Vida digna é direito, não privilégio

Distinção entre direito e privilégio contribui para desmontar a farsa da meritocracia

27|09|2023

- Alterado em 17|05|2024

Por Beatriz de Oliveira

Identificar sentimentos e situações que me causam desconforto tem me auxiliado a enfrentá-los de maneira mais construtiva. O exemplo mais marcante, em minha experiência pessoal, foi a distinção entre direito e privilégio. Sou uma mulher negra periférica que teve e tem acesso à educação, moradia digna, alimentação saudável e lazer como parte do cotidiano. Muitas vezes, me senti culpada por isso, como se este não fosse o meu lugar, acreditando que, por ser uma mulher negra, eu deveria ter enfrentado mais dificuldades e travado uma luta mais árdua para conquistar coisas como o meu diploma em Jornalismo, por exemplo.

Eu compreendia que vivia em uma realidade melhor do que muitas pessoas negras e carregava essa culpa por ser considerada privilegiada. “Privilégio” era a palavra que eu usava para descrever minha situação. No entanto, não a utilizo mais. Após explorar o tema em terapia, passei a empregar a palavra “acesso”. Tive acesso a oportunidades que são negadas a muitos nesta sociedade profundamente desigual. Tive acesso a benefícios que não deveriam ser a exceção, mas a regra.

Com essa mudança de perspectiva, a sensação de culpa tem se tornado menos frequente, sendo substituída por sentimentos de revolta e indignação em relação à realidade social brasileira. Esses sentimentos consigo direcionar de forma mais eficaz, utilizando-os para me manter ativa em meus propósitos como jornalista e cidadã.

Além disso, a diferenciação entre direito e privilégio também contribui para desmascarar a falácia da meritocracia. Sempre me choco ao ouvir as histórias da minha tia, que criou dois filhos como mãe solo. Ela saía de casa de madrugada para trabalhar, e ao retornar, realizava diversas tarefas domésticas antes de começar o segundo emprego. Mesmo nos dias de folga, ela continuava trabalhando. Raramente tinha tempo para passar com os filhos.

Minha tia contava que, ao chegar em casa, não podia sequer sentar, pois corria o risco de adormecer; ela tinha que imediatamente cuidar das tarefas domésticas para afastar a fadiga e enfrentar mais uma jornada de trabalho. Em determinada ocasião, uma vizinha não permitiu que seus filhos assistissem à TV em sua casa. Determinada a proporcionar esse conforto aos seus filhos, ela se esforçou ainda mais e comprou uma televisão, com um brilho de orgulho nos olhos.

Eu admiro profundamente a determinação dessa mulher e tudo o que ela sacrificou para dar um mínimo de conforto aos filhos. Entretanto, sempre me pergunto: “Por que ela teve que passar por tudo isso para ter acesso ao básico?” E a que custo? Problemas de saúde e poucas lembranças de momentos de lazer com os filhos quando eram pequenos.

Não devemos romantizar o sofrimento excessivo como um requisito para atingir metas básicas. Não é normal ter que fazer tanto esforço pelo mínimo necessário. Atribuir a responsabilidade apenas ao indivíduo é ignorar o verdadeiro problema: uma sociedade profundamente desigual e marcada pelo racismo. Em tal cenário, é impossível acreditar na meritocracia. Uma vida digna é um direito, não um privilégio.

Conteúdo publicado originalmente noExpresso na Perifa– Estadão

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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