chegou a tentar parar sozinho algumas vezes, mas teve recaídas. Na última vez, aceitou ser internado numa clínica de reabilitação. Desde então, não jogou mais e tem apresentado melhoras, mas a mãe teme pelo momento em que ele volte a ter um celular — a porta de entrada para acessar os jogos.
A doceira relata que a família buscou negociar as dívidas contraídas e tem pagado aos poucos. Mas a relação com as pessoas mudou muito. “As pessoas julgam muito, não só quem vicia, mas a família também. Se afastam da gente”, relata.
“As pessoas julgam muito, não só quem vicia, mas a família também. Se afastam da gente”
Sonia Regina
Os impactos não foram apenas financeiros, mas também emocionais. “Eu choro todos os dias, durmo chorando e acordo chorando. Eu rezo muito e peço a Deus que realmente ele nunca mais volte a jogar. A gente sofre muito, tem dias que eu não consigo fazer nada. Eu me sinto muito sozinha”, afirma.
Apesar disso, Sonia faz um apelo: “eu peço que as pessoas não julguem as pessoas [viciadas] e suas famílias. Isso não é brincadeira, é uma doença. A pessoa não entra no jogo para querer se viciar. Não dê as costas, eu vejo relatos de pessoas que falam que o filho não quis mais saber ou que a esposa abandonou. Por favor, vocês têm que ajudar essas pessoas, não abandonem”.
Caso você ou algum conhecido tenha problemas com jogos de azar e apostas online, procure ajuda gratuita em algum desses locais:
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS): são lugares onde oferecem serviços de saúde abertos para a comunidade; procure a unidade mais próxima de sua moradia.
Jogadores Anônimos: irmandade que segue um programa de 12 passos para ludopatas, há reuniões online e presenciais em várias cidades; basta entrar em contato com os números disponíveis no site para ser atendido e direcionado para um grupo de reuniões.
Pro-Amiti: ambulatório do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo responsável por desenvolver estudos e tratamentos para quem apresenta transtornos do jogo; atende apenas em São Paulo (SP).
Centro de Valorização da Vida (CVV): oferece apoio emocional pelo telefone 188, chat e e-mail.
* Alteramos o nome da entrevistada para preservar sua identidade