Mulheres periféricas que trabalham no mercado canábico vivenciam barreiras no dia a dia, como a insegurança em trabalhar na ilegalidade, estigma em torno da planta e batidas policiais
Reportagem: Beatriz de Oliveira
Edição: Karoline Miranda
Atualizado em 24|07|2024
Entrar no bar, se acomodar em uma mesa, fazer um pedido e acender um baseado, enquanto várias outras pessoas também fumam a erva. Cenas assim são cotidianas no Manga Rosa Café, localizado na Vila da Penha, zona norte do Rio de Janeiro (RJ). Comandado por Camila Miranda, o negócio é conhecido por apoiar a legalização da maconha.
“Pra fumar, a gente tinha que ir pra zona sul ou pro centro. E aqui na zona norte, periferia, a galera se sente à vontade e vem pro Manga. Até tenho receio de falar tão abertamente sobre isso, pelas repressões que a gente sofre aqui”, relata Camila.
Essas repressões vêm de vizinhos e da polícia, presença recorrente na região, que chega a levar alguns clientes do bar para a delegacia, por estarem fumando maconha. Barreiras como essa são enfrentadas por mulheres periféricas que empreendem no mercado canábico. Na segunda reportagem do especial “Empreendedoras da Maconha” te apresentamos o trabalho de mulheres que atuam no ramo e as dificuldades que elas enfrentam.
Leia aqui a primeira reportagem da série “Empreendoras da Maconha”
Mostramos ainda, que para além da geração de renda, trabalhar no mercado canábico sendo uma mulher periférica implica em se tornar também ativista da causa, em um contexto em que são as pessoas periféricas e negras as mais afetadas pelo proibicionismo da planta.
“Quando a gente tem uma empresa dentro do ramo canábico, a gente também é ativista. Não tem como você falar sobre maconha, sem se portar diante do sistema e das leis”, Ágata Cabral, dona da Pink – Headshop & Sexcare, que teve sua história contada na primeira reportagem deste especial.
“Temos um processo de denúncia por música ao vivo, sendo que aqui é uma rua com vários bares. Durante uns três meses, a guarda municipal ficou vindo aqui direto, tirando fotos nossas”, conta Camila sobre as repressões vividas cotidianamente, e que não acontecem em bares próximos.
Mesmo com os percalços, a empreendedora tem se empenhado cada vez mais em levantar a bandeira da legalização e transformar o bar também em um ambiente de aprendizado e troca de informações sobre o assunto. Além de receberem rodas de conversa, também acolhem pessoas que trabalham no mercado canábico e atividades da Marcha da Maconha do Rio de Janeiro (RJ).
“A gente tenta mostrar outras vertentes além de fumar, mostrar que a maconha é maravilhosa para várias coisas, e conscientizar a galera sobre o porquê acontece a guerra às drogas”, pontua.
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Aberto durante o dia e a noite, o Manga Rosa serve almoço, dispõe de música ao vivo em ritmos como reggae, MPB e rock. Oferece drinks terpenados e produtos de tabacaria. Há clientes que perguntam se vendem a maconha e a resposta é não, seguida da indicação da biqueira (mais conhecida no RJ como “boca de fumo”) mais próxima. As idades dos clientes são variadas, mas seu público é principalmente de jovens periféricos.
Terpenos são substâncias produzidas naturalmente por plantas, inclusive a maconha, que geram aromas geralmente usados em óleos essenciais. Usando terpenos presentes na cannabis, é possível produzir drinks que lembram a erva.
Apesar do uso recreativo da maconha ser proibido no Brasil, ele é uma realidade e há amplo público interessado, o que possibilita que negócios como o de Camila sejam viáveis. Pesquisa de 2023 do Datafolha revelou que um em cada cinco brasileiros com mais de 18 anos diz já ter fumado maconha alguma vez na vida, enquanto 5% da população maior de idade admite que fuma a substância atualmente.
Visando esse público, Giovanna Lourenço e Thaís Gomes lideram juntas a Chicas Headshop, empreendimento com atuação presencial e online, localizado no Jardim Danfer, zona leste de São Paulo (SP). Seda, cuia, dichavador, piteira e filtro são alguns dos produtos que podem ser encontrados na loja.
O empreendimento começou como uma loja online destinada a socorrer amigos maconheiros durante a pandemia de Covid-19, até que se expandiu, e em novembro de 2022, houve a abertura da loja física. Trabalhar num espaço periférico possibilita que as empreendedoras desmitifiquem o uso da maconha dentro do bairro.
“A galera vê a gente trampando e fumando ao mesmo tempo”, conta Thais. “A gente consegue acessar um público como os que são amigos da minha família, que achavam que maconheiro era tudo vagabundo, mas vêem a Thais, filha do Henrique, que fuma, e trabalha o dia inteiro”.
A quebra de estigmas em torno da maconha acontece em conversas cotidianas. Quem entra na loja com curiosidade acaba saindo com uma série de informações sobre o uso da erva.
Mesmo com uma comunicação nas redes sociais voltada ao público feminino, a maioria dos clientes da loja é homem. “Mulheres vem mais através do nosso perfil no Instagram, mas talvez elas tenham vergonha de vir na loja presencial, não sabemos bem o porquê”, diz Giovana.
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No “Anuário de Mercado: Growshops, Headshops e Marcas 2023”, a empresa especializada em mercado canábico Kaya Mynd destrincha o cenário do setor brasileiro de growshops, headshops e tabacarias. “Com a mudança nas atitudes sociais em relação à cannabis e o aumento da demanda por produtos relacionados, tipos de negócios dentro desse setor têm se consolidado no Brasil”, pontua o relatório.
Segundo definição da Kaya Mynd, growshops são os estabelecimentos que fornecem produtos e equipamentos para o cultivo de plantas, como fertilizantes, iluminação e substratos. Headshops oferecem produtos relacionados à cultura canábica, como roupas, bongs, e acessórios em geral. As tabacarias fornecem principalmente produtos relacionados a tabaco, cigarros e narguilés, incluindo fumo, papel para cigarro, isqueiros, entre outros.
O anuário mapeou mais de 430 marcas relacionadas a produtos desses setores. Nas headshops e tabacarias, os produtos mais oferecidos são as sedas, seguidas pelas piteiras de papel. Usadas para bolar o baseado, as sedas estão também entre os produtos mais acessíveis, variando de R$ 0,75 a R$ 72,50.
Presença marcada em periferias paulistas, as tabacarias estão em maior número no estado de São Paulo. “Os números variados em outros estados refletem a distribuição heterogênea das tabacarias no Brasil como um todo. A presença de estabelecimentos em estados como Rio de Janeiro, Bahia e outros sugere que a cultura da tabacaria não se limita a áreas específicas”, diz o texto.
Dentro do mercado canábico, também há mulheres que atuam à margem da lei. É o caso de Luana (nome fictício para preservar a identidade da entrevistada), que vende comidas canábicas. Ela se apresenta como uma mulher negra de pele clara, com deficiência visual, formada em Farmácia e Gastronomia e moradora da Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro (RJ).
No cardápio, há bolos, cookies, brownies, quiches e empadão. Ao entrar em contato com o Whatsapp do empreendimento, o cliente é orientado a não mencionar o nome da dona. É uma forma de não produzir provas contra ela, explica Luana, que usa um número de celular exclusivo para o atendimento.
Esses cuidados não são à toa. Segundo dados do Sistema Penitenciário brasileiro de 2022, a incidência penal sobre drogas no Brasil é uma das principais causas de prisão de mulheres, chegando a 54% dos casos dos encarceramentos.
Além do seu sustento, Luana vê sua atuação no ramo canábico como uma forma de protesto, no contexto de luta contra a proibição de uma planta. “Eu sou uma mulher negra de pele clara e uso minha passabilidade para acessar e levar outras pessoas a terem esse acesso [à maconha]”, diz.
Quem compra de Luana recebe também orientações sobre como usar e conservar os produtos. “Evite comer em jejum, a onda será mais forte” e “um cookie é uma porção individual, ou seja, irá garantir uma onda tranquila” são algumas delas. Para produzir os itens de seu cardápio, a empreendedora compra prensados e faz uma lavagem, buscando purificar o item.
Prensado é a forma mais comum e barata de se encontrar a maconha no Brasil. Trata-se da cannabis misturada a outras substâncias, incluindo galhos, sementes, outras plantas, insetos, mofo e produtos químicos.
As comidas canábicas são a principal fonte de renda de Luana. Além do Rio de Janeiro, ela também tem clientes em São Paulo e Minas Gerais. A maior parte chegou por meio do boca a boca, já que por sua própria segurança, a empreendedora não divulga seu negócio.
A produção das comidas com maconha começou com o seu interesse por fitoterápicos, medicamentos obtidos a partir de plantas. No início ela oferecia biscoitos a amigos e colegas de trabalho. Quando uma amiga ofereceu o produto para a mãe com Parkinson, que após o consumo teve a melhor noite de sono em anos, Luana percebeu o potencial das comidas canábicas para tratamento de dores e doenças.
“Aí eu comecei de fato a estudar também esse olhar medicinal. Mas sempre considerando a questão política, visando as políticas de drogas e a gestão de segurança pública. Logo que eu comecei a vender, coloquei que pessoas moradoras de periferias e ativistas do ramo teriam 50% de desconto”, conta.
Apesar de buscarem geração de renda e ativismo ao empreender no mercado canábico, as mulheres que entrevistamos tem o sentimento geral de que esse mercado não as acolhe. Enquanto os estigmas do tráfico de maconha estão voltados às periferias; os eventos e lucros do mercado da cannabis concentram um público branco e com alto poder aquisitivo.
“A cena é bem feia, pra ser sincera. Esse ano a gente preferiu não ir em eventos do ramo. Não é algo para socializar, existe uma panela”, diz Thais, dona da Chicas Headshop, se referindo há uma concentração de pessoas com maiores condições financeiras presentes no mercado. Acrescenta que os valores de entrada em eventos como esse são altos, passando dos R$ 100.
As entrevistadas também pontuam que não se vêem beneficiadas de forma efetiva em um possível cenário de regulamentação da maconha no país, a depender do contexto em que seja feito, por entender que o estigma e perseguição às periferias vai seguir existindo em alguma medida. Avaliam também que as empresas que já lucram nesse mercado, como a indústria farmacêutica, serão as mais beneficiadas.
“Com ou sem regulamentação, a gente vai sempre estar sendo prejudicado de alguma forma. Num contexto sem regulamentação, as mulheres são muito encarceradas por isso, em sua maioria jovens, mães e negras”, afirma Monique Prado, assessora parlamentar da vereadora Luciana Boiteux (PSOL) na Câmara Municipal do Rio de Janeiro e mestra em Sociologia e Direito.
Para a socióloga, uma regulamentação que favoreça mulheres periféricas – e a periferia como um todo – deve ser focada em reparação histórica. “Nós, enquanto movimentos sociais, devemos lutar por uma regulamentação que faça com que as empresas atuem com respeito a essa história do proibicionismo no Brasil, em que muitas vidas foram tiradas, muitas pessoas foram presas, famílias foram destruídas. [É preciso] respeitar a memória de tudo que aconteceu”.
Monique se refere a um contexto de guerra às drogas, cujos principais afetados são pessoas negras e periféricas. A pesquisa “Iniciativa Negra por Direitos, Reparação e Justiça”, lançada em 2023 pela Iniciativa Negra Por Uma Nova Política Sobre Drogas, apontou que a realidade da guerra às drogas está intimamente ligada ao período escravocrata vivido no país. “O Brasil nunca lidou bem com o seu passado escravista. A seletividade da política de drogas proibicionista é um instrumento para a acomodação e a manutenção das atuais injustiças que traçam linhas de continuidade com aquele regime”, diz um trecho da pesquisa.
O conceito de guerra às drogas surgiu na década de 1970 nos Estados Unidos, como ferramenta do governo para justificar a militarização a fim de combater o narcotráfico; tratando o tema a partir de uma visão proibicionista, em que as drogas seriam a causa para aumento de violência na sociedade. No entanto, desde a implantação de políticas alinhadas à guerra às drogas no Brasil, na década de 1980, o que temos como resultado é o assassinato de pessoas negras e pobres; sem uma efetiva diminuição do narcotráfico, como aponto este estudo da Iniciativa Negra Por Uma Nova Política Sobre Drogas.
Uma regulamentação da maconha no Brasil com reparação histórica pode se basear na de outros lugares que seguiram esse caminho. Monique cita como exemplo o caso do estado de Illinois, nos Estados Unidos, que destinou parte dos impostos da venda da cannabis para financiar moradias a famílias que tenham sido afetadas por políticas de habitação racistas. A legislação do estado definiu ainda a exclusão de antecedentes criminais de pessoas que sofreram processos por posse ou consumo de cannabis no estado.
Monique argumenta que no Brasil a regulamentação precisa permitir que pessoas periféricas que empreendem no ramo canábico sejam menos taxadas do que as grandes empresas do setor, e que o montante desses impostos deve ser destinado prioritariamente a infraestrutura das favelas e periferias, com investimento em saneamento básico, saúde, lazer e educação.
A assessora parlamentar acrescenta ainda a necessidade de anistia e indenização aos egressos do sistema prisional, principalmente aqueles que foram presos com poucas quantidades de maconha; a criação de espaços que contem a história do proibicionismo e preservem essa memória, bem como a assistência a agricultores familiares que cultivam a planta.
“São muitos os caminhos. Mas, prioritariamente, é deixar com que esse mercado seja feito por pessoas da periferia; que as grandes empresas sejam muito taxadas e que as pessoas que foram presas sejam anistiadas. Isso é o mínimo”, diz.
Este trabalho jornalístico é publicado com o apoio do Fundo para Investigações e Novas Narrativas sobre Drogas, convocado pela Fundación Gabo em parceria com a Open Society Foundations.