No sertão baiano, educação infantil apresenta história do cangaço e reisado: “Rei de Roma, não, Boi Valente”
No município de Valente, no Semiárido baiano, a 245 km de Salvador, em 20 escolas que oferecem educação infantil, crianças vivenciam contação de histórias com personagens locais e em contato com a comunidade.
22|11|2023
- Alterado em 24|11|2023
Por Adriana Amâncio
As chances de a então garotinha de cinco anos, Tainá Santos, olhar ao seu redor e não se deparar com um coleguinha preto ou pardo na escola eram mínimas. Natural da comunidade rural Encruzilhada, em Valente, no Semiárido baiano, ela vive em um estado no qual 81% da população se autodeclara preta e parda, conforme revela a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) de 2019.
Tainá estudou em uma das 20 escolas de educação infantil do município que adotaram a educação contextualizada, método inspirado em Paulo Freire, que combina conteúdo científico com o aprendizado adquirido no contexto social. A base dessas aulas envolve contação de histórias.
“Foi aí que eu conheci a Menina bonita do laço de fita”, uma garotinha negra muito bonita, que despertou interesse em um coelho branco. Ele a achava tão bonita que gostaria de ter uma filha igualzinha a ela”, recorda. O livro, de autoria da escritora Ana Maria Machado, publicado em 1986, conta a saga de um coelho branco, que sonha em ter uma filha pretinha como a menina do laço de fita.
Hoje Tainá tem 32 anos, é professora de Educação de Jovens e Adultos (EJA) de uma escola da rede pública, em Valente, e aplica a mesma metodologia de educação contextualizada em suas aulas. Para ela, a contação de história e as atividades em campo foram decisivas para essa mudança de postura.
Foi com a obra, destinada ao público infantil, “Jeito de Ser”, de Nye Ribeiro, publicada em 2013, que reforça a beleza das características individuais, que Tainá deu vazão ao orgulho de ser nordestina.
Essa leitura me ensinou que não se pode julgar as pessoas porque vivem no Nordeste, pela cor da pele ou porque moram no campo. Eu tenho orgulho de ser nordestina.
Luciene Tognetta, líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral Unesc/Unicamp, afirma que com esse trabalho, a escola auxilia as crianças a construírem um sentimento de pertencimento. “Quando a criança tem um sentimento de pertencimento, entende melhor o seu papel individual e do grupo, ou seja, eu não preciso tirar o valor do outro, que é diferente de mim, para me afirmar”, explica.
Com esse trabalho, explica Luciene, a escola intervém no processo de definição dos valores mais importantes do grupo. É o momento, por exemplo, de tornar natural o respeito às pessoas pretas ou reforçar que só pessoas brancas têm valor; é a escola intervindo na formação da identidade e das relações sociais. “Os livros infantis, a literatura, têm um papel importantíssimo na construção desses valores”, arremata Tognetta.
Impacto na primeira infância
A abordagem contextualizada nas escolas de Valente começou em apenas uma unidade escolar e, em seguida, se estendeu para toda a rede municipal. Ela é trabalhada em toda a educação infantil, que vai da creche até a pré-escola. Além das aulas de contação de histórias, essa metodologia envolve encontros ao ar livre, em comunidades rurais e urbanas, grupos de teatro, sempre abordando os conteúdos locais.
Tudo começou em 2003, há 20 anos, com a chegada do projeto “Conhecer, Analisar e Transformar” (CAT) e Baú de Leitura, realizados pelo Movimento de Organização Comunitária (MOC). O CAT é um projeto que forma professores para desenvolver a educação contextualizada. Já o Baú de Leitura é literalmente um baú com livros de literatura que circula pelas escolas, auxiliando a contação de histórias em rodas de leitura.
A coordenadora do Projeto em Valente, Geia Araújo, explica que as atividades se dividem nos seguintes temas: identidade, meio ambiente e cidadania. “Aqui, a gente ensina muito sobre o cangaço [movimento social, forjado no Semiárido, que lutava contra injustiça], que é muito forte na região”, explica.
Outro tema recorrente, revela a gestora, é o impacto das mudanças climáticas no semiárido. “Fizemos essa aula no sítio, onde as crianças tinham que dizer o que havia ali e deixou de existir. Uma árvore que foi derrubada, um riacho que chegou. Assim, elas conheciam as mudanças climáticas com os próprios olhos”, explica.
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Ainda segundo a coordenadora, os pais e integrantes das comunidades vizinhas à escola participam das aulas. “Como resultado, a gente vê as crianças mais estimuladas nas aulas, mais desenvolvidas na leitura, as crianças do campo se sentem mais valorizadas”, observa.
A psicopedagoga clínica, que ministra oficinas de educação infantil com crianças nascidas na pandemia, Betina Serson, explica que o que a criança vive e aprende na primeira infância marca toda a sua vida. Por essa razão, o que se desenvolve na educação infantil é muito importante, reforça ela.
De volta, Luciene Tognetta reforça que intelectuais importantes como Jean Piaget afirmam que a adolescência é uma reelaboração da primeira infância. Segundo ela, na obra “Da Lógica da Criança a Lógica do Adolescente, de 1976, ele aborda essa questão. No entanto, ela alerta que ao longo da vida, a pessoa absorve novas ideias e informações, que podem mudar a sua forma de ver o mundo. Ainda assim, a educação infantil é uma base importante.
“Não quer dizer que essas crianças não podem mudar na fase adulta, mas a primeira infância é um período valioso. É preciso fazer tudo o que puder nesta fase para que ela tenha um ótimo desenvolvimento moral, afetivo e cognitivo”, enfatiza.
É na primeira infância que o cérebro da criança forma as primeiras conexões cerebrais, ou seja, começa a criar a sua visão de mundo.
Sai o Rei de Roma, entra o Boi Valente
Histórias do tipo “O Rato roeu a roupa do Rei de Roma” são desconhecidas dos pequenos estudantes baianos. Por outro lado, a história do Boi Valente, que deu origem ao nome da cidade, está na ponta da língua.
Da mesma forma, o lobo que comeu a vovó da chapeuzinho vermelho não tem espaço nas rodas de contação de história. Já a Caipora, personagem que habita as matas da Caatinga e é protetora dos animais, ganha o respeito das crianças logo na primeira infância. Difícil é saber quem não tem medo da caipora por lá.
Aos quatro anos, Luna Emily, do povoado rural Junco, nos arredores de Valente, ostenta o título de “Contadora oficial de História de Valente”. Estudante da Escola Samuel Batista, ela participa do Baú de Leitura, atividade na qual desenvolveu a habilidade de contar histórias com tanta intensidade, que, hoje, circula pelas salas de aula, animando as rodas de leitura, sem precisar segurar olivro na mão.
Ela construiu uma relação íntima com a obra “Jeito de Ser”, texto que a inspirou a conhecer cada palmo do seu povoado, além da fauna e flora da caatinga.
Quando pergunto do que ela mais gosta na historinha, ela responde: “os animais e porque fala de gente como nós”. Emily me disse que muitos dos personagens fazem parte do sítio onde ela vive. “Tem pato, cachorro, galinha, tem rio”, informa. O orgulho de conhecer várias histórias infantis é tanto que Emily faz questão de compartilhar a lista. “Eu sei a história da Menina bonita do laço de fita, a da borboletinha da asa quebrada”, dispara.
Eliene, a professora de Emily, afirma que a garota sente orgulho de viver na área rural e expressa isso com naturalidade. Antes de estar inserida no Bauzinho, a professora conta que Emily era arisca e “birrenta”, se negava a realizar as atividades. “Hoje, ela está mais participativa, interage nas aulas, gosta de contar histórias para os colegas”, observa.
Mandela não ia gostar de ouvir isso
A 1.900 km de Valente, a educação contextualizada também foi adotada, desta vez, como recurso para combater o racismo escolar. Em 2012, em um dia que deveria ser mais um dia comum de aula, estudantes, professores e profissionais, encontraram os muros da Escola Municipal de Educação Infantil Nelson Mandela, no bairro Jardim Pereira Leite, pichados com frases racistas e de apologia ao nazismo.
Para construir uma cultura antirracista, a equipe de gestores resolveu adotar o ensino da cultura afro em sala de aula e implementar práticas antirracistas. “Começamos contando histórias da África, criando personagens para auxiliar a falar sobre a cultura e religião do pais”, relembra a ex-diretora e professora aposentada da Escola Nelson Mandela, Cibele Racy.
Racy lembra que com o início do projeto, as pessoas passaram a perceber o racismo, antes naturalizado, na rotina escolar. “A equipe de auxiliares de serviços gerais só tinha pessoas pretas. A acolhida a uma criança branca era carregada de adjetivos como “que criança linda, maravilhosa”, o que não acontecia com uma criança negra”, rememora.
A ex-diretora recorda que com o avanço das atividades lúdicas, envolvendo a comunidade, uma cultura antirracista foi surgindo em meio ao corpo escolar, tanto que partiu da própria comunidade a ideia de mudar o nome da escola para Nelson Mandela. O líder africano é uma referência constante no projeto. Ela relembra que uma série de professores e outros profissionais passaram a se autodeclarar negros.
A relação entre professores e estudantes mudou, os próprios estudantes passaram a identificar com mais facilidade situações de racismo e expressar o que sentiam.
Em uma das atividades escolares, um estudante exercia o papel de diretor por um dia. No dia em que um garotinho da educação Infantil, viveu um dia de diretor, queixou-se à Cibele de que jamais voltaria a exercer o ofício. “Eu perguntei a ele por qual razão não havia gostado da experiência. Ele me disse inconformado ‘porque ninguém me respeitou’.
Cibele conta que pediu para ele explicar melhor a situação. O garoto havia pedido para a estudante “descer do banco” e ela, por sua vez, disse que não iria atendê-lo porque ele era preto. “Olhe, Nelson Mandela não ia gostar nada de ouvir disso”, retrucou rapidamente o garoto, que teve o privilégio de, aos cinco anos, conhecer Nelson Mandela, antes mesmo de Pedro Álvares Cabral.
Adriana Amâncio Jornalista formada pela Universidade Joaquim Nabuco (PE) com 25 anos de experiência em assessoria de comunicação e reportagem nas áreas de direitos humanos, gênero e meio ambiente. É repórter de Inclusão e Diversidade no Colabora – jornalismo sustentável. Já recebeu o Prêmio Sassá de Direitos Humanos, além de ser premiada por As Amazonas, Abraji e pela Embaixada dos Estados Unidos com o podcast “Cidadãs das Águas”.
Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.
Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.
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