A convite do Instituto Vladimir Herzog, o Nós, mulheres da periferia contou as histórias das mortes políticas de cinco jovens a partir da perspectiva de suas mães
Texto: Amanda Stabile, Beatriz de Oliveira, Jéssica Moreira e Semayat Oliveira
Edição: Mayara Penina
Fotos: Jessy Alves
Atualizado em 22|11|2022
Nós escrevemos sobre a saudade. Esse sentimento profundo e multifacetado que aperta o peito, relembra nomes e datas, e engaja mães amorosas e indignadas na luta por memória, verdade e justiça por seus filhos e os daquelas que já não têm mais forças frente às violências do Estado.
A convite do Instituto Vladimir Herzog, o Nós, mulheres da periferia contou as histórias das mortes políticas de Fernando Luiz de Paula, Jhones Pereira, Miguel Pereira, Denys Quirino e Peterson Conti Senoreli, o Renatinho, a partir da perspectiva de suas mães. E, pelo trabalho, recebemos o Selo Municipal de Direitos Humanos e Diversidade 2022, iniciativa da Prefeitura de São Paulo que reconhece entidades que atuam e se destacam na promoção de direitos.
Mas, mais do que isso, ouvindo suas mães, nos conectamos com uma realidade em que jovens são violentados e assassinados por uma estrutura que deveria protegê-los. Hoje, essas mulheres, em maioria negras e periféricas, denunciam a negligência do Estado e se fortalecem coletivamente na busca por justiça diante de crimes que perpetuam heranças e estratégias do período da ditadura militar brasileira.
Esperamos que, a partir dos relatos, além de difundir didaticamente a denúncia desses crimes que sempre tiveram endereços certos e peles alvo, possamos sensibilizar e inspirar a contação das diversas histórias que ainda precisam ser narradas. Que um dia relembremos esses casos apenas como lembranças de um passado distante e que não existe mais.
Era uma quinta-feira, 13 de agosto de 2015, quando Dona Zilda perdeu seu filho, Fernando Luiz de Paula, mais conhecido como Abuse, no massacre que ficou conhecido como Chacina de Osasco e Barueri.
Ela conta que, próximo das 20h, escutou um som parecido com fogos de artifício. Minutos depois, um menino da vizinhança apareceu e disse que ela deveria pegar o documento de Abuse o mais rápido possível. Foi quando soube que os possíveis fogos eram tiros e que seu filho havia sido atingido. “Morreu?”, questionou. Mas o garoto retornou com o silêncio. Sua resposta só veio minutos depois: ao chegar no bar, encontrou o filho enrolado em um saco plástico.
Naquela noite, três policiais militares e um guarda civil municipal assassinaram 18 pessoas, dentre elas Fernando, e deixaram outras 3 feridas em um intervalo de apenas três horas. O motivo seria a retaliação e vingança pela morte de um policial militar e de um guarda civil metropolitano após um assalto ocorrido alguns dias antes.
Inspirada pelo movimento Mães de Maio, composto por mães de vítimas do Estado unidas pelo luto e pela busca por justiça, especialmente para jovens negros e dos bairros empobrecidos do Brasil, Dona Zilda fundou, junto de outras mulheres, o movimento Mães de Osasco e Barueri.
Desde a violência que sofreu como mãe e como cidadã, sua vida e das demais mães tomou outro rumo. Embora não se conhecessem antes da chacina, a união entre elas é um motivo para continuar. Dona Zilda sempre é procurada por outras integrantes quando precisam de ajuda e costuma mobilizar esforços em busca de doações de fraldas e alimentos para apoiar aquelas que precisam.
“É tanta coisa que eu não sei definir se é dor, raiva, ódio, revolta. É isso que mata a gente. Não é uma dor de cabeça, uma dor de dente. No começo era uma dor sufocante, que dói tudo. É noite e dia, são 24 horas com aquilo na sua cabeça. Até hoje é assim, só que minimizado. Mas ainda é uma dor que eu não sei te explicar, só quem passa sabe”, desabafa.
A sensação que eu tenho é que isso não acabou. Eu sou muito devota das almas que têm sede de justiça
Dona Zilda, mãe de Fernando
Miriam Duarte Pereira teve seus três filhos, Jhones, Michael e Miguel internados e torturados na Fundação Bem-Estar do Menor de São Paulo (FEBEM), instituição rebatizada, em 2006, como Fundação CASA (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente), após o sancionamento da Lei 12.469/06.
Criada durante a ditadura civil-militar, em 1976, a FEBEM nasceu para substituir a antiga Fundação Paulista de Promoção Social do Menor (PRÓ-MENOR) e punir adolescentes a partir de 12 anos acusados de praticar atos infracionais e de problemas de conduta. Desde a década de 1990, a instituição já era alvo de denúncias de tortura, surras e espancamentos.
Em março de 2000, Miriam viveu o pior dia de sua vida: seu filho mais velho, Jhones, foi assassinado com um tiro certeiro na nuca. Ela conta que o menino era conhecido de alguns policiais que foram pedir dinheiro para ele. Caso não desse, iriam colocá-lo de volta na FEBEM. Com medo, o adolescente decidiu roubar um carro, mas não sabia que o dono também era policial.
Três anos depois, quando Miguel, tinha apenas 17 anos, a dor da perda se repetiu. Após chamar os filhos para almoçar e ver que o caçula não estava em casa, Miriam ouviu um burburinho na rua: eram os vizinhos gritando que Miguel havia sido morto.
Michael foi o único que conseguiu chegar à idade adulta. Sobreviveu à FEBEM e, de 2011 a 2018, fez parte dos mais de 700 mil presos que colocam o Brasil em terceiro lugar no ranking de população carcerária. Porém, por causa de tantas torturas que sofreu, hoje é uma pessoa com deficiência. Ele teve dois AVCs [acidente vascular cerebral] isquêmicos. Aos 38 anos, tem cegueira periférica, não escuta do ouvido direito e tem dificuldades para formar frases.
Miriam transformou a dor em luta. Desde que Jhones foi internado na FEBEM pela primeira vez, em 1998, ela se empenha pela efetivação dos direitos humanos dos adolescentes internados. Na fila das visitas, conheceu Railda Alves, que entregava um papel da Associação de Mães da FEBEM. As duas fundaram a Associação de Amigos/as e familiares de presos/as (AMPARAR).
A organização, com sede na Zona Leste, dá apoio social e assessoria jurídica aos familiares de pessoas presas, especialmente às mães que também são punidas e criminalizadas pelo sistema e pela sociedade.
O seu filho completa certa idade e você já fica com medo, porque a polícia já vai revistar, bater documento. Na periferia não tem liberdade, é um cárcere a céu aberto. O povo já nasce com algemas
Miriam Pereira, mãe de Jhones, Michael e Miguel
Em 31 de novembro, uma noite de sábado, cerca de 5 mil pessoas saíram de suas casas para o famoso Baile da DZ7, em Paraisópolis, favela localizada na zona sul da capital paulista. Durante a madrugada do dia seguinte, com um público massivo ocupando as ruas, uma ação truculenta da polícia militar impôs um trágico fim ao evento.
Agentes do 16º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano invadiram o baile para uma ação de dispersão conhecida como ‘Operação Pancadão’. Entretanto, os jovens acabaram encurralados e agredidos em becos e vielas. Quem presenciou aquele início de domingo voltou para casa com a lembrança de uma noite violenta.
Pelo menos 12 pessoas ficaram feridas, uma delas teve uma bala de borracha alojada na perna e nove jovens nunca mais retornaram para suas famílias. Denys Henrique Quirino, de 23 anos, foi um dos que perderam a vida nesse ato de violência que ficou conhecido como Massacre de Paraisópolis.
Maria Cristina Quirino, sua mãe, recebeu uma ligação surpresa do Hospital Campo Limpo e qualquer possibilidade de morte ficou longe do seu pensamento. Ela não sabia da ida do filho à Paraisópolis. Sua preocupação e aborrecimento naquele momento era a convivência com o ímpeto adolescente comum na idade dele. Semanas antes, Cris, como costuma ser chamada, tinha conversado com ele e pedido para evitar aglomerações. Ao mesmo tempo, ela sabia que seu menino estava apenas começando a descobrir o mundo.
Desde a morte de seu menino, manter-se em movimento é o jeito que Cris encontrou para acolher a si e suas dores. Neste caminho, encontrou parceiras e parceiros na Rede Emancipa, um Movimento Social de Educação Popular que luta pela democratização do acesso à Universidade e por uma educação de qualidade, localizado no Grajaú, zona sul de São Paulo. Na luta por justiça, o espaço tem oferecido solidariedade e a oportunidade de compartilhar sua história com outras pessoas.
“Esta na sua frente não é a mesma que lutava por tudo e por todos. Hoje eu luto, mas com visões diferentes”, conta. “Sou a mãe do Denys e estou militando por uma causa e aprendendo muito com isso. Estou aprendendo a lutar, essa é a real, aprendendo da pior forma que existe”.
O Estado mata os nossos filhos. Não perguntam se têm mãe, se têm pai, eles saem matando os filhos da gente
Maria Cristina, mãe de Denys Quirino
São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo. No dia 18 de março de 2015, a região mais populosa da capital paulista, com mais de 6 milhões de habitantes, tornou-se um espaço apertado e dolorido para Márcia Gazzarolli. Naquela data, as ruas e esquinas que compunham um mosaico de suas memórias, formavam agora uma geografia carregada de dor e saudade.
Esse foi o dia em que seu filho, Peterson Conti Senoreli, conhecido como Renatinho, adotado por ela ainda bebê, foi espancado até a morte por quatro Policiais Militares da Força Tática do 29º BPM/M (Batalhão da Polícia Militar Metropolitano) por não saber o nome de seus pais e avós que constavam em sua certidão de nascimento, que carregava consigo no momento da abordagem.
“O Peterson não soube falar o nome dos seus pais [biológicos] e avós. Ele só sabia o meu nome e o nome do meu marido”. Ao longo das investigações, Marcia relatou que o processo de tortura ao seu filho foi longo, usando até mesmo choque. A justificativa dada pelos PMs para as marcas no corpo do jovem é de que elas teriam sido motivadas pelo uso de força moderada, após Peterson ter se agarrado a um poste de ferro.
“Durante uns três anos eu vivi na escuridão. Depois da morte do Renato, eu só via o cinza, eu num via cores”, lembra. Para continuar lutando por justiça, Márcia começou a estudar tudo que se relacionava à morte do filho. “Eu não podia deixar ficar quieto essa morte. Quanto mal esses policiais já não fizeram? Tantas mães já não choraram por causa deles?”.
Foi no Facebook que ela conheceu outras mães que haviam perdido seus filhos pelas mãos do Estado ou ainda por outras causas. “Um dia eu fui ao CONDEP (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana), onde encontrei o Fuca (ativista em Direitos Humanos). Ele sentou do meu lado e fiquei pensando que era um policial. Mas não. Ele trabalhava com Direitos Humanos e pessoas que sofrem com violência policial. Papo vai, papo vem, ele falou que ia ter uma atividade da Cidade Tiradentes, extremo leste. Resolvi ir”.
Nesse dia, em dezembro de 2016, Márcia encontrou pela primeira vez Débora Silva, criadora do Movimento Mães de Maio. O filho de Débora foi assassinado durante os Crimes de Maio de 2006, quando mais de 500 jovens das periferias foram assassinados frente ao conflito entre o crime organizado e o Estado.
Desde então, Márcia entendeu que era possível também organizar sua dor junta outras mães e hoje ela coordena o Movimento Mães de Maio da Leste. “É a luta que me mantém viva. Eu tive um câncer de pele em 2017, devido ao emocional. Mas Deus tem um propósito na vida da gente, que é a luta”, desabafa.
Convivo com várias mães e tenho um carinho por todas, porque a dor que a gente sente é dor que só a gente pode entender. É uma dor muito grande perder um filho, ainda mais pela violência: por pessoas que, na verdade, deveriam estar nos dando segurança
Márcia Gazzarolli, mãe de Renatinho