Um corpo travesti pelo mundo: ocupando as cadeiras dos ministros
A experiência de uma mulher travesti na Suprema Corte Estadual de Massachussets (EUA)
22|07|2024
- Alterado em 22|07|2024
Por Victória Dandara
Estou há quinze dias em Boston, em um curso de verão preparatório para meu mestrado em Harvard. Muitas são as sensações desse momento: saudade de casa e das pessoas que amo, medo em relação aos desafios aqui, angústia com a grana apertada e por aí vai. Mas não posso deixar de pensar o quão simbólico é ser uma travesti nesse espaço.
Nessas primeiras semanas, estamos visitando tribunais de justiça, tendo passado pela Corte Federal e pela Suprema Corte Estadual. Vale dizer que Massachusetts – e especificamente Boston – é uma região de importância histórica nos EUA. Aqui aconteceram muitos dos movimentos pela independência do país. Na Suprema Corte Estadual, por exemplo, foi o primeiro lugar do país em que se reconheceu a escravidão como inconstitucional, visto que “todos os homens nasceriam livres e iguais”. Além disso, foi aqui o primeiro estado onde se reconheceu a união homoafetiva, o que gerou uma reação em cadeia por todo o país.
A própria Universidade de Harvard abrigou diversos presidentes e figuras importantíssimas para a história estadunidense e mundial. Esse texto não tem como objetivo exaltar os EUA ou o Norte Global, que são, na verdade, responsáveis por golpes por toda a América Latina e crises mundiais na economia e direitos humanos. O que quero ressaltar aqui é a relevância de termos uma travesti ocupando esses espaços.
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Na Suprema Corte eu pude, em um momento da visita, sentar na cadeira dos ministros. Ainda que com tom lúdico e “turístico” de certo modo, aos poucos se cria uma inversão do imaginário coletivo sobre o lugar das travestis. Afinal, hoje estamos na Câmara Federal, nos principais festivais de música do país, em grandes corporações e, neste caso, nas mais relevantes e históricas casas de (in)justiça do mundo. Vale lembrar que viemos da cultura da Operação Tarântula, que nos anos 1980 nos “tirava de circulação” caso andássemos à luz do dia. Estamos, aos poucos e com muita luta, saindo disso para algo maior. Gradualmente, nossos corpos passam a significar potência, capacidade, intelectualidade e liderança.
Quando sentei na cadeira dos ministros da Suprema Corte mais antiga e tradicional dos EUA, país tão controverso e que tanto nos impactou enquanto povo brasileiro, pude entender a importância do que o movimento de travestis tem feito pela nossa nação. Ao desbravarmos e ocuparmos novos espaços, invertemos lógicas de poder seculares que não apenas nos limitavam enquanto coletividade trans, mas sim ao Sul Global, à periferia, a todos os excluídos pelo (CIS)tema. Ao nos libertarmos, estamos aos poucos construindo projeções de um mundo melhor para todes.
É isso que desejo com essa jornada que se inicia.
Victória Dandara Victória Dandara é travesti, cria da zona leste de São Paulo (SP), pesquisadora em direitos humanos, advogada transfeminista e filha de Oyá. Foi uma das primeiras travestis a se graduar em direito na USP e hoje luta não só pela inclusão da população trans e travesti, mas por uma emancipação coletiva a partir da periferia e da favela.
Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.
Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.
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