Políticas de renda para combater o trabalho análogo ao escravo
Produtores de vinho do RS culpam programas sociais por trabalho análogo ao escravo. A economista Juliane Furno analisa a importância das políticas de transferência de renda para o combate ao trabalho escravo.
02|03|2023
- Alterado em 17|05|2024
Por Juliane Furno
Recentemente o Centro de Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, lançou uma nota buscando ofertar uma resposta pública após o resgate de diversos trabalhadores encontrados vivendo em situação análoga à escrava.
A nota mirou no que viu – as torturas físicas, abusos psicológicos e situação degradante de trabalho – e acertou no que não viu – desinformação embebida em preconceito e senso comum.
Segundo a nota, após se eximir de conhecer a prática da empresa que contratava os trabalhadores terceirizados e temporários, relativiza a escravidão, ao afirmar que escravizar pessoas tem uma correlação positiva com o fato de que há mão de obra ociosa que se nega a trabalhar por ter sua sobrevivência garantida por um “sistema assistencialista”. A responsabilidade, nesse caso, recai sobre a existência ou desenho da política pública ao invés de atingir, com afinco, a prática horrenda da escravização moderna.
A nota enseja uma mentira e uma verdade. Não há qualquer evidência empírica de que programas de transferência de renda impactem negativamente a oferta de mão-de-obra e saibam que políticas focalizadas de transferência monetária foram estudadas com afinco por pesquisadores de diversas matizes teóricas. O fato é ainda mais significativo se formos levar em conta o valor pecuniário devido a cada beneficiário das políticas existentes no Brasil.
Paradoxalmente, coube ao próprio ex-presidente Jair Bolsonaro – herói do empresariado mais tacanho brasileiro – a popularização do valor correto médio do benefício do Programa Bolsa Família. Menos de R$ 200 por família, o que corresponde a menos de uma cesta básica. Mesmo o Bolsa Família atual, corrido ao valor do Auxílio Emergencial, é deveras insuficiente para manter a inatividade de adultos em condições dignas.
Se nem mesmo países e regiões que aderiram a programas de renda básica universal muito mais expressivos vivenciaram redução da oferta de força-de-trabalho, o que levaria a crer que no Brasil um valor tão irrisório cumpriria esse desígnio?
Lembrando que o desenho do Bolsa Família foi feito, justamente, para impulsionar a complementação da renda, e não a substituição da renda do trabalho. Isso está expresso não apenas no baixo valor per capita do benefício quanto pelos mecanismo de permanência, que permitem a convivência de renda do programa com a renda do trabalho.
Basta acompanhar as estatísticas de desemprego aberto que o cenário fica mais límpido. São em torno de 10 milhões de desempregados e um conjunto de mais de 20 milhões de subocupados por insuficiência de horas trabalhadas. Há, objetivamente, oferta excessiva de força-de-trabalho. Arriscaria a dizer, inclusive, que as políticas de transferência de renda ampliam a oferta de mão-de-obra, na medida em que criam condições subjetivas e objetivas para a busca ativa de emprego, reduzindo o desemprego por desalento.
Ou alguém acha crível que uma pessoa que não se alimenta, não pode imprimir um currículo nem se locomover tem condições de procurar trabalho?
Em que pese isso, a nota revela uma verdade dura de engolir. As políticas de transferência de renda, se por um lado não reduzem a oferta de força de trabalho, há tornam mais cara e mais seletiva. Em um países de colonização escravagista e de resquícios servis como é o Brasil, a classe média adaptou-se a um exército de baratos serviçais, em especial no emprego doméstico. Nos governos petistas o preço do trabalho doméstico subiu mais do que o salário mínimo, impulsionado pela possibilidade de milhares de mulheres – sobretudo negras – poderem negar condições degradantes de trabalho contínuo ou diário sem que isso ameaçasse sua sobrevivência material mínima, garantida pelos programas sociais. Esse efeito é muito importante, impactando tanto a distribuição de renda quanto o valor médio da força-de-trabalho.
Por fim, além de corrigir a fome extrema e lograr garantias de mínimas condições de sobrevivência humana objetiva, talvez o impacto mais importante das ditas “políticas assistencialistas” seja o exercício da liberdade. Liberdade, palavra tão cara ao liberalismo e que no Brasil é constantemente deturpada.
Só há liberdade, de fato, quando há segurança e poder de escolha, e só há poder de escolha no mercado de trabalho quando a nossa sobrevivência física não está ameaçada.
Ou seja, são essas políticas estatais, ao contrário do que prega o liberalismo tupiniquim, que mais se aproximam do ideal de garantia da liberdade humana e da liberdade de contratos, logrando condições dos trabalhadores escolherem, diferentemente da escravidão, para quem venderão sua força de trabalho.
Juliane Furno Mestre e doutora em desenvolvimento econômico pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), militante do Levante Popular da Juventude e economista-chefe do IREE (Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa).
Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.
Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.
Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.