“Às vezes havia sonoras gargalhadas por toda cela, nos lembrando que sexo é alegria e prazer, coisas inexistentes no cárcere” – Trecho do livro Borboletas Enjauladas (2021, Harpa Produções)

Marcionila Mendes de Almeida tem quatro filhos. “Ser mãe é essencialmente o meu papel nesse mundo, mas eu também sou produtora cultural”, conta. Com mais de 20 anos de experiência, iniciou no ramo da produção de projetos culturais na Ilha de Marajó, no Pará, onde nasceu. Mas desde criança já fazia arte.

Quando você é marajoara, praticamente já nasce artista

aponta Marcia, como prefere ser chamada.

“Minha avó foi minha maior referência artística. Ela era ceramista e fazia de tudo”, recorda. Sua primeira obra de arte em cerâmica foi um cachimbo que aprendeu a fazer com dona Sebastiana.

As origens de Marcia são tão misturadas quanto a do próprio Brasil. O avô era descendente de portugueses e a avó era indígena. Já seu pai é quilombola e a mãe foi a primeira mulher branca a entrar para a família. “Eu aprendi a palavra ‘sustentabilidade’ com o meu avô. Ele tinha um sítio em Marajó de 25 hectares, onde plantava e criava de tudo. Já era autossustentável naquela época”, conta.

Marcia, a quinta de sete filhos, considera sua família grande, embora isso seja modesto em comparação com os padrões da Ilha, onde as casas geralmente estão cheias de crianças. Depois de viver em algumas cidades, a família se mudou para Belém, a capital do estado. Marcia então começou a trabalhar aos 15 anos em inúmeras ocupações.

A vontade inicial de se tornar artista plástica foi vencida pela necessidade de contribuir para o sustento da casa. “Logo eu percebi que não dava para viver apenas disso. Mudei meu foco para produção de eventos e elaboração de projetos”, explica. Sua estreia no mundo da literatura aconteceu quando começou a trabalhar com duas artistas paraenses: a escritora infantil Heliana Barriga, e a pesquisadora de lendas Amazônicas Nazaré de Melo.

Enquanto estava na capital, Marcia teve sua primeira filha e conheceu o pai de sua segunda, um homem de nacionalidade francesa. Eles se mudaram para a Guiana Francesa – território na América do Sul pertencente à França. Lá, além de trabalhar com artistas, ela participou de diversos cursos relacionados à arte.

Também ganhou dinheiro lavando louças, fazendo serigrafias, vendendo artesanatos em feiras e até elaborando fantasias de carnaval.

Eu ainda estava grávida de dois meses. Por isso que eu amo muito os filhos, durante a gravidez parece que eu fico super criativa.

De volta ao Brasil, após a morte de sua mãe, em 2018, Marcia mudou-se para Florianópolis, em Santa Catarina, com seus filhos, buscando uma vida melhor do que levava em Belém.

O ato de “borboletear”

“Agora eu me vejo como uma ativista”, conta a escritora.

©Arquivo pessoal

Em uma das viagens entre Pará e Santa Catarina, Marcia foi presa pela posse de entorpecentes. ”Eu fiz a besteira de viajar trazendo o meu potinho de cannabis. E acabei sendo pega”, explica.

Durante o tempo que passou no Centro de Reeducação Feminino (CRF), em Ananindeua, na Região Metropolitana de Belém, ela começou a transformar a experiência da privação de liberdade em algo poético e cultural. No dia a dia do cárcere, era comum a contação de histórias de sexo, romance e paixão.

Marcia as reuniu no livro Borboletas Enjauladas (Harpa Produções), que conseguiu publicar em 2021 com o incentivo da Lei Audir Blanc de fomento à cultura. O título foi baseado no verbo “borboletear”, usado dentro do cárcere para descrever mulheres que se relacionavam intimamente e passavam por uma “metamorfose” relacionada à própria sexualidade.

“Ao sair do cárcere, em 2020, estávamos no início da pandemia da Covid-19, e eu optei por não escrever sobre as coisas horríveis que eram a realidade da época. Busquei algo poético, algo belo, e pensei na relação entre mulheres, que é especialmente tabu no Norte”, recorda.

No início do processo de escrita, ela enfrentou um bloqueio criativo, porque voltar à prisão, mesmo em memória, era muito dolorido. Uma desilusão amorosa a encorajou a expressar tudo o que planejava para a obra. “Comecei a escrever e foi rápido. Acho que durante umas duas semanas, eu escrevi todos os contos. Eles já estavam na minha cabeça”.

Todas as personagens do livro são reais, apesar de terem nomes fictícios. Contar essas histórias foi, para Marcia, uma forma de protesto. Sua grande constatação sobre o tempo encarcerada é que uma pessoa considerada marginal já foi marginalizada primeiro.

“As mulheres têm muito potencial, mas só quem deu oportunidades, pelo que eu observei, foi o tráfico. O Estado não gerou empregos, e muitas delas eram mães desesperadas que acabaram indo para o crime por necessidade. Quando tu tem o filho com fome, tu não quer nem saber de nada”, alerta.

“Agora eu me vejo como uma ativista, adotando essa bandeira para mim. A literatura é a minha forma de expressão, algo que faço há 14 anos. Escrevo porque realmente preciso. Essa é a minha missão”, conclui.

O livro Borboletas enjauladas, entrando em contato com Marcia Mendes de Almeida via redes sociais (@harpaproducoes, no Instagram) ou pela Amazon (versão digital). O envio pelos Correios é feito para todo o Brasil.

Este texto faz parte da série “Cárcere e Literatura”, que narra as histórias de mulheres autoras que encontraram na prisão uma expressão poética e cultural. A série destaca a resiliência dessas mulheres e o poder transformador da literatura.