barraca no centro de SP

Como deve ser feito o acolhimento de crianças em situação de rua?

Advogada analisa políticas públicas voltadas para crianças e adolescentes em situação de rua

Por Beatriz de Oliveira

15|10|2024

Alterado em 15|10|2024

Em 2022, na cidade de São Paulo (SP), pouco mais de 3700 crianças e adolescentes estavam em situação de rua; 78% delas eram negras, conforme aponta o Censo amostral de Crianças e Adolescentes em Situação de Rua. Entre os direitos violados a essa população, há o direito a uma vida digna e livre de violências, opressões e negligências, a uma moradia digna e segura, à alimentação de qualidade e à educação.

É o que aponta Mariana Albuquerque Zan, graduada e mestra pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto/USP, advogada no Instituto Alana e membra voluntária do Projeto “Política Pública para crianças e adolescentes em situação de Ribeirão Preto/SP”.

mulher sorrindo

Mariana Albuquerque Zan é graduada e mestra pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto/USP

©arquivo pessoal

Mariana explica que grupos de crianças e adolescentes em situação de rua não têm, necessariamente, ruptura dos vínculos familiares; por isso, o acolhimento desses grupos deve implicar também na garantia de direitos das famílias.

A advogada alerta que a falta de dados sobre esse cenário e a visão que parte da sociedade tem desses grupos como “criminosos” dificultam a criação e implementação de políticas públicas de acolhimento.

Confira a entrevista completa.

Nós, mulheres da periferia: O que podemos entender pelo termo “crianças em situação de rua”?

Mariana Albuquerque Zan: Essa denominação caracteriza-se por ser, atualmente, a mais utilizada para a designação de grupos de crianças e adolescentes que, de alguma maneira, têm a rua como seu referencial. Importante ressaltar que a ida para as ruas não implica necessariamente na ruptura dos vínculos familiares: crianças e adolescentes que ainda permanecem com alguns vínculos passam a integrar uma zona de vulnerabilidade, ao passo que o afrouxamento desses vínculos, seu futuro rompimento e o estreitamento com a vivência de rua podem culminar na desfiliação e fixação na rua enquanto ambiente definitivo de suas atividades e moradia.

Essa denominação escolhida, além de ser atualmente a mais adotada, abarca um amplo espectro de possibilidades, meios e sentidos do “estar na rua”. Além disso, a expressão “situação de rua” enfraquece a ideia predominante e pejorativa dada ao termo “de rua” e evidencia as potencialidades de mudanças nos estilos de vida das crianças e adolescentes, não lhes negando o papel ativo em suas próprias vidas, ao tempo em que também os coloca enquanto um grupo titular de direitos.

Nós: Qual o atual cenário vivido no Brasil em relação a crianças em situação de rua? O assunto é priorizado pelo poder público?

Mariana Albuquerque Zan: Além do arcabouço normativo relativo à garantia de direitos de crianças e adolescentes, tais como a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) — que trazem a prioridade absoluta de direitos de crianças e adolescentes, bem como a responsabilidade compartilhada entre Estado, famílias e sociedade na garantia desses direitos —, em se tratando de crianças e adolescentes em situação de rua há as Diretrizes nacionais para o atendimento a crianças e adolescentes em situação de rua (2017), que foram formuladas a partir das especificidades do atendimento para esse grupo.

A despeito dos avanços e ganhos normativos em relação aos direitos de crianças e adolescentes, sobre a priorização deste grupo pelo poder público, ainda há o que conquistar. Apesar de, ao longo dos anos, este grupo ter alcançado maior visibilidade a partir da necessidade da garantia de direitos (e não enquanto necessidade de intervenção repressiva e higienista do poder público), há ainda uma série de lacunas e ausências na agenda pública, dentre as quais podem ser citadas:

A ausência de dados sobre crianças e adolescentes em situação de rua atualmente no Brasil: há estimativas, mas não dados colhidos e sistematizados capazes de orientar políticas públicas, o que dificulta na própria elaboração e implementação de políticas. 

Não há uma priorização da temática nas agendas e pastas políticas (embora o artigo 227 da Constituição Federal determine que os direitos de crianças e adolescentes devem ser garantidos com prioridade absoluta, eles ainda têm seus direitos constantemente violados);

Crianças e adolescentes em situação de rua ainda são vistos como criminosos, sujeitos sem identidade e alvos de políticas de caráter repressivo, (deve-se considerar ainda o recorte racial, de gênero, classe social e territorial dessas crianças e adolescentes, o que impacta ainda mais nas desigualdades e violações sofridas).

Prevalece ainda na sociedade uma forte visão culpabilizadora das famílias, desconsiderando as profundas desigualdades socioeconômicas que atravessam a vida de inúmeras famílias brasileiras. Essa percepção retira o dever de toda a sociedade e do Estado em prevenir as violências contra crianças e adolescentes em situação de rua e garantir os direitos deste grupo.

Nós: Na prática, por quais violações de direitos as crianças em situação de rua passam?

Mariana Albuquerque Zan: O grupo de crianças e adolescentes, na prática, tem uma série de direitos sistematicamente violados, como por exemplo: direito a uma vida digna e livre de violências, opressões e negligências, uma moradia digna e segura,alimentação de qualidade e educação, devendo ser garantidas matrículas e o acesso ao ambiente escolar, de forma que burocracias, como entrega de comprovante de endereço, não impeçam a efetivação do direito. Além disso, há o direito à saúde, devendo ser garantidas consultas médicas e odontológicas, vacinas e atendimento adequado às demandas específicas do grupo.

Nós: Quais são os serviços e políticas públicas de acolhimento de crianças em situação de rua existentes hoje? Eles se demonstraram eficientes?

Mariana Albuquerque Zan: É importante ressaltar a intersetorialidade como um fundamento e diretrizes para tais políticas. Isso porque, tendo em vista toda a complexidade que envolve a situação de rua, as peculiaridades de crianças e adolescentes (sujeitos de direitos que estão em um estágio de desenvolvimento), os riscos de uma política para esse público ter caráter repressivo e higienista e não garantidor de direitos, é fundamental que, ao se elaborar e implementar políticas públicas para essa população, tenha-se em conta que um único setor ou instituição não consegue garantir direitos, prevenir violências e exposição a riscos.

Os serviços e as políticas públicas de acolhimento não são as mesmas em todas as cidades. A exemplo da cidade de São Paulo, podem ser citados os Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP), que, ainda que sejam voltados ao atendimento da população adulta em situação de rua, em algumas localidades, tem realizado o atendimento do grupo infanto-juvenil.

Além disso, sobre acolhimento institucional, há o Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes (SAICA), que tem por objetivo o acolhimento provisório e excepcional de crianças e adolescentes que estejam em situação de risco pessoal e/ou social e com medidas de proteção, cujas famílias ou responsáveis encontrem-se temporariamente impossibilitados de cumprir sua função de cuidado e proteção.

A nível nacional, há obstáculos para a efetivação da Política Nacional para a População em Situação de Rua. No final de 2023, foi lançado o programa Plano Ruas Visíveis, em uma resposta à decisão do Supremo Tribunal Federal, em sede de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 976, que consiste em investimentos para que os ministérios implementem a política. Ainda que não tenha o recorte específico para crianças e adolescentes em situação de rua, trata-se de medida importante para a pauta e garantia dos direitos de pessoas em situação de rua.

Nós: Como devem ser realizados os processos de acolhimento de crianças em situação de rua de modo a conseguir resultados mais eficazes e garantir direitos dessa população?

Mariana Albuquerque Zan: Para além da intersetorialidade enquanto um fundamento para as políticas públicas para crianças e adolescentes em situação de rua, é importante que seja garantido o acesso à justiça para essa população, de modo que suas demandas, opiniões e particularidades sejam ouvidas e respeitadas. Também é importante garantir o direito à vida digna, à moradia, à saúde, à alimentação, à educação àquelas pessoas que exercem o cuidado para com crianças e adolescentes (mães, pais, responsáveis).

Em relação ao acolhimento, a Lei nº 17.923/23, do Município de São Paulo, que institui a Política Municipal de Atenção Integral a Crianças e Adolescentes em Situação de Rua e na Rua, determina, em seu artigo 11, que “o acolhimento de crianças e adolescentes em situação de rua deverá considerar as especificidades da condição e trajetória de vida de cada usuário no atendimento ofertado, podendo ocorrer em distintas tipologias e modalidades de serviço, conforme avaliação de fatores relacionados à situação de cada criança e adolescente”.E ainda, nos §1º e §2º, estabelece que o acolhimento não se dará em espaços de segregação e isolamento, mas sim de proteção social e garantia de direitos, devendo assegurar o atendimento individual e personalizado, com criação gradual de vínculos de confiança e escuta qualificada e sensível, com uma atitude de compreensão em relação a eventual instabilidade no início do acolhimento e que os serviços de acolhimento devem favorecer o restabelecimento dos vínculos familiares sempre que possível, realizando trabalho social com as famílias das crianças e adolescentes, e promover o desenvolvimento da autonomia dos acolhidos, com a preparação gradativa para o retorno para suas comunidades de origem e/ou para a vida adulta.