No Pará, mulheres viram advogadas para lutar pela terra
Advogadas populares relatam importância de curso Direito da Terra para apoiar luta no campo.
Por Redação
20|12|2023
Alterado em 04|01|2024
A primeira turma de Direito da Terra do Brasil do Pronera foi formada em Goiás, em 2007. Em parceria com a UFG (Universidade Federal de Goiás) e com o INCRA ( Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), 60 bacharéis se formaram em Direito Popular em 2012. Segundo a JusDh (Articulação Justiça e Direitos Humanos) até 2019, o curso em Direito da Terra já formou seis turmas e teve adesão de 49 instituições superiores em todo o país. Em, 2021, este número subiu para para sete turmas.
O curso focado em direitos da terra só chegou no Pará em 2019, quando Claudelice, irmã de José Claudio, se formou para lutar pelo legado de seu irmão, que foi brutalmente assassinado junto à sua esposa Maria, enquanto voltavam de visita à família. (Leia aqui a reportagem completa).
Desde 2006, o PRONERA (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária), junto aos movimentos sociais e a UNIFESSPA – Universidade do Sul e Sudeste do Pará, vem transformando a realidade de diversos núcleos comunitários amazônicos pressionados pela “disputa [desigual] de terras” em Marabá, com a criação do curso de Direito Popular.
Claudia Letícia Silva dos Santos, 21, filha de Claudelice Silva dos Santos, está no primeiro período de Direito Popular no mesmo curso em que sua mãe se formou: Direito da Terra.
©Marcela Bonfim
A história e a memória de luta de José Claudio e Maria já estão sendo repassadas de geração a geração na família. Claudia Letícia Silva dos Santos, 21, filha de Claudelice Silva dos Santos, está no primeiro período de Direito Popular no mesmo curso em que sua mãe se formou: Direito da Terra.
Foi o sentimento de injustiça que impulsionou Claudia a estudar o Direito da Terra. Quando ouviu o juiz dizer que Zé e Maria contribuíram para a própria morte , ela decidiu entrar no curso com o objetivo específico de se tornar uma advogada popular. Não me imagino em outros meios. Tenho minha mãe e o Zé como exemplos de vida, e assim como ela entrou aqui eu também entrei com o mesmo objetivo”, aponta Cláudia.
O curso vem ao encontro dos grandes desafios e conflitos em torno da terra encontrados pelos grupos que vivem na região. Seja público ou privado, a criação e manutenção de leis que visam ampliar a produtividade e expandir cada vez mais a bancada do oligopólio, intensificam conflitos, levando a uma série de violências no campo.
Segunda turma do curso Direito da Terra;
©arquivo pessoal
Um exemplo é a Lei nº. 4.829/65 que instituiu o Crédito Rural, o Decreto de lei 167/67 que instituiu os títulos de crédito e as garantias do Crédito Rural, e a Lei nº. 13.986/20 que instituiu instrumentos e garantias ao Crédito Rural, conhecida como Lei do Agro, um marco regulatório no financiamento do agronegócio, mais as disposições legais sobre os títulos de créditos e garantias aos latifúndios.
O relatório anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT) aponta que, em 2021, a Amazônia Legal registrou 1.768 conflitos no campo, sejam ligados à terra, à água ou aos direitos trabalhistas, envolvendo um total de 897.335,00 pessoas. Quando comparado ao ano anterior, os conflitos de 2021 foram quase 8% menores. Porém, os dados podem estar desatualizados e alguns conflitos podem não ter sido contabilizados.
Um dado alarmante proveniente dos conflitos por terras é o número de assassinatos ocorridos no Brasil: de 2020 para 2021, saltou de 14 para 34 pessoas assassinadas. Esse panorama reflete a falta de proteção dessas pessoas envolvidas em conflitos, mas que não significa a realidade, já que esses números podem estar subnotificados.
O quantitativo de hectares em disputa é um eficiente mensurador da ampliação da concentração da renda e da terra no Brasil se observarmos os dados de 2012 e de 2021, onde a disputa por territórios no primeiro ano se dava em 13.181.570 ampliando para 71.277.426 em nove anos.
Esses números refletem a realidade de muitas comunidades tradicionais, assentamentos, ocupações e acampamentos espalhados pelas regiões amazônicas, apontando a falta de mecanismos institucionais de proteção e defesa a estas populações em extrema vulnerabilidade, acentuando a violação de direitos dirigida às mais diversas realidades muitas vezes sucumbidas à pressão do próprio Estado brasileiro na desocupação de seus lugares de vida.
‘A gente tem que ter os pés na luta’
Para lutar pelos direitos no campo, é fundamental ter resguardados o próprio direito de lutar e, sobretudo, a condição de sustentar a luta. Essa é uma das questões levantadas por Deuziana Lima: camponesa, advogada, defensora de Direitos Humanos formada em Direito da Terra.
Nascida em Conceição de Araguaia, Deuziana Lima sempre viveu no campo, em Santa Maria das Barreiras, no Pará. “Quase nasci no meio do mato. Minha família morava numa cabaninha. A minha ligação com o estilo camponês é de vida. Eu trago isso na minha história. É importante reconhecer que o campesinato tem uma importância de se relacionar com a vida, com a terra. A gente sofre, sem como sem terra, na exploração, mas o importante é ter a terra.
Deuziana Lima: camponesa, advogada, defensora de Direitos Humanos formada em Direito da Terra.
©Marcela Bonfim
Aos 16 anos, a advogada fugiu de casa. Em 2005, chegou em Tucumã e Ourilândia, (PA), onde engajou na luta pela terra ao lado de seu filho de três anos em um acampamento organizado pelo sindicato e FETAGRI/PA. Esta experiência culminou no PA (Projeto de Assentamento) Maria Preta, mas a ocupação não comportou todas as famílias, deixando remanescentes acampados.
Em 2016, Deuziane foi despejada. “Você vê sua casa sendo demolida. É de uma violência muito simbólica ver também a destruição dos alimentos. Eles passavam por cima das nossas plantações com trator. Foi nesse contexto que eu entrei no curso de Direito da Terra, para lutar contra as violações de direitos humanos”.
Deuziana era sindicalista. Com tantas violências e dor sofridas no processo de despejo, ela lutava como uma sobrevivente, e não como uma dirigente. “Foi muito sofrido. A gente foi despejado de terra pública com todas as recomendações, inclusive do MP (Ministério Público) para não sermos despejados. Naquele tempo, eu não sabia o que fazer. Eu não tinha essa força”.
Eram 412 famílias sem local para ficar. Viram-se desamparadas, sem apoio da prefeitura e sem representação jurídica adequada diante das ilegalidades do despejo. Deuziana, então sindicalista, foi estimulada por uma amiga a buscar o curso de Direito da Terra, uma jornada que ela enfrentou com coragem e determinação, mesmo sem recursos financeiros.
“Eu vim para Marabá sem dinheiro. Fiz o cursinho intensivo. Dei o melhor de mim. Eu tinha cinco anos sem estudar. Vendo muita gente inteligente cheia de discursos bons. Mas não me intimidei, eu me organizei, estudei e passei na prova e na entrevista. E assim organizei toda a minha documentação comprovando a minha ligação com o campo e fiz o curso’, relembra.
Atualmente, Deuziana Lima, além de cultivar ervas medicinais em zona urbana, presta assessoria jurídica para a FETAGRI/PA pelo programa de Assessoria Jurídica Popular da Terra de Direitos. Em suas palavras, ela destaca a importância de continuar na luta: Nesse momento eu passei na primeira e segunda fase da OAB com muita luta. Vou colocar a minha carterinha à disposição da luta. Toda essa luta, além da minha família, é pensando na coletividade, nas pessoas que precisam, que estão nas trincheiras.”
Esta reportagem foi realizada graças ao apoio e financiamento do Rainforest Journalism Fund, em parceria com o Pulitzer Center
Reportagem: Marcela Bonfim
Edição: Jéssica Moreira/Mayara Penina (Nós, mulheres da periferia)
Fotos: Marcela Bonfim e imagens de arquivo
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