Erês e vunjis, crianças de terreiro: como combater o racismo religioso desde a primeira infância
Bahia e Sergipe desenvolvem ações a partir das casas de axé para combater o racismo religioso já na primeira infância
Por Redação
29|08|2024
Alterado em 31|08|2024
Reportagem: Brenda Gomes, Djína Torres e Luiza Cazumbá
Em qualquer espaço religioso, independente da religião, é comum a presença das crianças. Sejam elas levadas pelos pais, avós, responsáveis, elas sempre estão ali, fazendo das celebrações uma grande festa. Com as religiões de matriz africana isso não é diferente.
Em Salvador (BA), Ludmila Borges, mãe de Ayodele, de oito meses, frequentadora do Ilê Axé Ayê Ojionilê, explica que incluir as crianças nesses espaços é uma forma de fortalecer a conexão com suas raízes e garantir que, desde cedo, ela seja envolvida na riqueza cultural e espiritual de sua tradição. “Acreditamos muito que se a religião é boa para os pais, ela também é boa para os filhos. Vemos muitas crianças de pais cristãos se tornando cristãs, então por que no candomblé isso teria que ser diferente? Não estamos impondo nossa crença a ela, mas repassando o que acreditamos, porque é nossa responsabilidade fazer isso.”
Ludmila ainda ressalta que as vivências dentro dos terreiros ajudam a desenvolver uma consciência crítica desde cedo, tornando as crianças mais preparadas para reconhecer e combater o racismo em suas diversas formas. “A religião, além de criar a crença em Deus, independente do título que esse Deus receba, traz também a formação de valores morais, éticos, e principalmente de respeito e amor ao próximo. Dentro do axé, cultivamos esses valores na vivência e na prática diária do culto, diretamente com os próprios encantados”, explica.
O cozinheiro e nutricionista Samuel Benson, abian no Abassá Axé Ilê Pilão de Oxaguian, em Aracaju (SE), ele relata que um dos maiores desafios de incluir o filho Miguel, de três anos, na vivência dentro das religiões de matriz africana é o rompimento com as tradições cristãs dos familiares. “Eu e minha esposa optamos por não batizar nosso filho na igreja católica, fizemos as bênçãos dele no candomblé e, em seguida, ele tomou um bori e segue nos cuidados no candomblé, até porque é a nossa religião”, pontuou.
Ele também fala sobre as dificuldades de encontrar uma escola que acolha e valorize a diversidade religiosa. “Não acredito que as escolas sejam um espaço onde vão acolher diversidades. Eu sinto falta de trazer a temática, de trazer outras religiões, não só o catolicismo. Eu já vi atividades onde se fala muito de Deus, da Bíblia, mas eu não vi nada das religiões afro-brasileiras”, lamenta Samuel.
O chão de terreiro e a educação infantil
Plantinhas, animais de estimação, instrumentos musicais, brinquedos, crianças e muitos, muitos livros. Quem adentra a sede da Associação Cultural Tupã Suriazala, localizada no município de Lauro de Freitas (BA), encontra, além de um espaço religioso, um ambiente repleto de vida e aprendizagem, onde a conexão com a natureza e os elementos culturais afro-brasileiros são parte essencial do cotidiano. Neste espaço, a educação infantil vai além do currículo convencional, incorporando ensinamentos das tradições de terreiro para promover uma infância antirracista.
Dentro do Tupã, encontra-se também a Biblioteca Mameto Mataracira, iniciativa onde são desenvolvidas atividades de leitura, contação de histórias, cinema e teatro para crianças da comunidade religiosa e local. A biblioteca, serve como um espaço acolhedor e de aprendizado contínuo e tornou-se um ponto de referência para a disseminação da cultura afro-brasileira e a promoção da diversidade desde cedo.
À frente do Tupã e da biblioteca, a gastrônoma e mãe de santo Laura Borges destaca que o projeto atua não somente no acesso à literatura, mas também como uma ferramenta de fortalecimento identitário para as crianças. “Aqui, as crianças têm a oportunidade de aprender sobre suas raízes, de forma lúdica e respeitosa. Queremos que elas cresçam sabendo que suas origens são motivo de orgulho e que o conhecimento ancestral é valioso,” explica Laura.
Laura também ressalta a relevância da biblioteca no fortalecimento da identidade das crianças negras, tanto as que fazem parte do terreiro quanto as que não fazem. “A biblioteca combate à intolerância religiosa desde a primeira infância, promovendo o autoconhecimento e a valorização dos ancestrais. Mostramos às crianças que suas avós e bisas eram pessoas importantes e fortalecemos a compreensão de quem veio antes de nós,” destaca Laura.
Ela ainda menciona a importância dos contos infantis sobre os Nkisis, apresentados de forma lúdica e divertida, como uma maneira de acabar com o processo de demonização dos terreiros e suas tradições. Além disso, a biblioteca recebe visitas agendadas para escolas e as crianças têm a oportunidade de explorar o Cine Biblioteca Mataracira, assistir a filmes, participar de atividades recreativas e ouvir histórias contadas oralmente.
Samara Castro, assessora de comunicação e mãe de Imhotep Castro, de cinco anos, valoriza o impacto da iniciativa na vida de seu filho e de outras crianças da comunidade. “Em um mundo onde a escrita historicamente foi usada como uma ferramenta de opressão, espaços como este nos permitem reconquistar e afirmar nossas próprias narrativas. Aqui, nossas crianças têm a oportunidade de se conectar com uma literatura que reflete suas realidades e fortalece suas identidades em desenvolvimento”, afirma a moradora do Alto de Ondina, região periférica de Salvador (BA).
Samara e Ynhotep.
©Arquivo Pessoal
Ela expressa com entusiasmo a alegria e o significado de ver seu filho engajado nessas atividades. “Para mim, como mãe, é uma alegria imensa ver meu filho participando de atividades que celebram nossa cultura e nossa história. A Biblioteca Mameto Mataracira proporciona algo essencial: o empoderamento de nossas crianças por meio do conhecimento de suas raízes. Esse processo não apenas contribui para o desenvolvimento individual das crianças, mas também fortalece nossa comunidade, formando uma geração que se orgulha de sua identidade e origem.”
O projeto Casa de Mar vai à Escola, criado em 2019 pela Ong Casa de Mar, vinculada ao Ilé Àṣẹ Ìyá Àgbá L’odò Omiró, também realiza ações para promover debates sobre a história e a cultura negra e indígena no ambiente escolar, sobretudo na educação infantil, na Bahia e em Sergipe.
A iniciativa surgiu a partir da sugestão da diretora da Escola Municipal de Ensino Fundamental Florentino Menezes, em Aracaju (SE), para estruturar um projeto de combate ao racismo na escola. Desde então, o “Casa de Mar vai à escola” desenvolve palestras, oficinas e projetos pedagógicos em diversas escolas públicas para estudantes e professores, com foco na valorização das raízes africanas e indígenas e no combate à discriminação racial.
Liliane Santana, professora de Sociologia da Rede de Ensino Estadual da Bahia, enfatiza a relevância desse trabalho: “Foi extremamente gratificante para nós poder compartilhar nosso conhecimento com os alunos nas escolas e observar o fascínio em seus olhinhos. Muitas crianças na própria comunidade têm raízes no axé, mas enfrentam dificuldades para expressar isso no ambiente escolar devido ao racismo e intolerância. Quando vamos até elas e discutimos essas questões, começamos a desmistificar e educar.”
Mario Omar, contador de histórias da tradição oral afro-brasileira, é um dos apoiadores da Biblioteca Mataracira. Ele destaca que a literatura oral desempenha um papel fundamental no combate ao racismo desde a infância, promovendo uma compreensão mais profunda e positiva das próprias raízes culturais.
“A literatura é capaz de proporcionar a crianças negras e não negras referenciais positivos acerca de negritude, fortalecendo o processo de construção de identidades que respeite e valorize a diversidade étnico-racial. A literatura oral na primeira infância é o caminho mais profundo para mobilizar a educação de crianças negras e causar um impacto social capaz de estabelecer a harmonia na sociedade.”
A primeira infância é a fase que compreende os seis primeiros anos de vida da criança. Essa etapa é fundamental para o desenvolvimento físico, cognitivo, motor e socioemocional. Ou seja, esse período é crucial para o amadurecimento do cérebro e a aquisição dos movimentos. As experiências adquiridas nesse período, terão impacto por toda a vida.
Uma lei ignorada
Os últimos vinte anos trouxeram mudanças significativas para a educação pública brasileira. A lei 10.639/03, promulgada em 2003, traz a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Africana” em todas as escolas, sendo elas públicas ou particulares, desde educação infantil até o ensino médio. No entanto, os processos de ensino-aprendizagem geraram questionamentos entre profissionais da educação e ativistas dos movimentos negro e indígena, a partir da introdução de novos conteúdos de caráter étnico-racial nos currículos.
Débora Campelo, pedagoga do Projeto Ayomide Odara, ligado ao Odara – Instituto da Mulher Negra, que atua na formação política de meninas negras na Bahia, ressalta que é crucial compreender que a lei vai além do ensino de aspectos religiosos da população negra. “É através da Lei 10.639 que podemos visibilizar as histórias de nossos antepassados em África e os diaspóricos, para que possamos entender que dá para se trabalhar as questões raciais, sem necessariamente partir do racismo, mas, a partir da história de um povo que criou a filosofia, astronomia, matemática, entre outros e que faz parte ativa do processo de construção e reconstrução da nossa cultura em todos os âmbitos.”
Segundo Yérsia Assis, professora doutora em Antropologia da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), em um país como o Brasil, onde as questões raciais historicamente enfrentam resistência para serem devidamente abordadas no ambiente escolar, as mudanças sociais inevitavelmente exigem ajustes na educação. “Sempre houve um entrave significativo em relação aos conteúdos que deveriam ser trazidos para a sala de aula,” observa.
Yérsia é uma das pesquisadoras responsáveis pela criação do portal Kizomba dos Saberes, uma ferramenta educacional que oferece aos professores da educação básica recursos para ensinar a cultura afro-sergipana de forma qualificada e lúdica, valorizando as manifestações simbólicas e históricas dos africanos e seus descendentes em Sergipe. Ela destaca que é fundamental que os educadores compreendam a importância da herança histórica e cultural do nosso país. Para isso, é necessário construir uma prática pedagógica que amplie a produção de pesquisas sobre o tema, para além do documento “Pluralidade Cultural” dos Parâmetros Curriculares Nacionais.
“Isso significa compreender como a população negra – crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos – constrói, vive e reinventa suas tradições culturais de matriz africana na vida cotidiana. Educadores e pesquisadores devem estar atentos para essa realidade discriminatória, sobretudo na primeira infância, onde se dá o primeiro contato da criança com a educação formal e a sua formação social”, destaca Yérsia.
Educação infantil e o poder público
De acordo com Analice Alves Marinho, coordenadora da Coordenadoria de Políticas Educacionais para a Diversidade (Coped) da Secretaria Municipal da Educação de Aracaju (Semed), todas as escolas da rede municipal de educação realizam, ao longo do ano, práticas pedagógicas antirracistas. O projeto “Ilé-Iwé: Formação Continuada em Educação das Relações Étnico Raciais”, por exemplo, faz parte das ações propostas pelo “Programa Aracaju sem Racismo” e inclui encontros presenciais, realizados entre os meses de agosto e dezembro, contemplando oficinas específicas para professores atuantes na Educação Infantil, Ensino Fundamental e Educação de Jovens e Adultos.
Segundo Alessandra Santos da Graça, professora da rede municipal de ensino de Aracaju, apesar dos projetos realizados pela Secretaria de Educação, as práticas pedagógicas do cotidiano escolar ainda são insuficientes em relação às orientações e práticas de enfrentamento ao racismo, sobretudo na educação infantil.
“Ainda temos um currículo eurocêntrico e não temos formação continuada para professores. Da educação infantil ao ensino médio, as atividades, de maneira geral, ainda estão pautadas dentro dessa perspectiva. E é justamente na primeira infância e na escola que as crianças pretas se percebem no lugar de inferioridade. Por isso é tão importante que se efetive de fato a educação antirracista desde o primeiro momento”, pontua Alessandra.
A docente ressalta, que diante da ausência de um currículo que aborde de maneira direta a premissa antirracista, os projetos educacionais que surgem ao longo do ano são cruciaiss para implementar a educação antirracista em sala de aula. “Quanto mais cedo você mostrar que há outra história, outra cultura, que há religiões diferentes daquelas que a escola ainda determina para elas, estamos aproximando essas crianças das tecnologias do terreiro, ao mesmo tempo em que as conectamos com a história dos seus ancestrais”.
Para Luana Barroso, mulher preta, yawó de Xangô e psicóloga clínica, uma das soluções para ajudar a criar um ambiente escolar onde todas as crenças são respeitadas e valorizadas, é oferecer ferramentas e estratégias educacionais, disponibilizando suporte psicológico, promovendo políticas antirracistas, mediação de conflitos e diálogos que fomentem a compreensão, o respeito e a inclusão desses estudantes.
“A melhor abordagem é uma educação laica, plural e inclusiva, onde o ensino religioso seja abordado de maneira não confessional, respeitando a diversidade de crenças dos alunos, em consonância com os princípios da laicidade do Estado e promovendo os direitos humanos. A escola deve ser um espaço de respeito à diversidade, de promoção do bem-estar de todos os estudantes, independente de suas crenças religiosas”, conclui.
Glossário
Abian: O termo abian é uma junção de palavras que significa “aquele que começa um novo caminho”. No candomblé, o abian representa uma pessoa que recentemente entrou para a religião e ainda é considerada um novato, também chamado de filho de santo.
Bori : Bori é um ritual nas religiões de matrizes africanas, que consiste em oferecer comidas à cabeça, ou Orí, significa alimentar a sua cabeça ou o seu Orí.
Erês: Os erês aparecem como divindades infantis responsáveis pela ligação entre a pessoa e o seu orixá.
Ilê: Significa casa ou terreiro de Candomblé.
Nkisis: No rito Congo-Angola é o que se assemelha aos orixás.
Vunjis: Semelhante aos Erês, representam os Ibejis, que são divindades crianças, gêmeas.
Yawó : Palavra usada no Candomblé para se referir a um filho de santo que já passou pela iniciação, também conhecida como “feitura de santo”.
Esta reportagem integra o edital para a Bolsa de reportagem “O papel do jornalismo antirracista na proteção de crianças negras e periféricas, ação do Nós, mulheres da periferia, em parceria com Marco Zero Conteúdo e Alma Preta Jornalismo – apoiada pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal