Foto mostra Cris sorrindo

Cris Faustino: ‘A população precisa entender melhor a própria história’

Conversamos com a ativista cearense sobre o despertar de sua consciência política, sua trajetória lutando pela causa socioambiental, feminista, negra e LGTBQIA+ e sobre o contexto brasileiro

Por Amanda Stabile

25|11|2022

Alterado em 24|03|2023

Alegria e muito sonho, só…

Espalhados no caminho

Verdes plantas e sentimento

Folhas, coração, coração, juventude e fé

Os versos de Coração de Estudante, na voz de Milton Nascimento, embalaram o início da tomada de consciência política de Cristiane Faustino. Nascida em Fortaleza (CE) durante a ditadura militar brasileira, em 1973, ainda menina testemunhou pelos noticiários diversas movimentações políticas que a deixaram curiosa.

Movimentos como a campanha pelas Diretas Já, em 1983, que pedia a volta da democracia; a convocação da Assembleia Nacional Constituinte, criada para elaborar a nova Constituição do país, e a eleição e morte de Tancredo Neves, em 1985. “Muitas coisas eu não entendia bem, mas sabia que eram importantes”, aponta.

Sua infância foi semelhante à de muitas meninas negras, com brincadeiras de quintal, dias nas ruas da comunidade e noites nas calçadas e o ser criança abreviado pela necessidade de trabalhar para contribuir com o orçamento doméstico. Quando pequena, conta, também era tímida e introspectiva pelo medo da rejeição.

“Minha família nuclear é muito marcada por uma tradição matriarcal trazida e continuada por minha mãe, que sempre conduziu com firmeza a casa e as nossas vidas”, lembra. Seus pais a achavam muito “adiantada” para sua idade, pelos questionamentos e ideias instintivas que manifestava.

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Cris em frente à sua casa, em Fortaleza (CE)

©Tamara Lopes

“Desde que me entendo por gente, suspeito de certos valores e práticas correntes sobre as meninas e as pessoas negras, sobre os corpos e sobre as relações afetivas. Nunca foi ‘de boas’ perceber as desigualdades sociais e a violência contra nossa gente, mas, em termos de consciência política, isso só foi amadurecendo na minha adolescência e juventude, foi ganhando mais corpo na vida adulta”, explica.

Em 1993, aos 20 anos, Cris passou de primeira no vestibular para estudar Serviço Social na Universidade Estadual do Ceará (UECE). “Eu fui um caso raro”, conta. Vinda da rede pública de educação, ela ingressou no curso sem saber exatamente do que se tratava, mas  sempre ouvia que ela era a “cara” do serviço social, então resolveu seguir esse caminho. 

“Eu queria mesmo era fazer história na [Universidade] Federal, mas não passei. Porém fazer Serviço Social foi um giro importante para que eu entendesse melhor o mundo e a vida. As capacidades que adquiri e desenvolvi no curso foram centrais para o tipo de trabalho que exerço hoje”, confidencia.

Em 1994, Cris começou a trabalhar em uma ONG (organização não governamental) que atuava para garantir a efetivação do direito à cidade. Até então, já tinha trabalhado como empregada doméstica, cuidadora de idosos, vendedora, costureira e além de vários outros bicos para sobreviver.

A partir da vivência na ONG, em que atuava no eixo que observava como o direito à cidade afeta as mulheres, ela se tornou militante do movimento feminista. Depois, se engajou nas lutas LGBTs – Cris é bissexual -– no socioambientalismo, nos direitos humanos e em diversos outros movimentos. “Creio que o fato de ler muito e os meus ciclos de amizades foram e são fatores essenciais para a consciência política que julgo ter hoje”, pontua.

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Cris em manifestação nos anos 2000

©Tâmara Lopes

Além de ativista negra, feminista, LGBT e ambientalista, Cris também é mãe solo de Ariane Faustino, de 25 anos, e se define como uma militante “extensiva”. “Eu me engajo, sobretudo, nas lutas socioambientais, mas dialogo com muitos sujeitos e coletivos que me reconhecem profissional e politicamente em diferentes temáticas da vida social”, explica.

Acredito que existem pessoas que se interessam pelo que tenho a oferecer, que é a minha fala vivida e refletida”.

Desde 2007, Cris integra o Instituto Terramar, organização que tem o objetivo de contribuir para a justiça socioambiental na Zona Costeira do Ceará. Entre 2019-2020, Cris presidiu e representou a sociedade civil no Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos (CEDDH) pelo Instituto.

“Os Conselhos são espaços que permitem conhecer e atuar estrategicamente para compreender e incidir nas políticas públicas, intercambiar conhecimentos, métodos, temas e sujeitos”, explica. “Contudo, há que se reconhecer que, com poucas exceções, os Conselhos nunca foram devidamente considerados no âmbito das políticas entendidas em sentido integral. Assim, muitas vezes sua atuação pode se reduzir a um formalismo burocrático, político, cultural e economicamente subtratado no âmbito do Estado e dos governos”, complementa.

Hoje, dentre as pautas que merecem a atenção de toda sociedade, a ativista aponta o enfrentamento às violências e ao empobrecimento das populações, a preocupação socioambiental e a defesa dos direitos dos povos e comunidades tradicionais como fundamento para pensar a economia e construir soluções para as escalas de produção e consumo.

Ela também alerta para a necessidade de atualizar a educação popular para fortalecer a capacidade de reflexão da população em geral.

“A população precisa entender melhor sobre sua própria história, sobre política e economia, diversidades, direitos humanos, política internacional e outras questões. E essa preocupação não se restringe à educação formal, teremos que construir novas formas de dialogar sobre o mundo e o bem comum”, pontua.

Para Cris, o Brasil passa por um momento histórico com gravíssimas crises que afetam o  mundo inteiro, intensificam as forças conservadoras e reacionárias e criam um ambiente propício para que o colonialismo se repita na geopolítica internacional e na política macroeconômica.

“Na vida cotidiana essa realidade se revela na produção de pobreza, na agudização das violências patriarcais e racistas sobre as diversidades”, explica.

Por outro lado, a ativista pontua que esse é, também, um momento de muita potência para as lutas e narrativas transformadoras e que a comunicação e tecnologia, ao mesmo tempo em que potencializam violências, ampliam vozes e fortalecem articulações e a socialização de informações e de conhecimentos.

“A vitória eleitoral de Lula é bastante significativa e nos ajuda a dar um respiro, mas um amplíssimo campo de desafios permanecem e outros tantos se abrem. Há que se crer e atuar com precisão e investir na inconstância da vida e na capacidade coletiva de obrar milagres reais”, aponta.

Apesar do contexto político brasileiro, aos 49 anos, Cris se sente realizada e feliz com suas escolhas. “Às vezes me pergunto como foi que eu cheguei até aqui, desprotegida de mim mesma. Me sinto abençoada pelas forças e pela firmeza das redes de solidariedade, amizades e identidades. Gostaria de continuar assim, mesmo que as coisas mudem”, conclui.

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© Tamara Lopes

© Tamara Lopes

© Tamara Lopes

© Tamara Lopes

© Tamara Lopes


Esta reportagem integra a série “Feminismos”, uma parceria do Nós com a Fundação Rosa Luxemburgo. A série conta histórias de mulheres que têm a política como propósito de vida.