Quando o cissexismo violenta mulheres cis

O cissexismo não é tóxico apenas para pessoas trans

16|08|2024

- Alterado em 16|08|2024

Por Victória Dandara

Audre Lorde já nos ensinava que não é possível sermos livres enquanto outras mulheres não o forem, mesmo que tenhamos amarras diferentes. Penso que os casos cada vez mais recorrentes de mulheres cisgênero atacadas por não perfomarem padrões de feminilidade e, num olhar cissexista, “parecerem trans”, ilustra muito bem essa ideia.

Nas Olimpíadas de Paris 2024, tivemos a grande discussão sobre a boxeadora argelina Imane Khelif, que foi vítima nas redes sociais de uma onda de ataques transfóbicos. Por não se adequar a padrões de feminilidade, muitos internautas acreditaram que Imane era uma mulher transexual (o que ela não é), destilando ofensas gratuitas em suas redes sociais em decorrência disso. Afinal, que direito tem uma pessoa trans de praticar esportes?

Este não é um caso isolado. Em dezembro do ano passado, no Brasil, uma mulher cis foi agredida ao sair do banheiro feminino de um restaurante. Confundida com uma pessoa trans, o agressor perguntou se ela era “homem ou mulher” e em seguida lhe desferiu um soco no rosto. Afinal, que direito tem uma travesti de usar o banheiro no espaço público?

Episódios como os que relatei acima acontecem diariamente no Brasil e no mundo. Somos preteridos e preteridas de todos os campos de socialização, empurrados e empurradas dia após dia para as margens da sociedade. No entanto, e quando esse poder que supostamente protegeria pessoas cisgênero também as condena?

Sombra de uma pessoa de óculos à frente de uma bandeira trans

A violência contra pessoas trans afeta também pessoas cis

©Leonardo Munoz/AFP

O cissexismo é uma ferramenta de categorização dos corpos e organização da sociedade, impondo padrões de gênero e comportamentos. Pra simplificar: nasceu com “piupiu”, vai ser homem, macho, hétero, de preferência namorador e provedor da família. Nasceu com “pepeca”, daí vai ser mulher, cuidar da casa, casar com seu bom varão, ter muitos filhos e ser o mais feminina possível. Esses são os caminhos programados pelo cissexismo na sociedade em que vivemos. É isso que legitima o poder do homem sobre a mulher, por exemplo, pois partimos da ideia de que essas categorias são naturais, universais, biológicas e inevitáveis.

No entanto, e as mulheres que não desejam performar essa norma imposta? Ou as bichas pintosas que tampouco buscam ser “o machão”? É aí que temos (mais) problemas. A transfobia e o cissexismo vão aniquilar corpos trans simplesmente por existirem e andarem sob a luz do sol (não à toa tivemos operações institucionais de aprisionamento e extermínio de travestis no Brasil). Porém, não vamos pensar que pessoas cis estão seguras nessa kizumba.

Muito pelo contrário! Toda essa turma que não se vê representada nos padrões hegemônicos da cisgeneridade corre perigo. A partir do momento que desejamos regular quem pode ou não ser mulher, quem pode ou não praticar esportes, quem pode ou não usar banheiros, criamos precedentes perigosíssimos. Qual será o próximo passo? Mulheres cis vão passar por inspeções em seus corpos para garantir que são “mulheres com M maiúsculo”, tendo que mostrar seus genitais para “provar” sua mulheridade? Teremos que colocar guardas em banheiros que farão a inspeção de quem é ou não “mulher de verdade”? Ou pior, faremos como o novo RG transfóbico defendido pelo atual governo deseja, distinguindo quem é ou não trans nas cédulas de identidade? Lembremos que os campos de concentração nazistas começaram justamente marcando as identidades de judeus e outras minorias… Já viram onde isso pode dar, né?

Deixo vocês com esse poema, que acho muito atual para nossa reflexão:

“Primeiro eles vieram buscar os socialistas, e eu fiquei calado — porque não era socialista. Então, vieram buscar os sindicalistas, e eu fiquei calado — porque não era sindicalista. Em seguida, vieram buscar os judeus, e eu fiquei calado — porque não era judeu. Foi então que eles vieram me buscar, e já não havia mais ninguém para me defender.”

Martin Niemöller

Espero que quando a cisgeneridade se der conta do problema que estão criando ao alimentar o cissexismo, não seja tarde demais para todes nós.

Victória Dandara Victória Dandara é travesti, cria da zona leste de São Paulo (SP), pesquisadora em direitos humanos, advogada transfeminista e filha de Oyá. Foi uma das primeiras travestis a se graduar em direito na USP e hoje luta não só pela inclusão da população trans e travesti, mas por uma emancipação coletiva a partir da periferia e da favela.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.