Mercado da cannabis medicinal é o que mais avança; legislação brasileira ainda é proibicionista para uso recreativo
Reportagem: Beatriz de Oliveira
Edição: Karoline Miranda e Alice de Souza
Atualizado em 16|07|2024
Seda, piteira, dichavador, blunt e até lubrificante canábico: esses e outros produtos são oferecidos por Ágata Cabral em sua loja online, a Pink – Headshop & Sexcare. Insatisfeita com um mercado da maconha feito por homens e voltado para homens, ela decidiu criar seu negócio pensando em oferecer produtos acessíveis para mulheres maconheiras.
“Eu via que as tabacarias não tinham kits cor de rosa, eu via várias deficiências, como a necessidade de falar sobre cannabis e menstruação, cannabis e endometriose, por exemplo”, diz a graduada em Estética e Cosmética que vive em Fortaleza (CE).
Ágata empreende num mercado em ascensão no Brasil: o da maconha. Mesmo que o uso recreativo seja proibido no país, de acordo com o Decreto-Lei nº 891, de 1938, o consumo da erva é uma realidade e fomenta um mercado em expansão. De acordo com a Associação Brasileira das Indústrias da Cannabis (ABICANN), num cenário de regulamentação e autorização de cultivo em território nacional, se estima que até 2030 a cannabis geraria mais de 300 mil empregos e movimentaria mais de U$350 bilhões na economia.
“A maconha é a substância mais consumida no rol das substâncias ilegais e tem algumas especificidades em relação às outras drogas, que eu atribuo principalmente ao padrão de consumo, que é mais seguro, e do ponto de vista econômico, por ser uma substância natural, facilmente cultivável”, pontua a economista e pesquisadora de economia das drogas Taciana Santos
Segundo levantamento realizado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, o número de usuários de drogas chegou a 292 milhões em todo o mundo em 2022. Entre as substâncias, a cannabis aparece como a droga mais utilizada: são 228 milhões de usuários.
E continua: “no Brasil, temos uma mercado de maconha ilegal, que pode ser dividido entre na grande escala, que é a maconha que chega no consumidor, o prensado. E uma outra maconha, que eu chamo de gourmetizada, que é aquela menos adulterada, numa produção de menor quantidade”.
Para além do uso recreativo, entre os principais segmentos da indústria canábica no Brasil estão o têxtil, biocombustível, construção civil, celulose, alimentício e cosmético. No contexto atual, o ramo que conta com maior regulamentação no país é o medicinal. Segundo o Anuário da Cannabis Medicinal no Brasil, feito pela consultoria especialista em cannabis Kaya Mind, em 2023 haviam 1.034 empresas e associações de cannabis medicinal atuantes no Brasil. Além de uma movimentação próxima aos 700 milhões de reais nesse mercado.
A consultoria aponta ainda que a regulamentação da maconha pode movimentar R$ 26,1 bilhões e gerar 117 mil empregos em quatro anos, incluindo o uso medicinal, recreativo e a produção de cânhamo para fins industriais.
Após nove anos de julgamento, o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu no final de junho a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal. Ficou estabelecido em 40 gramas ou seis plantas fêmeas de Cannabis sativa a quantidade de maconha para caracterizar porte para uso pessoal, diferenciando usuários e traficantes.
O julgamento girava em torno da constitucionalidade do Artigo 28 da Lei das Drogas (Lei 11.343/2006), que diferencia a figura do usuário e traficante, mas não estabelece critérios objetivos para isso. O caso que motivou a discussão foi de um acusado detido por três gramas de maconha, cuja defesa pedia que o porte para uso próprio deixe de ser considerado crime.
Segundo Taciana, a descriminalização não deve ter impacto imediato no mercado da maconha. “Talvez alguns consumidores se sintam mais seguros para usarem, mas não acredito que isso vá aumentar o acesso, que já é bastante amplo”, pontua.
Para Katia Cesana, fundadora da Xah com Mariaz, comunidade de mulheres empreendedoras e ativistas no ramo canábico, esse mercado ainda está em construção no Brasil, visto que a maior atuação é das indústrias farmacêuticas.
A entrada de mulheres periféricas nesse ramo – e na legalidade – se dá principalmente pela cultura canábica, com a venda de produtos que fazem alusão à maconha, mas não a tem em sua composição. É o caso de camisetas e brincos que usam a imagem da planta, além de sedas e piteiras para o uso recreativo. Katia aponta que o mercado medicinal também é uma opção, mas exige uma série de burocracias e é baseado principalmente em importação.
“É um mercado que tem muitas possibilidades e vai gerar bilhões quando houver uma regularização, mas tem que ser estudado e explorado agora. Porque, no mundo todo, as pessoas que se movimentaram pré-legalização foram as que conseguiram virar empresários e ativistas bem sucedidos”, afirma Katia.
O alto custo dos medicamentos, a falta de informação especializada e de capacitação técnica, além da ausência de uma legislação sobre diferentes usos e formas de fiscalização da cannabis são os principais entraves para o desenvolvimento do mercado da cannabis no Brasil, segundo a ABICANN.
Em razão do cenário de criminalização vigente no país, Katia orienta que mulheres que desejem empreender no ramo atuem dentro da legalidade e, mesmo que comecem de maneira informal, busquem regularizar seus negócios para sua segurança pessoal.
No entanto, esse pode não ser um processo simples. A Xah com Mariaz disponibiliza anualmente o programa de aceleração Hempreenda Xah. Por lá já passaram mais de 500 alunas com ideias de negócios canábicos, ao passo que apenas 12 realmente abriram empresas com CNPJ.
Ágata Cabral, dona da headshop Pink, criou o seu negócio em 2022 pela modalidade jurídica Microempreendedor Individual (MEI). Para ela, essa formalização permite controlar as entradas e saídas da empresa e ter uma maior credibilidade por poder dizer que é de fato uma empresa.
Após um período de desorganização financeira e sobrecarga por administrar a loja sozinha, Ágata está reformulando sua marca para passar a produzir cosméticos com terpenos, substâncias produzidas naturalmente por plantas que geram aromas geralmente usados em óleos essenciais. Ao comprar terpenos presentes na cannabis para produzir seus cosméticos, a empreendedora achou uma forma de ter a erva em seus produtos sem ferir a legislação vigente no país, que proíbe a comercialização da maconha.
Atualmente, seu único produto com cannabis na composição é o lubrificante, que é feito a base de água com óleo canabinoide pela empresa nacional Green Blend. Segundo o site da organização, os produtos levam um óleo canabinóide que não infringe as leis brasileiras.
Afirma que não tem coragem de plantar ilegalmente e produzir os cosméticos a partir disso, em razão da perseguição que negros e pobres vivem no contexto de guerra às drogas. “Pra quem tem dinheiro, já é legalizado faz tempo”, pontua.
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Monique Prado, assessora parlamentar da vereadora Luciana Boiteux (PSOL) na Câmara Municipal do Rio de Janeiro e mestra em Sociologia e Direito, afirma: “em relação ao empreendedorismo feminino, existem as pessoas que vendem, por exemplo, produtos de pele feitos com matéria-prima que vem da maconha, mas eu só vejo mulheres brancas fazendo isso”.
Se referindo a negócios de mulheres que atuam na ilegalidade, ela diz: “os casos que vejo de mulheres negras que estavam nesse mercado de cosméticos feitos com maconha eram situações muito precárias, em que essas mulheres recebiam dinheiro suficiente para manter suas famílias, mas em qualquer tipo de batida policial ou denúncia, iriam presas. É um cenário de muita insegurança jurídica”.
Desde 2015, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou a prescrição de remédios com canabidiol, o país registra avanços quanto ao acesso à maconha medicinal, como a concessão de autorização sanitária para produção e comercialização no Brasil de produtos derivados de cannabis e a simplificação de burocracias para importação a produtos à base de cannabis. Também nesse período começaram a surgir associações de pacientes que visam disponibilizar o óleo da planta a preços mais acessíveis, várias lideradas por mães que lutaram pelo uso da cannabis no tratamento de seus filhos.
Caroline Bispo, advogada, presidente da associação Elas Existem – Mulheres Encarceradas e mestre em Segurança Pública, aponta para a necessidade de avanço da liberação do uso recreativo, para além do medicinal. “As mulheres não vão presas por conta de cannabis, elas vão presa por causa de maconha mesmo. A galera não tá fumando cannabis, tá fumando maconha”, resume.
“Quando a regulamentação passa a ser uma discussão só medicinal, a gente sabe que quem vai ser mais favorecido são as indústrias farmacêuticas”, acrescenta.
Na contramão da descriminalização da maconha pelo STF, tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2023, que proíbe a descriminalização da posse, do porte e do uso recreativo de droga entorpecente ilícita. A expectativa é que a proposta seja aprovada, como afirma a Bruna Andrade, assessora de advocacy na Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas.
“Se hoje já é difícil dialogar sobre redução de danos e combate à proibição, com a PEC 45 sendo aprovada, teremos muito mais trabalho nessas questões. Será um momento em que a população das comunidades será completamente atacada”, afirma.
Caroline Bispo corrobora com essa visão: “essa PEC vem criminalizar todas as pessoas usuárias, mas a gente sabe que terá uma população que vai continuar sendo privilegiada para usar entre quatro paredes, e os maiores afetados serão populações vulneráveis, principalmente as mulheres”.
A advogada explica que com a Lei de Drogas, instituída em 2006, houve um aumento de encarceramento de mulheres consideradas traficantes. O Brasil tem a terceira maior população carcerária feminina do mundo, a maioria das detentas são negras e respondem por crimes relacionados ao tráfico de drogas.
Mulheres periféricas que atuam no mercado da maconha de forma ilegal estão sujeitas a essa realidade. Em 2016, segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), 62% das prisões de mulheres eram relacionadas ao tráfico de drogas; enquanto para os homens esse percentual era de 26%.
A perseguição a negros e pobres por consumo de maconha é antiga. Em 1830, foi instituída na Câmara Municipal do Rio de Janeiro a primeira lei do país que proibiu a venda e o uso da maconha. “Essa proibição dizia que as pessoas negras que usassem maconha deveriam ser presas e que as pessoas que vendiam, geralmente os boticários, sofriam apenas como uma multa. Então, a população negra já era criminalizada desde essa época”, explica Monique Prado.
A assessora parlamentar aponta ainda que “vivemos em um país muito hierarquizado e racista, a proibição das drogas é vital para essa estrutura”. Essa estrutura se estende e impacta, inclusive, na trajetória de mulheres que buscam empreender no mercado da maconha.
“Eu não me vejo sendo incluída no mercado da cannabis, o que eu tenho não é padrão. Eu não consigo acessar grandes investidores e parcerias que poderiam me gerar autonomia financeira”, afirma a empreendedora Natalia Ferreira. E resume: “é um mercado perfeito para pessoas brancas e ricas, de preferência do sexo masculino; nunca foi inclusivo”.
Moradora de Taubaté (SP), Natalia é criadora do Mundo Fankukies, empreendimento em que produz biscoitos canábicos, que nomeou de fankukies, os quais levam uma combinação de castanhas, nozes e sementes.
Os fankukies não dão a “brisa” da erva, são direcionados para uso terapêutico. “Eu procuro levar a perspectiva de que não existe separação entre medicinal e recreativo, existe o uso terapêutico da planta, e cada um escolhe o melhor caminho para usá-la e ter acesso ao bem estar que o corpo almeja”, explica.
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O negócio começou como um experimento pessoal. Natália fazia uso abusivo de álcool e cocaína, e parte do seu processo de superação do vício se deu a partir da alimentação combinada com a maconha. Depois disso, passou a oferecer os fankukies para outras pessoas. Em 2019, ao participar de um curso de cannabis medicinal realizado pelo Padre Ticão na Paróquia de São Francisco de Assis, em Ermelino Matarazzo, zona leste de São Paulo (SP), ela entendeu que seus biscoitos poderiam ser o primeiro acesso de algumas pessoas ao uso terapêutico da maconha.
Hoje, por trabalhar na ilegalidade, a empreendedora ainda não tem seu negócio estruturado e não consegue sobreviver apenas com a renda que vem dele. Cada pacote vendido por Natalia tem dois fankukies.
A empreendedora está em contato com uma associação de cannabis medicinal para começar a fabricar os fankukies com insumos e no laboratório da organização. E também estuda a produção de biscoitos com terpenos presentes na maconha.
O que motiva Natalia a continuar a manter o seu negócio, apesar da insegurança, são os resultados positivos gerados nos clientes. “Eu vi que as pessoas precisavam dos fankukies, porque um óleo de cannabis com qualidade tem um alto custo, e os fankukies são acessíveis, permite a real democracia do mercado da cannabis”, diz.
Este trabalho jornalístico é publicado com o apoio do Fundo para Investigações e Novas Narrativas sobre Drogas, convocado pela Fundación Gabo em parceria com a Open Society Foundations.