Hospital Amparo Maternal: ‘Parecia uma guerra, não parecia um parto’
Doula relata violências presenciadas enquanto dava assistência a partos e denuncia que foi impedida de acompanhar uma cesárea de urgência
Por Amanda Stabile
08|03|2023
Alterado em 13|07|2023
Esse texto compõe a série Doulas Denunciam, que relata situações de violência ocorridas no hospital Amparo Maternal, em São Paulo (SP)
O primeiro parto que Ana* acompanhou no hospital Amparo Maternal foi lindo, rápido e sem intervenção alguma da equipe médica. “Ela já chegou lá com oito centímetros de dilatação. Era uma gestante muito consciente e empoderada”, lembra. Após esse, a doula acompanhou pelo menos mais oito nascimentos na maternidade, localizada na região centro-sul de São Paulo (SP). A maioria seguiu os mesmos moldes e os últimos até foram atendidos pelo mesmo obstetra.
As coisas mudaram em setembro de 2022, quando Ana deu assistência ao parto de Sara*, uma gestante de ascendência indígena. Desde então, a profissional acredita estar sofrendo perseguição dentro do hospital, por isso os nomes citados na reportagem são fictícios.
“Minha entrada está bloqueada. Eu fui impedida de acompanhar uma gestante que entrou para uma cesárea de urgência”, lamenta.
Sem escolha
Sara deu entrada no hospital mais cedo do que de costume. Teve de induzir o parto porque sua bolsa amniótica se rompeu antes mesmo do trabalho de parto começar – o que é chamado de bolsa rota. O exame para streptococcus B, uma bactéria que pode ser transmitida à criança durante o parto vaginal, também deu positivo. Por isso, ela teria de tomar antibióticos durante o nascimento do filho.
Quando a doula chegou ao Amparo Maternal, a gestante já estava rodeada de graduandos de medicina, que acompanhavam a rotina do hospital. Ela lembra que Sara era constantemente submetida a inúmeras intervenções. “Eram feitos exames de toque com frequência, de hora em hora e, às vezes, até em menos tempo”, conta.
Para Ana, foi visível o incômodo de todos quando ela chegou à sala e o desconforto de sua cliente com as constantes interferências da equipe. “Eu não quero mais exame de toque, eu posso recusar?”, perguntou a gestante. “Pode. Eles não precisam te avaliar de hora em hora, pode ser a cada quatro horas”, respondeu a doula.
O exame de toque ajuda a detectar problemas durante o parto. Mas há o questionamento sobre quantas vezes é necessário realizar esse procedimento, que muitas vezes é considerado incômodo e invasivo, já que é necessário introduzir o dedo no canal vaginal da parturiente. Caso seja feito sem o consentimento da mulher ou em frequência exagerada, pode ser considerado violência obstétrica.
Mesmo com a recusa, os exames continuaram com a mesma frequência. Em certo momento, a enfermeira avaliou que o parto tinha parado de progredir e que seria necessário dar ocitocina à gestante. Esse hormônio estimula as contrações uterinas e apressa o nascimento da criança.
“Eu não quero, não aceito. O meu trabalho de parto está evoluindo”, respondeu Sara. “Eu não vou apressar o nascimento. Se eu não tivesse que induzir o parto, eu estaria chegando aqui agora, com 7 centímetros de dilatação. Então vocês não têm que me dar um tempo para o meu bebê nascer”, disse.
O médico logo chegou para avaliá-la.
“Como você negou o procedimento, ou a gente faz agora ou te levamos para a cesária. Você não tem escolha”, disse.
Ela cedeu à pressão e aceitou a ocitocina, porém quis entender a motivação da indicação da cesariana. “Porque é o que está no papel e a gente segue o que está no papel”, respondeu o doutor.
Após a conversa, Sara recebeu uma intimação: “se não nascer até nove horas, você vai para a cesária querendo ou não”. Diante do cenário, a doula conversou com sua advogada e propôs alguns caminhos para a gestante: aceitar o procedimento; procurar outro hospital; ou pedir a troca da equipe médica por quebra de confiança.
Ao fim do prazo dado pelo obstetra, a paciente ainda tentou argumentar. “O meu corpo vai fazer o que tem que fazer sozinho. Eu preciso de tempo, eu preciso descansar”, disse. “Você não tem mais tempo”, ouviu do obstetra.
“E outra coisa: sair por cima ou sair por baixo tanto faz, é a mesma coisa”.
Fragilizada, nervosa e se sentindo desrespeitada pela equipe médica, Sara por fim decidiu aceitar a cirurgia. Porém, na porta do centro cirúrgico disseram que a doula não poderia entrar. “Sem ela eu não vou”, respondeu a gestante. E acabaram cedendo.
“Quando eu entrei parecia uma cena de filme. Eu me senti uma criminosa”, conta Ana. “Falaram: ‘você vai entrar só que não encosta em nada e não abre a boca”.
Após o nascimento do bebê, o pediatra presente no centro cirúrgico chamou a doula para tirar fotos da criança e registrar o momento, porém a enfermeira mandou que ela guardasse o aparelho, senão seria retirada da sala. “O pediatra pegou o meu celular e começou a tirar as fotos ele mesmo”, lembra. “Parecia uma guerra dentro do centro cirúrgico, não parecia um parto”.
Na hora de pesar o bebê, o médico a convidou novamente para fotografá-lo na balança e dessa vez ela conseguiu. “Você já fez o que você tinha que fazer, agora volta para o seu lugar, porque você não podia nem estar aqui, quem dirá tirando fotos”, ouviu da mesma enfermeira.
Na cidade de São Paulo, desde 2016, além de um acompanhante, parturientes têm o direito à presença da doula durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato. A Lei Orgânica 16.602/2016, sancionada pelo então prefeito Fernando Haddad, também permite a presença da profissional em consultas e exames de pré-natal, sempre que solicitado pela gestante, nas maternidades, hospitais e demais equipamentos da rede municipal de saúde.
“Eu me senti uma criminosa”, confessou Ana. “Parece que a caça às bruxas ainda existe e as bruxas somos nós, as doulas e quem mais está militando por partos mais respeitosos. Essa perseguição ainda é muito real”, lamentou.
Logo após, disseram que a doula não poderia acompanhar a gestante no pós-parto e que deveria ir embora do hospital. No dia seguinte, Sara recebeu a visita de um funcionário do hospital que foi procurá-la para saber se as recusas dela aos procedimentos foram incentivadas pela doula. “Não, foi porque o meu parto não é um pedaço de papel para aceitar intervenções só porque é o que está no protocolo”, respondeu.
Escoltada para fora
Ana voltou ao hospital no mês seguinte, para acompanhar uma gestante transferida do centro de parto humanizado Casa Ângela, localizado na zona sul de São Paulo (SP). Ela precisava de uma cesariana de urgência porque seu bebê estava com taquicardia, um aumento na frequência cardíaca.
“Me deram a roupa para entrar no centro cirúrgico e eu me troquei. Daqui a pouco me aparece uma enfermeira junto com a segurança me chamando para conversar porque eu estava proibida de atender lá dentro”, lembra. “Pediram que eu me trocasse porque a segurança iria me escoltar até a porta”.
Ela concordou, mas perguntou para a enfermeira se ela sabia o que tinha acontecido e perguntou se a proibição partiu de determinado doutor. Após uma resposta positiva, a enfermeira exprimiu o quanto estava constrangida de ter que mandá-la embora da maternidade e recomendou que ela procurasse a diretoria do Amparo Maternal. A doula então se trocou, explicou o acontecimento para o acompanhante da sua cliente e aguardou do lado de fora da maternidade até ter notícias da família, três horas mais tarde.
Após questionar o hospital sobre a proibição, Ana descobriu que seu cadastro estava suspenso após o parto que atendeu no mês anterior. Sua atuação foi associada às recusas da gestante que não estava concordando com a condução de seu trabalho de parto. “Meu cadastro segue em análise e eu não posso mais atender lá”, lamenta.
Posicionamentos
A reportagem tenta contato com a SPDM PAIS – Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, que administra o Amparo Maternal, desde outubro de 2022, mas até a publicação da reportagem não recebeu retorno.
Em nota, a Secretaria Municipal de Saúde respondeu que:
“A Secretaria Municipal da Saúde (SMS), por meio da Atenção Hospitalar, informa que, desde de 2020, mantém contrato de termo de colaboração entre a Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM) e o Hospital Maternidade Amparo Maternal. A unidade realiza em média 550 partos por ano, sendo 70% partos naturais e 30% por cento cesáreas.
A SMS esclarece que, para evitar aglomeração no momento do parto, apenas um acompanhante entra na sala, conforme acordado com a paciente. Sobre o médico citado pela reportagem, a direção do Amparo Maternal não recebeu nenhuma denúncia contra o profissional. A maternidade preza por garantir o melhor atendimento à população e está à disposição para registrar e apurar qualquer consideração.
Além das maternidades, a capital conta com duas casas de partos humanizados, a Casa Angela, localizada na zona sul, e a Casa de Parto Sapopemba, na zona leste da cidade. A Casa Angela é pioneira e referência em parto humanizado no Brasil e, desde sua fundação, em 2009, oferece assistência ao parto natural, em ambiente seguro, acolhedor e respeitoso. A Casa de Parto de Sapopemba, entregue há mais de 20 anos, recebe gestantes de qualquer região da cidade. O atendimento é realizado por enfermeiras obstetras e auxiliares de enfermagem que trabalham na unidade”.
*Os nomes citados no texto são fictícios para garantir o anonimato das fontes, que podem sofrer represálias e ter seu trabalho dificultado ou impedido.