O ‘sagrado e o profano’: sobre a autonomia do Banco Central
A economista Juliane Furno analisa a aprovação da autonomia do Banco Central: "o sagrado é o mercado – reino da técnica, da neutralidade, da racionalidade – distantemente do profano em que estão associados o autointeresse e a corrupção".
10|02|2023
- Alterado em 17|05|2024
Por Juliane Furno
Quando a autonomia do Banco Central foi votada e aprovada no governo Bolsonaro, seu caráter tomou pouco espaço nas páginas dos noticiários e não foi objeto de longas sessões de debates no Congresso Nacional. Em que haja profundas divergências na literatura especializada sobre a relação entre Banco Central e maior estabilidade da moeda e o nível de preços, o debate sobre os objetivos de política econômica foi praticamente irrisório frente ao tema que ganhou os holofotes: a criminalização da política, em mais uma das suas variáveis.
Esse não é um tema recente nem tampouco circunscrito ao Brasil. É possível apregoar que a crise da década de 1970 e a revolução neoliberal o tenham fortalecido. Durante o período de estagflação que viveu as principais economias centrais em fins dos anos 70 um grupo de intelectuais – herdeiros do liberalismo – serviu de legitimadores das elites tradicionais para construir a narrativa de que o responsável pela crise econômica era o Estado e sua política de populismo fiscal que, através de sucessivas expansões da base monetária, gerou uma crise que combinou retração do crescimento com inflação elevada.
O pulo do gato se encontra no seguinte argumento: o Estado seguiu esse rito “populista” porque era pressionado por grupos corporativistas, de interesses privados, tais como os movimentos sociais e as organizações sindicais que, paradoxalmente, ao reivindicarem políticas públicas mediante aumento do gastos, prejudicava-se a si próprias no médio e longo prazo. Desse diagnóstico sugere-se a mediação: blindar a política econômica do Estado que, pelo rito da política, é populista e vulnerável às pressões populares.
Soma-se a isso a sistemática criminalização do Estado, do gasto público e da política e a glorificação do mercado e temos criadas as condições perfeitas para uma autonomia do Banco Central que, em última instância, fere a própria democracia, uma vez que a definição do nível da taxa de juros é uma variável com impactos profundos no projeto de sociedade escolhido nas urnas, que – no caso atual – está pautado no crescimento econômico, na política fiscal expansionista e na geração de emprego.
A metáfora que melhor se adequa a esse cenário é a do “sagrado e do profano”, em que o sagrado é o mercado – reino da técnica, da neutralidade, da racionalidade – distantemente do profano em que estão associados o autointeresse e a corrupção.
Ocorre que vivemos em uma sociedade em que tudo é política e em que não há nada “desinteressado” ou “neutro”. A autonomia do governo pode significar sinergia com a oposição de governo, como no caso da situação desconfortável – no mínimo – da permanência de Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central do Brasil, em um grupo de Whatsapp dos Ministros de Bolsonaro. Mais ainda, o “mercado” não é um agente neutro, é portador de um conjunto de interesses.
Juliane Furno Mestre e doutora em desenvolvimento econômico pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), militante do Levante Popular da Juventude e economista-chefe do IREE (Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa).
Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.
Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.
Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.